quarta-feira, agosto 09, 2006

AQUELE CASAL


Todos os dias, no finzinho da tarde, eu os via passar. Ele alto, musculoso, mas com um excesso de banhas na barriga e na bunda, que comprometia a perfeição do corpo. Ela miudinha, o biótipo do anão, em que se sobressaíam as pernas curtas, mais para magra do que para gorda. Ambos, morenos, tinham um rosto não só comum, mas também desprovido de beleza, o homem com uma venta enorme, cujas narinas viviam cheirando o lábio superior, enquanto a da mulher era curta e em forma de uma batata. Ninguém na minha rua resistia à atenção que aquele casal díspar despertava, e a passagem dos dois reunia um grande número de curiosos. Era inevitável que surgissem as brincadeiras. Alguém os apelidou (impropriamente, como se vê) de Tarzan e a macaca Chita. Outro disse uma vez que o homem podia tomar a companheira pelas mãos e, com ela, surrar os filhos, não precisando de relho para isso.
A descomunal diferença física daquele casal, por si só, já seria bastante para atiçar a curiosidade de todos nós. Mas além dela, existia um outro atrativo que tornava a passagem deles aguardada com ansiosa expectativa. Era o bate-boca entre os dois, uma coisa tão certa de acontecer como a noite suceder ao dia. Assim foi durante todo o tempo (uns poucos anos) que os vimos passar pela nossa rua. Era uma coisa divertida e ao mesmo tempo enigmática. Qual era o motivo da discussão? Ou haveria cada dia um motivo? Ouvíamos apenas umas poucas palavras, pois eles andavam ligeiros e numca paravam. Afastados um do outro, ele à frente, ela um pouco atrás, passavam por nós envolvidos numa altercação. Em mais de uma ocasião, eu vi a anãzinha soltar uma risada sarcástica, provocada por algo dito pelo grandalhão. Espantoso ver a coragem dela, enfrentando aquele gigante, de cabeça erguida e sem se calar um só instante.
Outro enigma que permaneceu indecifrado foi o de sempre aparecem juntos por nossa rua, àquela hora. Somente aos sábados e domingos não os víamos passar, daí termos deduzido que os dois vinham do trabalho. Mas será que trabalhavam na mesma empresa? Ou a mulher ia buscar o marido todos os dias? Não sei, ninguém jamais soube.
Via-os apontar entre cinco e quinze e cinco e meia da tarde, uma hora em que o bar estava vazio e eu podia ficar na calçada para observá-los. As calçadas vizinhas ficavam tomadas pelos curiosos habituais e aqueles que viam a cena pela primeira vez e passariam a integrar o grupo. Essa pontualidade do casal terminou por transmitir às pessoas do nosso meio uma referência temporal, que se revelou muito útil nas questões em que era necessário estabelecer uma verdade horária. Se alguém assegurava que a ocorrência se dera a determinada hora (ou antes, ou depois da passagem do casal), a discussão era imediatamente encerrada.
A rotina gruda-se na vida de todos nós de uma tal maneira, que não temos força para nos livrar dela. Ficamos tão acostumados à passagem daquele casal, que sentíamos a sua ausência nos sábados e domingos. Quando chegava a segunda-feira, ficávamos aguardando a hora de eles aparecerem, numa nervosa ansiedade. É, pois, compreensível a nossa preocupação quando, de repente, o casal deixou de aparecer. Foi numa quinta-feira (o fato de me lembrar, com exatidão do dia , revela a atenção que dedicávamos àquele casal) que notamos a ausência deles. Atribuímo-la a um desses acidentes que ocorrem no cotidiano das pessoas - uma doença sem gravidade, por exemplo - que obrigara o homem a faltar ao trabalho, e esperamos que no dia seguinte eles aparecessem. A sexta-feira chegou, expectantes nos postamos nas calçadas, e eles não passaram. Do mesmo modo nos dias úteis que se sucederam.
Às vezes ponho-me a pensar em como a vida da gente começa, de repente, sem a gente esperar, a sofrer influência de uma pessoa, ou de algo qualquer - até de um objeto. A ausência daquele casal começou a mexer-nos os nervos. Cada dia amanhecíamos na esperança de que naquela tarde, finalmente, eles reapareceriam, íamos para a calçada quando se aproximava a hora e só nos restava o desapontamento. Ao completarem três semanas, começamos a perder as esperanças e a temer que algo de muito sério acontecera. Só pensávamos em duas hipóteses: na morte de um deles, ou numa separação. No entanto, poucos dias depois estava atendendo no caixa, quando um papudinho habitual do bar surgiu na porta e gritou chega seu Ernani vem ver aqueles dois. Larguei o caixa e corri para a calçada, onde já encontrei muita gente. E lá vinham eles. O homem à frente, a mulher um pouco atrás, empenhando-se em acompanhá-lo, os dois discutindo. Em cada um de nós ressurgiu o riso de alegria, há muitos dias desaparecido.
A rotina voltou - mas era uma rotina que não nos pesava, porque a visão diária daquele par excêntrico, sempre em guerra, tornara-se necessária às nossas vidas. Todas as tardes, às cinco horas, corria para a calçada, à espera do casal. Via os vizinhos também em suas calçadas, presas da mesma expectativa. Era vermos os dois apontar, e os rostos de todos nós se iluminavam. Quase sempre nos comportávamos com discrição, mas, às vezes, alguém mais extrovertido soltava uma risada, que eu temia que enfurecesse o gigante, o que, felizmente, nunca aconteceu. Tenho para mim que o assunto em discussão prendia-lhes toda a atenção e nada mais importava para eles.
Muito tempo depois da reaparição do casal eu adoeci e precisei fechar o bar por alguns dias. Preso em casa, intermitentemente pensava nos dois. E era inelutável, quando chegava a hora de eles passarem, rever mentalmente a cena que se repetia todas as tardes. Quando voltei a trabalhar, a primeira coisa que fiz foi saber notícias dos dois. O papudinho me informou que eles não apareciam há varios dias, para ser preciso, desde o dia em que fora para casa doente. Levei na brincadeira: vá ver que eles souberam que eu estava doente e tiveram a gentileza de não me privar da presença deles. Mas os dias foram passando e nada do casal. A exemplo daquela vez em que eles tinham sumido, começamos a ficar preocupados. A preocupação evoluiu para quase desespero, quando vimos ser ultrapassado o prazo que tacitamente determinamos para o retorno do casal, ou seja, o mesmo tempo em que eles tinham desaparecido na primeira vez, e continuaram ausentes. Perguntei a inúmeras pessoas por notícias deles, mas ninguém sabia onde moravam ou trabalhavam - todos os que viviam ou trabalhavam naquela área só os conheciam de vista. Os dias foram passando e com eles instalou-se em nós a certeza de que nunca mais botaríamos os olhos naquele casal. Começamos a lutar por nos conformar àquela perda. Agora, aquele casal estranhíssimo passaria a viver na memória de todos nós, até chegar o dia em que se deixaria de falar nele.
Quando foi numa tarde de sábado levei um susto daqueles ao ver entrar no bar a mulher. Sentou-se e pediu ao garçom uma coca e um sanduíche. Lá do caixa fiquei observando a nanica.O tempo todo de cabeça curvada para a mesa, como se estivesse procedendo a um exame acurado da toalha. O garçom trouxe o dinheiro da despesa e lhe disse que eu mesmo entregaria o troco. Ao lhe passar o dinheiro, perguntei pelo companheiro. Sem me olhar, ela disse ele morreu. Morreu? repeti como um eco. Ela deve ter achado desnecessário acrescentar alguma informação e foi se erguendo rapidamente da cadeira. Estávamos frente a frente, a mulherzinha virou-se para ir embora, sem levantar os olhos. Notei que esquecera o troco na mesa e avisei-a. Ela voltou-se, apanhou o dinheiro e, antes de sair, fitou-me, como se fosse me agradecer, mas não disse uma palavra. E pude ver que seus olhos estavam úmidos.
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Conto extraído meu livro Clarita (1993)

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