Poster francês de A Mu-
lher do Rio, de Mario Soldati (1955).
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Naqueles meus primeiros meses em Fortaleza fui conhecendo os outros cinemas, além do Diogo. Conheci o Majestic e o Moderno, o primeiro no mesmo quarteirão onde ficava o Diogo, do lado oposto, o segundo na Major Facundo. Eram bem inferiores ao Diogo, sendo natural que a impressão que este me causara, ao entrar ali pela primeira vez, não tenha se repetido com aqueles dois em idêntica situação.
Eram, na verdade, considerados poeiras, onde as moças e as senhoras não entravam, para não se misturar com as raparigas que os frequentavam habitualmente. Os homens não tinham nada com isso, embora, por outro lado, o Majestic tivesse a fama de ser o preferido dos baitolas.
Esses três cinemas pertenciam à Empresa Luiz Severiano Ribeiro, assim como o Rex. Os outros cinemas faziam parte da Empresa Cinemar, assim denominada por uma curiosa particularidade: os nomes deles referiam-se a coisas ligadas ao mar. Havia o Samburá, na Major Facundo, o Jangada, na Floriano Peixoto, o Tuaçu, na Praça José de Alencar, e o Araçanga, na Barão do Rio Branco, dois quarteirões após a Praça do Carmo.
Quase dez cinemas à minha disposição! Bem, não se pode dizer exatamente à minha disposição. Eu não vivia socado dentro de um cinema, não apenas porque meus tios não deixavam (por recomendação do papai), mas também por não ter idade para ver os que eram proibidos para menores de dezoito anos. Eu ia duas vezes por semana ao cinema, ou três, esporadicamente.
De todo modo, ia sendo apresentado a filmes que jamais passariam em São Januário. E a belas atrizes que me atiçavam desejos, tanto quanto as mulheres com quem cruzava no dia-a-dia. Dessas me lembro especialmente de Sophia Loren em A Mulher do Rio. De short curto, a exibir uns coxaços, e ajustado de modo a modelar um traseiro do qual se podia imaginar só maravilhas, a italiana deixou perturbado aquele pobre adolescente. Aliás, preciso contar um fato ligado àquele filme, e assim poder fazer justiça à bilheteira do Moderno, pois, sem a generosidade dela, eu não teria recebido a dádiva de ver Sophia desfilar a cobiçada plástica.
Ela, a bilheteira, possuía um bonito corpo, apesar de ser um pouco magra. Morena, cabelos alourados que talvez não fossem naturais, e os olhos buliçosos, com um jeito de olhar para um homem que o fazia imaginar coisas. (Que bem podiam ser fundadas. Um colega certa vez comentou, durante o recreio, que ela queimava a periquita.)
Pois não é que essa dona dona começou a me olhar daquele jeito! Ela me atraía já há algum tempo. Por causa dela passei a frequentar mais o Moderno do que os outros cinemas, e a passar pela calçada, mesmo se não fosse assistir ao filme, esperando vê-la fora da bilheteria, batendo papo com o porteiro. Aquele comentário do colega ocorreu ocorreu na época em que ela começou a me botar aqueles olhos sedutores. E eu sonhava em acabar a donzelice com aquela bilheteira, mas, pobre de mim, ao mesmo tempo me convencia de que aquele era um sonho impossível de realizar-se.
Quando foi anunciado A Mulher do Rio para exibição em breve, sua classificação etária ficou estabelecida para maiores de 14 anos. Só iria completar 14 anos dali a mais de um mês e não podia perder a chance de ver Sophia na tela (já a tinha visto em revistas). Foi quando pensei na bilheteira. Quem sabe se ela não poderia me prestar aquele favor? Decidi que era melhor falar a ela com antecedência.
Escolhi um momento em que não havia ninguém para comprar ingresso. Quando apareci na bilheteria, ela deu aquele sorriso e já ia destacando o ingresso do borderô, eu disse que queria tratar um assunto com ela. Ela me olhou com um ar de supresa (talvez supondo que eu ia lhe passar uma cantada) e disse: "Estou trabalhando. Não posso ficar batendo papo com ninguém". Fiquei ainda mais nervoso, as mãos começaram a suar, devo ter mudado de cor. Não sabia se dissesse que não era aquilo que ela estava pensando, porque não tinha certeza do pensamento dela. "É uma coisa rápida", consegui dizer. "Mas você não está vendo que não é possível"? Cada vez mais nervoso, me virei rapidamente para ver se vinha alguém para comprar ingresso. Ninguém. Não podia perder mais tempo e então desembuchei o assunto. Só Deus sabe como. A sacaninha deu um sorriso irônico, depois de me ouvir, e falou: "Ah, então o meu amiguinho (ela gostava de me chamar por um diminutivo que variava a cada encontro) quer assistir filme sem ter idade. E quer que eu ajude ele a fazer isso. Não entende que eu posso perder o meu emprego"? "Se não pode me fazer o favor, não fique aí me dando lição de moral".
Disse isso e fui embora. Sabia que a minha reação tinha destruído o pouquinho de boa vontade que a bilheteira pudesse ter em me ajudar, mas não consegui conter a raiva por ter bancado o bobo.
Nos dias seguintes, ainda raivoso e também frustrado, evitei ir ao Moderno, sem sequer passar em frente. Estava disposto, inclusive, a nunca mais pôr os pés ali.
Mas numa tarde fui ao centro, pegar um relógio que tia Íris mandara consertar. A relojoaria era ali na Guilherme Rocha, já próximo à Major Facundo. Segui por esta rua, depois de receber o relógio, em direção à loja 4.400, onde iria fazer uma compra para Simone. Quando ia entrando, dei de cara com a bilheteira, que vinha portando um embrulho. Tomei um susto ao vê-la, naquele vestido preto que ela gostava de usar, pela primeira vez fora do cinema. Ela me fitou com um arremedo de sorriso, um sorrisinho encabulado. "Ainda tá com raiva de mim"? Fiquei calado, a cara fechada. "Homenzinho besta. Escuta aqui. Quando a fita tiver passando vai lá que te boto pra dentro. Viu"? Continuei mudo, olhando trombudo pra ela. "Bom, se não quiser, não vá". Ela disse e saiu a toda, procedendo quase como eu daquela vez. Parecíamos namorados.
Mas fui. Claro que fui, e logo na estreia do filme. Ela ainda tirou sarro de mim. "Pensei que não viesse". Mas me advertiu que nunca mais eu sequer pensasse em lhe pedir um favor idêntico. Prometi e cumpri a palavra.
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- Capítulo do meu romance Infância do Coração (2002).
4 comentários:
Amigão
Infelizmente não disponho de muito tempo para visitar os amigos...
Tenho pena, gostava de vir até todos os dias (que exagero!!!), mas a minha vida profissional deixa-me pouca disponibilidade.
Hoje consegui meter uma folgazita, e aproveito para dar 1 espretadela, rápida - uma rapidinha :))), tásse memo a ver...
Gostei do teu texto, embora o tenha lido assim um pouco na diagonal, que o tempo não dá p'ra mais...
Aparece. Há post novo.
Abraço fraterno
Botinhas
Querido Francisco
Estive cá ontem de manhã, mas ainda não havia post novo.
Depois pus-me a trabalhar e acabei por vir só agora...
Gostei muito deste texto, que dá para imaginar que o livro deve ser bem interessante.
Vistos a esta distância, os acontecimentos da juventude provocam um sorriso complacente; mas quando vivemos aqueles momentos...a coisa era séria mesmo!
Vou preparar a Anita para amnhã, quinta feira.
Um resto de boa semana.
Beijinhos
Mariazita
Querido amigo
Estou com bastante pressa porque vou a uma festa de aniversário, e já passa das 15 horas.
Mas quero agradecer a sua visita a minha "Casa", e convidá-lo a ir lá novamente para ler a resposta que dei a duas conterrâneas suas que se "ofenderam" com o texto que publiquei. A Renata até sugere que eu retire o post...
Vou agora sair, mas à noite irei ver o que aconteceu entretanto...
Beijinho carinhoso
Mariazita
Querido Francisco
Agradecendo a sua visita e comentário ao post Anita, gostaria de lhe dizer que:
- Anita não é volúvel. Está pensando na melhor forma de ocupar o seu tempo e espírito. Não pode mudar de ideias? Deixe-me que lhe diga uma frase dum amigo meu, que acho muito acertada - só os burros é que não mudam.
- A autora, efectivamente, gosta muito de bebés (tem verdadeira paixão), mas isso não a impede de ser isenta e contar os factos como aconteceram.
Gosto de seus comentários. Continue a aparecer.
Até amanhã (terça-feira).
Beijinho carinhoso
Mariazita
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