quarta-feira, maio 28, 2008

OUTRO EPISÓDIO NA DITADURA MILITAR

Henry Fonda e Victor Mature em uma cena de "Paixão dos
Fortes" ("My Darling Clementine"/1946)
(Texto já publicado aqui em 2006).
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Não faz muito tempo eu relatei um episódio ocorrido durante a ditadura militar, em que fui confundido com alguém caçado pelos agentes da repressão. Os que me leram naquela ocasião devem estar lembrados. Por muito pouco não fui preso e, provavelmente, teria desaparecido. Hoje vou contar outro episódio. Neste não existiu o mínimo risco de eu ser preso, apesar de ter me encontrado, por acaso, com um amigo de Natal que tivera de fugir para não ser apanhado. Eis o episódio.
Em um dia de 1969 viajei a Recife, impelido por um motivo especial: conhecer, finalmente, "Paixão dos Fortes", um dos mais belos filmes de John Ford. Entrei no cinema com o filme em andamento e tive que aguardar a sessão seguinte para vê-lo desde o início. Naquela época os filmes eram exibidos em sessões contínuas, terminava uma sessão e, com um pequeno intervalo, a seguinte era iniciada. O espectador não precisava sair da sala e comprar outro ingresso, para ver o filme de novo. Num mesmo dia, você o assistia tantas vezes quisesse, pagando apenas uma vez.
Pois bem. Nem bem as luzes foram acesas, aparece Juliano Siqueira na minha frente. Fiquei surpreso, tanto quanto emocionado, pela presença de Juliano, pois jamais me passaria pela cabeça encontrá-lo ali, ou em qualquer outro local de Recife. Juliano era um dos milhares de brasileiros que, naqueles tempos de trevas, eram caçados pelo regime militar. Durante o breve intervalo, ele conversou sem parar, sempre interessado em saber notícias dos ex-companheiros do Cineclube Tirol. E me confessou que fora ao cinema, não só pelo filme, que já conhecia, mas na esperança de me encontrar, ou a Gilberto Stabile, dois fordianos assumidos e de carteirinha assinada.
Mas a alegria, a emoção daquele reencontro perdiam-se um pouco pela apreensão que nem um dos dois conseguia disfarçar, devido à circunstância de um dos interlocutores ser procurado pelos agentes policiais. Quem viveu aquele período da nossa História há de se lembrar de que o medo e a tensão eram presenças constantes quando as pessoas, mesmo sem estarem com a cabeça a prêmio, se reuniam para uma simples conversa. Felizmente não aconteceu o pior, até o intervalo terminar. E, ao nos despedirmos, disse a Juliano para tomar cuidado.
O filme recomeçou, assisti-o até o final. Saí do cinema duplamente emocionado: pela grandiosidade de "Paixão dos Fortes" e pelo inesperado encontro com Juliano. Voltei a Natal um ou dois dias depois. Mas Juliano não deve ter seguido o meu conselho, ou os brucutus da repressão foram mais eficientes. Pouco tempo depois soube que ele fora apanhado. Passou cinco anos na prisão. Menos mal que conseguiu sobreviver. E hoje está morando em Natal, depois de passar uma longa temporada no Rio.
Foi isso.

3 comentários:

Anônimo disse...

Sobreira,

gostei bastante do seu relato sobre sua chegada a Natal e a vida que alí era levada, há quarenta e poucos anos. Depois, encantei-me com Os guarda-chuvas do amor, que conheço apenas de resenhas, mas nunca ví. E gostei especialmente deste episódio ocorrido durante a ditadura militar, a qual acompanhei, embora ainda fosse um menino. Mas guardo a lembrança dos comentários em casa, pois meu pai dizia-se comunista e toda a família vivia preocupada com a mania que ele tinha de dizer isso a quem quisesse ouvir. E a quem não quisesse também.

Grande abraço.

Conceição Paulino disse...

a memória me atraiçoa,mas creio k li esta história num de seus livros. se nãao foi , foi aqui. Bem narrada e apesar da leveza da alegria do reencontro sente-se o peso do temor.
Bjs
Luz e paz amigo meu

P.s. Já passou no Eremitério (http://eremiterioblogspot.blogspot.com/)

david santos disse...

Olá!
Bom trabalho. Embora tenha acompanhado parte de algum desse viver, não posso fechar os olhos, ao contrário: quero recordar.
Parabéna.