domingo, março 05, 2006

NOITES DE CIRCO (Gycklarnas Afton/1953)


Sabe-se que um dos propósitos da arte é provocar, incomodar, remexer os sentimentos mais íntimos das pessoas, deixá-las refletir sobre o que lhes foi mostrado e revelado. É claro que o artista, às vezes, se excede, carrega demais nas tintas, e o seu intento perde muito da eficácia pretendida. "Noites de Circo", de Bergman, agora lançado em DVD, é um filme exemplar nesse desígnio da arte, sem, no entanto, pecar pelo exagero, pelo excesso. Essa história de uma companhia de um circo mambembe é composta de personagens humilhadas, sem perspectivas de melhoria em suas vidas, exploradas, expostas ao ridículo e à zombaria, e com uma tendência para o masoquismo. Embora o enfoque narrativo se concentre nas figuras do diretor do circo, Albert (Ake Gronberg), e sua jovem amante Anna (Harriet Andersson), é, a meu ver, o palhaço Frost (Anders Ex) o personagem-símbolo desses pobres viventes, vítima da infidelidade da esposa. Quando o filme começa, a leviana mulher já abandonou o marido. E numa sequência em flashback, ficamos sabendo da vergonha e humilhação a que submeteu o marido, ao se banhar, despida, num rio na companhia de oficiais do exército. E a cena em que ele retira a esposa do rio e leva-a de volta ao lugar onde o circo está armado, é uma das mais fortes já mostradas pelo cinema. O palhaço conduz a mulher, como se estivesse carregando uma cruz, e a expressão do rosto dela é a de alguém que, mais do que condenação, inspira compaixão.
Sobre "Noites de Circo" falou-se, na época do seu lançamento, da presença de um expressionismo tardio. De fato, as figuras de Albert, feio, de uma gordura balofa, de Frost, que sempre aparece com a indumentária de palhaço, do anão, do ator de teatro (com quem Anna trai o amante), seja nos gestos, seja nas expressões faciais, e ainda como presas de um destino cruell, inelutável, lembram personagens da Escola surgida nos anos vinte na Alemanha. E Anna, em certo moment, usa uma forma de penteado que chega a lembrar a Lulu de "A Caixa de Pandora", de Pabst.
Esse filme também é, hoje, considerado o marco inicial da evolução de Bergman, até às alturas em que hoje é colocado na história do cinema. No entanto, um ano antes, ele já mostrara em "Mônica e o Desejo" (com a mesma bonita Harriet Andersson), "Quando as Mulheres Esperam" e "Juventude" (o mais fraco dos três) as qualidades e as preocupações temáticas que anunciavam o nascimento do grande artista que viria a ser.
Para terminar, uma curiosidade. "Noites de Circo" representa o início da parceria de Bergman com Sven Nykvist, um dos gigantes da fotografia no cinema, que emprestou também o seu grande talento a outros (poucos) diretores, como Woody Allen, na época em que este intentou imitar o cineasta sueco.

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