O anugo Horácio Paiva enviou-me um poema do espanhol Antonio Machado (1875-1939), e outro dele próprio . Os dois textos ocuparão, hoje, este espaço. Vamos a eles.
O LIMOTEIRO LÂNGUIDO SUSPENDE
O limoeiro lânguido suspende
uma rama pálida, poeirenta
sobre o encanto dessa fonte límpida
e submersos sonham nela
os frutos de ouro.
É uma tarde clara,
quase de primavera,
morna tarde de março
que o hálito de abril próximo leva:
estou sozinho no pátio silencioso,
buscando uma ilusão cândida e velha,
alguma sombra sobre o branco muro,
uma lembrança no peitoril de pedra
da fonte adormecida, ou, no espaço,
o vaguear de uma túnica ligeira.
Flutua no ambiente dessa tarde
esse aroma de ausência,
que diz à alma luminosa: nunca,
e ao coração: espera.
Esse aroma evocativo dos fantasmas
das fragrâncias virginais e já desfeitas.
Oh, sim, recordo-te, tarde alegre e clara,
quase de primavera,
tarde sem flores, quando me trazias
o bom perfume da hortelã-pimenta
e da boa alfavaca
que em vasos minha mãe tinha à nossa beira.
Que viste eu mergulhar minhas mãos puras
nessa água serena,
para alcançar os frutos encantados
que hoje sonham na fonte que os espelha...
Sim, conheço-te, tarde alegre e clara,
quase de primavera.
ANTONIO MACHADO
Tradução de José Bento
ALMAS
"Animula, vaguka, blandula"
(Adriano)
podem dizer o que quiserem
dessas almas cansadas
sobretudo aquelas
que não se deixam conhecer
chegam de repente
e num átimo somem
e logo recuam
à infância deserta
podem dizer o que quiserem
mas não as quero perder
elas talvez me expliquem
em que mundo vivi
em que horizontes deixei
secar a memória
viveram tão pouco
e ficaram à deriva
neguei-lhes o corpo
que sem forças pediam
de sua vida breve
entre malvões e papoulas
lembro só o perfume
cada vez mais distante
mas outras têm o cheiro
de algum brinquedo antigo
como deixei que seguissem
sozinhas e sem rumo
se ainda para elas
havia a esperança?
...
vejo-as cansadas
e já não assustem
com a sua aura fria
de gastos desafios
HORÁCIO PAIVA
(Do seu livro Navio Entre Espadas - O SOM IMÓVEl, a sair)
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