José (nem sei se é esse o teu nome, não guardei o que saiu no jornal, vou, então, te chamar de José), percorreste todos os recantos da cidade, batendo em cerradas portas, usando a tua voz que não podia chegar a ouvidos surdos. À casa regressavas não apenas esfalfado, no rosto os sinais da desilusão, na alma a angústia por não entreveres uma tênue esperança de sair do túnel em que penetraste. Daí advinham as agressões mútuas com a esposa (através de quem entrava o único e magro dinheiro na casa). Das agressões morais vocês passaram às agressões físicas, assistidas pelos filhos, já crescidos. Ela, a tua mulher, com quem deves ter tido horas de um amor que julgavam eterno. Ela, a tua mulher, te culpava pela perda do emprego. No começo tiveste paciência para esclarecer que a expressão "despedido por justa causa", que constava da carta de demissão, não passava de um artifício usado pelos patrões para reduzir o quadro de funcionários. Não foste o único, sempre acrescentavas. No começo. Ela, no entanto, não entendia, ou não queria entender. Deixaste de dar explicações ( a ouvidos encerados, como os dos patrões aos quais pedias emprego), e passaste a devolver as palavras amargas. Tão amargas quanto a cachaça que tresaandavas ao voltar de mais uma peregrinação em busca de trabalho.
E a bebida terminou por subjugar-te. O teu trajeto passou a ser da casa para o botequim, do botequim para a casa. Surrupiavas do parco salário da tua mulher para te embebedares. A tua vida foi caminhando para o abrigo em que afinal despencaste. A casa transformando-se num palco, cujos atores não tinham vocação para representar cenas de tragédia. E sofreste a humilhação suprema de seres preso por interferência de teus próprios familiares.
A tua infância - revelou a carta amarfanhada encontrada num bolso da calça - foi a de um menino pobre, mas feliz. Teu pai não foi um homem rico, ao contrário. Mas não deixou que os filhos passassem privações. As três refeições, pelo menos, não faltavam na tua casa de menino, embora a mesa não fosse farta. Farto o quintal do vizinho, em cujas árvores se dependuravam as mangas, as goiabas, os mamões e os cajus, que ajudavam a complementar a alimentação doméstica. E à fome do momento juntava-se o prazer lúdico de penetrar em propriedade alheia, da qual, por sinal, foste corrido algumas vezes. Mas isso era previsto e fazia parte do brinquedo.
Eras feliz: disseste com tua linguagem escassa e numa caligrafia tortuosa de quem não podia mais dominar os nervos. Mas só o soubeste quando te tornaste um adulto infeliz. E não foste o primeiro - nem serás o último - a ter consciência dessa felicidade numa quadra da vida em que se é deliciosamente irresponsável. Têm-na principalmente os artistas: os grandes e os pequenos.
José, "despedido por justa causa" do emprego, humilhado, faminto, alcoólatra, desamparado pela família e pelos amigos. José, não te restava outra saída. Mas antes de decidires jogar-te do alto daquele edifício, olhaste para o teu passado de menino. A mão trepidante deu o testemunho.
Acompanhava a carta uma foto em que aparecias, sorridente, ao lado da tua mãe. Não sei por que, mas acho, José, que a contemplaste antes de saltares para a morte. E que esse instantâneo da tua infância te devolveu um pouco da perdida felicidade.
- Do meu livro Um Dia.. Os Mesmos Dias, 1983.
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