domingo, janeiro 31, 2010

MÉXICO DOS MEUS AMORES




- Este conto faz parte do meu livro O Tempo Está Dentro De Nós (1989) . Foi mantida a ortografia da época em que o texto foi escrito.


Há mais de meia hora estava ali sentado, aguardando, ansioso, que a sessão começasse. Saíra cedo de casa, para evitar fila. Mas esse não fora o único motivo para chegar ao cinema com tanta antecedência. Mais forte era a ansiedade que o dominara a partir do momento em que, ao passar pelo Rio Grande, vira anunciada a exibição do filme. No primeiro instante, não acreditou nos olhos. Teve que ler o cartaz mais de uma vez, para se convencer de que não estava sofrendo de alucinação.
Há trinta anos aquele filme lhe deixara funda impressão, levando-o a vê-lo três vezes. Sim, ele gostara do filme e o incluía entre os seus favoritos. Mas, além dos próprios atrativos, o filme continha um significado sentimental. À ocasião do seu lançamento na cidade, ele conhecera a moça que viria a se tornar sua esposa. Com Ivone fora três vezes ao cinema, para ver o mesmo filme. Ela confessara não entender a razão daquela estranha assiduidade, pois não costumava rever um filme, por mais que dele tivesse gostado. E ele não disse nada, mas, bem no íntimo, achava que o mérito não pertencia somente ao filme e isso deixou-o jubiloso.
Encontrou a mulher agarrada à vassoura, suada, correndo de um lado para outro da casa.
- Ivone, você não adivinha o filme que vai passar hoje no Rio Grande.
Ela não falou nada, nem, ao menos, desviou o rosto para o marido, e prosseguiu com a varredura. Ele repetiu as palavras, podia ser que, absorta no encargo doméstico, não o tivesse escutado.
- Ora, Hermínio, eu preciso me virar em dez, para dar conta da casa. Não tenho tempo pra conversar agora, não - ela respondeu num tom de voz mal-humorado.
Ele apenas sorriu diante do desinteresse da mulher. Mas o sorriso logo desapareceu e, em seguida, o que sentiu foi pena de vê-la fazendo um trabalho pesado, sem ninguém para ajudá-la, já sem poder contar com a força e a agilidade da juventude. Ademais, não haveria nada que lhe roubasse a felicidade em que estava, o anúncio do filme imunizara-o de qualquer agressão que sofresse naquele dia. Imperturbável, retirou-se e foi tomar um banho.
No almoço, notando Ivone mais calma, voltou a fazer a pergunta.
- Ivone, você sabe qual é o filme que vai passar hoje no Rio Grande?
- Não faço a menor idéia.
E ele eufórico, como se anunciasse a conquista de um grande prêmio:
- México dos Meus Amores, Ivone.
- É?
Dessa vez, melindrou-se um pouco com a indiferença dela ante a notícia da reexibição de um filme que tivera uma decisiva participação em suas vidas. Num átimo, sentiu-se tentado a encerrar o assunto, mas ele lhe era muito importante.
- É. Depois de tantos anos, esse filme aparece de novo. Que tal irmos assistir?
- E você não tinha deixado de ir a cinema?
- Deixei. Mas vou abrir uma exceção para esse. Só pra esse. Eu gostei demais desse filme. E você também. Hem? Que tal a gente ir revê-lo?
- Eu já vi três vezes, Hermínio. É o bastante. E não estou com disposição pra sair de casa. Agora sem empregada, vou ter que cuidar de tudo. Mas você deve ir.
Finalmente na tela o ansiado. Começaram a desfilar os nomes de Yvonne de Carlo, Pier Angeli, Cyd Charisse, atrizes que, há tantos anos sumiram das telas (a segunda até já morreu); Ricardo Montalban, que ele, às vezes, via exibindo a canastrice num seriado de televisão; Vittorio Gassman, o talentoso italiano, o único ainda em atividade no cinema, na época trabalhando em Hollywood. Num instante, lembrou-se de um filme que fizera com Elizabeth Taylor. Um dos inesquecíveis.
A história do filme evoluía e voltavam-lhe as mesmas emoções de há trinta anos. O amor proibido de Gassman (este acaba cegando) e Yvonne; o amor (também proibido, mas sem o estigma da tragédia do outro, até contendo elementos humorísticos) de Pier Angeli e Montalban; Cyd Charisse dançando no topo de uma montanha, envolta por coloridos véus, um momento de magia e sensualidade.
Paralela à ficção na tela, seguia a história do amor dele e de Ivone. Revendo o filme, também revia os momentos ao lado da moça graciosa, assistindo àquele mesmo filme. Conheceram-se poucos dias antes, durante a festa da padroeira da cidade. Ivone volteava pela praça com uma amiga. Ele parado sobre o meio-fio entre um grupo de rapazes, que observava a passagem das moças, dirigindo-lhes galanteios. Tímido, ele apenas as olhava e ria, comedido, quando alguém do grupo soltava um gracejo para as moças. Algumas riam. Outras fechavam a cara. E ainda havia as que respondiam ao galanteador. Como Ivone. Ela virou o rosto em direção aos rapazes e deu uma resposta enérgica ao autor da brincadeira. Hermínio já a vinha observando com interesse. E, naquele rápido momento, os seus olhos se encontraram. Para sempre.
O gênio de Ivone, revelado naquela ocasião, não se modificou ao longo da união. De início, causou lesões ao relacionamento, quase provocando a morte do amor. É que ele demorou a conhecer a pessoa com quem passara a conviver. Quando descobriu que o fogo que nela ardia nos momentos de raiva, não passava, no fundo, de fagulhas, ocorreu o entendimento e aí o casamento pôde ser salvo.
Ah, como gostaria de tê-la ao seu lado. Como tantas vezes estiveram diante de uma tela - fada generosa que transporta as pessoas para um mundo mágico, embora a permanência neste não dure mais que duas horas. Mas também não foram poucas as ocasiões em que tivera de viajar sozinho a esse mundo. Ivone privava-se de sair, se as crianças não estivessem entregues a uma babá que inspirasse confiança. Ela mesma estimulava-o a ir ao cinema, ele já trabalhava demais e precisava se distrair. Quase a mesma frase da hora do jantar, quando voltara a convidá-la para o cinema.
- Vá, meu velho (ultimamente vinha tratando-o assim e ele achava engraçado, pois ainda estava na faixa dos cinqüenta), você gostou tanto desse filme. Ele representou muito para você.
Representara também para ela: dúvida nenhuma disso. Por que , então, não quisera ir? Cansaço? Talvez. Vinha fazendo todo o trabalho de casa, à exceção da lavagem de roupa. Os anos, por seu turno, já lhe haviam diminuído o vigor de antes, embora não tivessem acabado com a disposição para as tarefas domésticas. Mas, bolas, eles tinham o carro que os deixaria à porta do cinema. Por que, então? Não fazia nenhuma idéia. Que maravilhoso não seria se estivessem juntos, como há trinta anos. Ivone rindo nas cenas engraçadas, chorando nos momentos dramáticos. Não lhe importava que o ardor do amor tivesse arrefecido com a passagem do tempo, como acontece a toda união, por mais forte que seja. Bastava tê-la ao seu lado, naquele instante.
O filme já atingira a segunda metade. De repente, sentiu uma sensação comparável à de um peso oprimindo-lhe o peito. Não se importou e manteve a atenção no filme. Pouco depois foi sacudido por um espasmo de dor localizada no estômago. Acreditou que fosse um sintoma de uma aerofagia crônica. No entanto, os espasmos recrudesceram e uma dor fina atingiu um dos braços. Enquanto a opressão sobre o peito tornou-se mais intensa. Ainda assim, seguia, mas já com dificuldade, o que se desenrolava na tela. Faltaram-lhe forças para gargalhar, como o restante da platéia, com uma situação hilariante. Foi, então, que uma dor violentíssima, como se fosse despedaçar o corpo inteiro, lançou-o estrondoso contra um braço da poltrona. Uma dor que podia romper-se num grito. E da garganta de um personagem o grito explodiu no cinema.


3 comentários:

Claudinha ੴ disse...

É um prazer ler e reler seus contos, meu amigo.
Neste caso, um retrato de tantas situações comuns, quando a convivência e a dureza do dia a dia nos cegam quanto às necessidades do outro e os desfechos podem ser indesejados. Envolvente, como sempre.
Um beijo!

Mariazita disse...

Querido Francisco
Preciso estar mais atenta, já que você não publica sempre à terça-feira, como habitualmente fazia, nem à segunda, como me comunicou :)
Gostei imenso deste seu conto. A escrita, em si, é, como se sabe, muito boa. O conteúdo é igualmente bom.
A análise que vc faz do evoluir dos sentimentos é muito correcta.
"que o ardor do amor tivesse arrefecido com a passagem do tempo, como acontece a toda união, por mais forte que seja." - em minha opinião esse ardor do amor é substituído por uma intensa e forte amizade, companheirismo, compreensão... sentimentos que se mantêm inalteráveis até ao final de nossas vidas.
Gostei muito do conto e do seu final inesperado.

Beijinhos
Mariazita

DILERMArtins disse...

Mas bah, Sobreira.
Seu conto doeu em mim ao reconhecer que histórias assim repetem-se no cotidiano. Amores antigos deveriam sempre trazer paz, mãos dadas, caminho único...
Obrigad por nos brindar com mais essa jóia.