sábado, maio 26, 2007

UM CAFÉ DA MANHÃ PARA MENDIGOS


Eu devia ter uns 8 pra 9 anos. Passados mais de 50 anos, é normal que a memória tenha retido pouquíssima lembrança daquele dia. A certeza que tenho é que foi num dia útil. Nem a hora exata posso lembrar. Deve ter sido entre oito e meia e nove da manhã. No máximo. Sei que a mesa de refeições da nossa casa estava posta, o bule de café com leite, pão e manteiga. E um a um eles foram chegando. Quantos eram? Não sei. Talvez uns dez, ou quinze, mas pode ter sido um pouco mais. Quem sabe doze? O número de apóstolos na última ceia de Cristo. E a mamãe bem poderia ter escolhido esse número, tão religiosa que era, assistindo missa diariamente, além de rezar em casa em frente ao "santuário". O que sei é que logo eles estavam à mesa. Aqueles homens que eu encontrava na rua pedindo uma esmola pelo amor de Deus, nas sextas indo bater à porta das casas. Agora eles (ou a maioria deles) estavam ali sentadinhos à mesa onde fazíamos as refeições. Os meus olhos infantis se arregalavam presenciando aquela cena.
A mamãe tinha pedido uma graça (provavelmente a São Francisco de Assis, o padroeiro da cidade) e se a alcançasse, ofereceria um café da manhã para alguns mendigos. Nunca soube qual foi a graça pedida e alcançada. Menino, não me interessei. E, adulto, nunca me lembrei de perguntar a ela. E será que ela diria? (Também não me lembro, embora a graça fosse para mim, de uma promessa que ela fez. Um certo ano eu tive que acompanhar as bandeiras da festa de São Francisco vestido com um hábito usado pelos frades franciscanos. Mas me lembro bem da minha vergonha de usar aquela vestimenta, com medo da mangação dos amigos. Felizmente o sacrifício foi apenas no decurso de uma festa Nas outras não se repetiu.)
Quero crer que eles estivessem vestidos com a roupa mais apresentável e estivessem limpos. Devia ter sido uma exigência da mamãe. E eu vendo aqueles homens (deveria ter alguém do sexo feminino) que sempre encontrava em andrajos. se refestelando com aquela refeição simples, mas que, para eles, representava uma banquete. (Segundo um irmão, já perto dos 20 anos, que ainda não saíra de casa, e comentou o assunto durante algum tempo, um deles não pôde conter a satisfação e revelou que nunca na sua vida tomara uma refeição como aquela. Coitado!)
Não posso me lembrar. Mas imagino que eles não estavam à vontade naquela casa que para eles era de uma família rica. Certamente, um pouco (ou um tanto?) envergonhados com a presença da minha mãe e de alguns de seus filhos. Mas iam tomando o café com leite e comendo o pão com manteiga. Terminada a refeição, foram saindo devagarinho. Como vou me lembrar se agradeceram à mamãe, se lhe desejaram muita saúde e à família? Essas palavras de agradecimento que os pedintes dizem quando recebem uma esmola Mas acredito que o tenham feito. E, talvez tanto quanto eles, minha mãe tenha ficado feliz por proporcionar um momento único na vida daqueles despossuídos, daqueles pobres de Deus.
Eu já residia em Natal quando assisti "Viridiana", de Buñuel. E na sequência do jantar oferecido aos mendigos pelo personagem-título, na mansão do tio, de imediato me veio à lembrança aquele café da manhã em minha casa.

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