domingo, maio 23, 2010

UMA MÚSICA PARA DOIS




Ela imediatamente se virou para o piano, quando soaram os primeiros acordes da música. Por um minuto, mais ou menos, permaneceu com o olhar enfocado no piano, depois voltou à posição inicial. Voltou também ao prato, que abandonara por aquele breve tempo. Ela também interrompera a conversa com o homem que a acompanhava. Parecia estar toda concentrada na música. E o homem, que devia ser o marido, pareceu respeitar o silêncio dela, pois não ousou lhe dizer uma só palavra até que a música parasse. E eu que não prestara atenção naquela mulher, que já almoçava quando eu me sentara à mesa, fui, de repente, tomado por uma junção de curiosidade e interesse por ela, a partir do momento em que a sua atenção foi despertada pela música. E o meu olhar se deteve naquele rosto, na tentativa de nele descobrir, por trás dos óculos e em meio a algumas rugas, a jovem que conheci há anos sem conta.
E por que foi a música que, ao envolver a mulher daquela maneira, me fez sentir um interesse súbito por ela? Antes preciso fazer uma revelação. Frequentava diariamente aquele centenário restaurante, com exceção dos sábados e domingos, desde que retornara à minha cidade após uma prolongada ausência por força da minha profissão. Por um mês, talvez nem isso, solicitei a música ao pianista. Decorrido esse tempo, certamente percebendo que me tornara um cliente habitual, ele passou a executá-la com a dispensa do meu pedido, pouco depois que ocupava a mesa reservada para mim.
E naquele dia, ao ouvi-la, e vendo aquela senhora partilhar da minha preferência pela música, me lembrei, de imediato, da jovem com quem tive um namoro mais ou menos duradouro. Ela, a garota, ela, a música, nunca saíram da minha mente em todos esses anos. Os dois a ouvimos no mesmo dia em que iniciamos o namoro.
Tínhamos ido ao Rex, na matinê dos domingos, assistir Suplício de Uma Saudade. Hoje não tenho mais saco pra encarar aquele melodrama, desde que o revi há uns dez anos; mas naquela tarde, ao lado de Loretta, emocionei-me com o romance entre William Holden e Jennifer Jones, tanto quanto a minha primeira namorada, embora, diferentemente dela, consegui resistir às lágrimas quando o filme terminou. Mas talvez como uma lembrança do nosso amor, iniciado com o filme, se não tenho mais disposição para vê-lo, continuo a gostar de sua música.
Parece que agora estou ouvindo Loretta cantar, a boca chiusa, trechos de Love is a many splendored thing, sentados num banco de uma pracinha, a mesma onde sempre nos encontrávamos: às vezes, assobiando-a. E depois cantando em português, quando foi lançada a versão em nosso idioma.
Mesmo depois de encerrada a execução de Love is a many splendored thing, ela permanecera calada, só falando para responder a alguma pergunta ao marido. Umas três ou quatro perguntas, que presumi que tinham a ver com a atitude da esposa.
Eu começara a refeição e só desviava a atenção da mulher quando baixava os olhos para o prato. Em uma dada ocasião, uma só vez, ela, ao se virar, como que se deu conta da minha presença, mas o olhar que me endereçou teve a duração de um flash. Pouco depois o marido se levantou para ir ao banheiro. Passou bem perto de mim e pude verificar que era bem mais velho do que supunha ao vê-lo da minha mesa. Observei-o informar-se do garçom sobre o banheiro e me lembrei da primeira vez que precisei usá-lo. Em vez do usual "Homens", ou "Cavalheiros", o banheiro masculino daquele restaurante exibe um retrato, numa pequena moldura oval, de um senhor de uma época antiga, vestido de paletó e usando um grosso bigode. Já no das mulheres há um retrato de uma senhora também de outros tempos e com o mesmo tipo de moldura.
Continuei com os olhos atentos na mulher, à espera de que a qualquer momento ela virasse o rosto para mim e, dessa vez, me fitasse. E num breve momento acreditei nessa possibilidade. Foi quando um pequenino pássaro surgiu, de forma inesperada, sem ninguém atinar em como tinha entrado ali. A avezinha ficou passeando por aquele pequeno espaço do salão, chamando a atenção de todos que estavam por perto. Até que um garçom se dispôs a apanhá-la, só o conseguindo depois de algum tempo. Os movimentos do homem, a corridinha em perseguição ao pássaro, que fugia ao pressentir a proximidade do homem, provocaram risos nas pessoas, inclusive nela. E o seu riso, a forma, me fizeram, num estalo, lembrar o de alguma pessoa. Não me era estranho aquele riso. Podia não ser o da jovem que namorei, mas de outra mulher que passara pela minha vida. Talvez até o de um amigo de um passado remoto. Impossível identificar. De todo modo, conhecia aquele riso. Foi quando acreditei que ela se virasse para mim, concedendo-me, além do olhar, um sorriso, como alguns presentes o fizera. Nada. A mulher não alterou a posição de todo o tempo enquanto permaneceu à mesa, com exceção da vez em que a música começou a tocar.
Mas a esperança (não dizem?) é a última que morre, e me vali dela para que, ao se levantar para ir embora, a mulher de novo me presenteasse com um olhar, ainda que rápido como uma piscadela. Nem isso. Ergueu-se e deixou a mesa pelo lado oposto ao em que me encontrava. Ao se afastar, atrás do marido, pude notar que era um pouco corcunda.

12 comentários:

Jota Effe Esse disse...

Quantas lembranças adocicadas, evocadas por uma "esplendorosa" música! Você, como eu, me parece um incorrigível romântico, e essa música deixou mesmo marcas em muita gente, principalmente se conjugada a um amor de outra época. Meu abraço.

Vanuza Pantaleão disse...

Oi, amigo!
Ontem mesmo, ao assistir um filme, ouvi uma referência à linda voz de Holden. Nossa, esse ator era de um talento incrível! Lembra dele em Pic-nic com a estonteante Kim Novak?
Jenifer Jones, que lindaaaaa...
Obrigada por esse talento em reviver para nós esses mitos eternos, Sobreira!
Gabriela Mistral mereceu também aquele Nobel!Bjssss

Mariazita disse...

Querido Francisco
É muito interessante verificar como qualquer pormenor nos traz à lembrança recordações de tempos idos.
Neste caso foi a música, o que é muito frequente (tal como o perfume - no meu caso, pelo menos).
Calculo que tenha sido bastante frustante não conseguir identificar, sem sombra de dúvida, quem era a dona daquele rosto e daquele riso, um e outro tão familiares.
Achei este texto muito interessante.

PS - O texto do meu último post não é autobiográfico. Trata-se de um pequenino conto, em 3 ou 4 partes, apenas. Pura ficção.
Desculpe falar-lhe aqui neste assunto, mas penso que vc merece ser esclarecido :)

Beijinhos

Claudinha ੴ disse...

Querido Sobreira... Que lindo!
Eu tenho paixão por estas histórias que viajam pelo tempo.
A música tem este poder, ser o portal de emoções e transporte no tempo. POde ser que fosse ela sim, quem sabe, mas o fato é que a música foi o que restou de um amor que passou.
Adorei!
Um beijo!

* Assisti Suplício de uma saudade várias vezes, fiz minha mãe me levar na costureira para fazer um vestido de mangas japonesas como o da moça do filme e chorei por todas as vezes em que ela derrubava o cinzeiro (ou prato) enquanto a bomba caía. Ah, a magia do cinema!!!

Marco disse...

"Looooove is a many-splendored thing,
It's the April rose that only grows in the early spring..."
ah, caro amigo Francisco, está uma bela canção, realmente. Inesquecível! Imortal! Você já reparou que o cinema não mais produz canções como esta, como muitas que nos faziam torcer no Oscar? De uns tempos para cá, a canção vencedora do oscar é uma ótima candidata a ser esquecida já no dia seguinte à festa.
Sua história é esplêndida, você conta seus casos como poucos. Se você quisesse, poderia escrever um livro, um romance inteiro só a partir desta história.
Carpe Diem. Aproveite o dia e a vida.

José Viana Filho disse...

BEla cronica francisco!!

Parabens!!!

Ilaine disse...

Francisco! Fiquei torcendo a mil que ela e você fossem se falar. Pelo que entendi, era uma outra pessoa... Mas a namorada de outros tempos - reviveu naquele rosto, ainda que por breves momentos. Tudo lindo!
Abraço

Jacinta Dantas disse...

Seu conto, rico em detalhes, provoca em mim, a vontade de recuperar a capacidade de valorizar o que temos à mão e dele fazer momentos de felicidade. Escutar uma boa música, deixar se encantar pelo amor e lembrar, lembrar sempre dos bons momentos vividos como experiência para fazermos outros bons momentos no presente.

Sempre um prazer vir aqui. Um abraço e bom domingo.

. fina flor . disse...

impressionante como algumas pessoas e alguns momentos, mesmo depois de anos, ainda continuam vivos em nossa mente, não?

o mais engraçado é que quando olhamos a vida que levamos, vemos que está tudo em sua perfeita ordem, que fizemos as escolhas que devíamos ter feito, mas, mesmo assim, ainda lembramos e de alguma forma, sonhamos com o que poderia ter sido.....

isso, confesso, me causa estramento, rs*

beijos, querido

MM.

tb disse...

Meu amigo, a tua escrita me prende de uma forma que nem sei explicar. Fico até com pena quando acaba.
Grande abraço

DILERMArtins disse...

Mas bah, Sobreira.
Lindo conto, ancorado no hábito que as pessoas têm, de eleger uma música como trilha de seus namoros, você cria a tensão de um encontro casual onde a "música deles" atrai seus olhares e leva o leitor a desejar um impossível "final feliz" um "gran finale", para finalmente deixar claro: Foi apenas um acaso...
Parabéns meu caro.

Jacinta Dantas disse...

Ei Francisco,
volto para agradecer seu carinho. Graças a Deus estou bem, vivendo com gosto os dias de frio que por aqui aparecem.

Um abraço