sábado, outubro 21, 2006

O ÚLTIMO DIA


Amanhã almoçar desassossegado, os olhos pinguepongueando entre o prato e o relógio. O ônibus lotado vai parar em cada esquina, deixá-lo nervoso com o tempo se escoando. E no entanto vai chegar ao Banco antes da hora. Assinar o ponto, ir para o birô e começar a trabalhar. A tarde toda se levantará milhões de vezes com o retinir da campainha, um documento pra deixar ali, outro documento pra deixar acolá, outro para o Gerente, que o receberá de cabeça baixa, não se dignando jamais a olhar pra ele. No fim do expediente estará muito cansado e muito emputecido. Só que só terá amanhã e pronto. Será a última vez que engolirá a comida e se espremerá no ônibus e obedecerá a uma campainha enervante.
- O seu nome é essa bichinha aqui em cima da mesa. Quando eu tocar, é pra atender imediatamente.
Um chefe lhe gritara na frente de todo mundo, baixara a cabeça, não revidara, mas nunca esqueceu a humilhação. Quando o chefe morreu, foi o único da seção a não ir ao enterro.
Trinta anos tem isso. No começo, uma cidadezinha perdida no alto sertão. O Gerente ditador foi logo lhe advertindo na apresentação.
- O sr deve dedicar-se inteiramente ao Banco. Fique ciente de que não há dia nem hora impróprios para essa dedicação. Portanto, nada de corpo mole. Aqui eu exijo trabalho. Trabalho e pontualidade. Pode ir-se. Há bastante trabalho à sua espera.
Mentiroso aquele Gerente não era. Trabalho nunca faltava, até aos domingos. O homem tinha uma devoção doentia pelo Banco. Tinha suas obrigações, e não eram poucas, e ainda se dava tempo de andar de funcionário em funcionário, fiscalizando, ordenando, cobrando eficiência. Sofreu o diabo nas garras daquele fanático. No dia em que casou, trabalhou até quase a hora de ir pra igreja, só folgara o domingo, na segunda bem cedo já estava trabalhando. O primeiro filho nasceu, o segundo nasceu, quem disse que gozou folga?
- O Banco não tem nada que sua mulher viva parindo feito gata.
Filho duma puta. Hoje deve estar pra lá do inferno. Reviu-o já aposentado, um velho de pés arrastando, a cara abobalhada de quem o cargo sugou toda a dignidade. Veio apertar humilde sua mão e não teve coragem para recusar o cumprimento.
Veio transferido para a capital, quando ela nem tinha pretensões de crescer ao ponto que cresceu. Casa perto do Banco, num trecho de pouco tráfego. Não durava mais de dez minutos a caminhada para o Banco, mas nunca se serviu disso para entrar em cima da hora, tinha se habituado com a pontualidade exigida pelo primeiro Gerente.
- O sr assinará na folha suplementar. Assim aprenderá a ser pontual.
O Chefe o punia por se atrasar cinco minutos. Um dilúvio caía sobre a cidade, mas o Chefe não perdoou. Nunca mais chegou atrasado, chovesse como chovesse, nem quando teve de mudar para distante do Banco.
Na capital, o Gerente não tinha tempo de fiscalizar os funcionários, como o Gerente da cidadezinha. O Subgerente é que cumpria essa função. Foram muitos, cada um parecia querer superar o outro em rigidez. Havia os cupinchas do Subgerente que lhe denunciavam os colegas faltosos. Um era contínuo, como ele. Se fazia íntimo dos colegas, para ouvir um desabafo que fosse para informar ao Subgerente. Os colegas foram descobrindo, trancavam o bico, o delator inventava. Um dia foi chamado pelo Subgerente. O homem lhe pregou um sermão muito comprido e terminou lhe comunicando que ele passaria a entregar a correspondência.
O novo trabalho era mais duro. Ia aos locais mais distantes. A alguns o ônibus não chegava, tinha que caminhar por um compacto areal, enchendo os sapatos de areia. Noutros tinha que atravessar um lamaçal. Entregava toda a correspondência, não fazia como aquele colega que atirava no rio as cartas dos destinatários mais distantes. Chegava em casa tão cansado às vezes, que ia direto pra rede. Foram dois anos nesse trabalho. O Subgerente só o tirou quando se viu satisfatoriamente vingado.,
Vingado estaria amanhã. Depois de trinta anos, um velho sem ter idade de velho. O Banco lhe roubara toda a força, até o respeito que um homem merece. De uns tempos para cá estava ficando distraído, errava o serviço. Os gozadores riam e se divertiam, e os superiores insinuavam que já estava no tempo de se aposentar. Quando requereu a aposentadoria, notou que haviam ficado felizes. Ele sim iria ficar feliz, largando aquela prisão. Ninguém talvez merecesse tanto a aposentadoria.
Os olhos se demoraram no revólver guardado na gaveta. Todo dia o via quando ia coletar os papéis da mesa do colega.Via-o de relance, agora olhava para o revólver atentamente. O pensamento chegou de repente. Vinha se despedir do colega, mas ele tinha saído. O expediente estava perto do fim. Os olhos pregados no revólver. O pensamento. O colega não chegava. Acariciou o revólver. O pensamento. O colega não chegava. Olhou rápido para os lados. Ninguém. Arrancou o revólver e o enterrou no bolso.
- Meu chefe!
O Gerente levantou a cabeça (dignou-se olhar para ele). Os dedos trêmulos acionaram o gatilho. Levou a outra mão para apoiar o revólver e disparou toda a carga no corpo do homem. Ficou olhando a cabeça tombada no birô, até juntar gente.
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Este meu conto foi extraído do livro "Cinco Contistas Potiguares", edição da Fundação José Augosto, de 1976, livro esse que resultou de um Concurso Literário promovido por aquela Entidade.

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