"Noites Brancas", que foi exibido nos cinemas brasileiros com o título de "Um Rosto na Noite", marcou o rompimento em definitivo de Visconti com o neo-realismo. O filme foi rodado em um teatro localizado na Cinecittá, o que significava que o diretor infringia uma das normas do movimento, ou seja, a preferência pela filmagem externa. Em seguida, ele punha de lado os problemas sociais e políticos para, em lugar destes, enveredar pelo universo intimista de um homem e uma mulher. Visconti foi se inspirar em Dostoiewski, no seu conto "Noites Brancas", para narrar uma história de um triângulo amorososo entre Natalia (Maria Schell), Mario (Marcello Mastroianni) e o anônimo forasteiro interpretado por Jean Marais. Como geralmente ocorre na adaptação para o cinema de obras literárias, o cineasta (autor do roteiro, em parceria com Suso Cecchio D'Amico) fez algumas modificações do original, entre elas a de espaço e tempo: a história é passada numa pequena cidade da Itália, na segunda metade dos anos 1950. Mas essas modificações e as liberdades tomadas por Visconti não traem o tema e o propósito do conto do escritor russo. Ao contrário, o diretor soube preservar a natureza humana e existencial de dois seres solitários, à procura do sonho, do ideal de um grande amor. Mario (no conto, o seu personagem, como o do forasteiro, não tem o nome revelado e é quem faz a narrativa) chega, perto do final, a se convencer de que conquistou, naqueles três ou quatro encontros noturnos que tiveram, o coração de Natalia, quando ela julga que foi enganada pelo homem que ama, que lhe prometera voltar à cidade no prazo de um ano; no local determinado, ao qual ela vai no dia em que se completa o prazo e ele não aparece.
Tal como no conto, o filme prioriza a relação entre Mario e Natalia. Com uma participação relativamente curta, o forasteiro aparece quando Natalia conta como o conheceu (na condição de inquilino da sua avó) e aflorou o amor entre os dois, e no final, quando, finalmente, ele retorna como lhe prometera. E aí fica a impressão de que, só por uma questão de despeito, ou de vingança, Natalia deixa Maria com a ilusão de que o ama, quando, na verdade, lhe oferece apenas a amizade.
Mostrando a diferença entre a literatura e o cinema, o final do filme é superior ao do conto, embora os elementos que o compõem sejam os mesmos. Há um grito de extravazamento da alegria de Natalia, que, de imediato, corre para os braços do amado que avista parado sobre a ponte; há o olhar desolado de Mario ao ver a cena e o sobretudo preto salpicado de flocos de neve que lhe emprestara ("o seu vestido de noiva", ele dissera momentos antes) atirado no chão; e até as palavras, com uma ou outra alteração, que um diz ao outro: Natalia volta e pede que a perdoe, mas que sempre amara o outro, e ele, mesmo arrasado, retruca que ela é abençoada pelo minuto de felicidade que proporcionara ao seu coração solitário e acrescenta "não é pouco para a vida inteira de um homem".
Na concepção e realização desse filme que pode ser considerado como um divisor de águas em sua obra, Visconti pôde cercar-se de colaboradores excepcionais, além da roteirista Suso Cechio D'Amico. O cenógrafo Mario Garbuglia que recriou parcialmente uma Livorno que desse a impressão de um certo irrealismo, próximo do sonho, que convinha ao perfil psicológico e existencial daquele casal solitário. O diretor de fotografia Giuseppe Rotunno, que complementa bem esse clima de irrealidade, o compositor Nino Rota, que, anos depois, se tornaria uma presença assídua nos filmes de Fellini. E há a atuação de Marcello Mastroianni e Maria Schell, principalmente esta, que, em alguns momentos, com o seu rosto alvo, a expressão suave e meiga, às vezes, soltando uma risada de adolescente, dá um toque angelical ao seu personagem, contrastando com a figura da prostituta - um personagem criado pelos roteiristas e vivido por Clara Calamai, protagonista do filme de estreia do diretor, "Ossessione" (1942), considerado o marco inicial do neo-realismo.
Enfim, "Noites Brancas" é um dos grandes filmes de Visconti, que, não sei por que, não é valorizado como deveria. Já o vi qualificado de apenas "interessante". E no "Dicionário de Cinema - Os Cineastas", de Jean Tulard, não há sequer uma linha sobre ele.
Um comentário:
What a great resource!
Postar um comentário