domingo, abril 18, 2010

CINE CANINDÉ

Foto de uma sessão do Cine Canindé.
Fonte: kanindecultural.jmdo.com/



Ficava na praça da Basílica (o nome legítimo da praça não lembro, mas era por essa denominação que ela era conhecida). Do lado esquerdo, a duas casas da esquina, onde ficava o bar do Seu Zuil, administrado pelo irmão Nenen. Cine Canindé. Ali começou o meu amor pelo cinema, vendo seriados, banguebangues, Jim das Selvas (com o ex-Tarzan Johnny Weissmuller) e outros gêneros de filme. E me deparei, nas sessões de quarta (ou quinta), sábado e domingo com alguns espectadores curiosos. Uns chatos, como aquele que via o filme lendo as legendas em voz audível , nem sempre usando a pronúncia certa das palavras, como quando dizia dolares. Havia a senhora que morava na casa vizinha e entrava no cinema com o soar do gongo, conduzindo uma cadeira. Alguns que sempre ocupavam a mesma cadeira. E vez por outra um menino tinha visto o filme em Fortaleza, e, ao revê-lo no nosso cinemazinho (provavelmente como uma forma de gabolice por ter conhecido um cinema da capital), antecipava o que ia acontecer numa cena.
Nos créditos da maioria dos filmes aparecia o nome de João Branco, como o responsável pelas legendas. Esse nome era uma garantia para os meninos da boa qualidade do filme. Ah, a ingenuidade, a inocência infantis que os adultos perdem e, por vezes, lhes fazem tanta falta!
A figura mais curiosa, no entanto, do Cine Canindé era o seu proprietário, César Campos. O homem mais rico da cidade. Além do cinema, possuía a melhor loja de Canindé, um posto de gasolina, um bar-restaurante, fazenda, imóveis. Antes de começar a sessão, ficava na escada que dava acesso à sala de projeção. Sozinho, olhando para frente, talvez pensando em negócios. Numa hora invariável da manhã, vinha caminhando da loja até sua casa, que ficava depois da nossa, para almoçar. Caminhava pelo meio da rua, sem cumprimentar ninguém. Talvez um ou outro conhecido, com um leve balançar de cabeça. As pessoas o tinham por orgulhoso, mas hoje creio que não o era. Esquisitão, sim. Ou tímido.
Sua parca comunicabilidade causou, nos primeiros tempos de casado, um sério incômodo em Dona Julinha. Ela chegou a se queixar a um irmão e sócio de César na loja, pedindo-lhe ajuda. (Chico Campos era um antípoda de César. Comunicativo, espirituoso e de uma cortante ironia para com os desafetos.) Chico atendeu ao pedido da cunhada e parece que, depois da conversa que tiveram, o comportamento de César com a esposa melhorou.
Mas, apesar do seu jeitão, César tinha alguns amigos, entre os quais o meu pai, que sempre falava bem dele (no futuro ocorreria um estremecimento nas relações entre os dois, acho que por questão de negócios), até revelando uma faceta insuspeitada do seu temperamento: o senso de humor. Ele tinha um amigo que nascera aqui em Natal, mas chegara a Canindé vindo de outra cidade do Ceará, com o qual ia toda tarde tomar cerveja no bar do Maciel. Sempre a uma determinada hora, como ocorria quando vinha para casa almoçar.
Enquanto morei em Canindé, nunca recebi um cumprimento dele. Tudo bem, era uma criança e se César não cumprimentava a maioria dos habitantes adultos, não iria fazê-lo com uma criança, ainda que fosse filha de um dos seus poucos amigos. Mas o Chico, por exemplo, me cumprimentava e muitos outros homens também.
Mas uma noite, eu já estudando em Fortaleza, entrei numa farmácia, e qual não foi o meu espanto ao encontrar ali o César. Usava um terno (branco, se não me engano), e talvez tivesse vindo de um cinema. Ou indo. Estava recostado ao balcão, esperando Dona Julinha ser atendida. Ao me ver, balançou a cabeça e esboçou um sorriso.

19 comentários:

Jacinta Dantas disse...

Ei Francisco, bom dia!
E, por aqui, o dia começa bonito, com uma temperatura agradável que me remete aos tempos da infância. E, por falar em infância, vou entrando no seu texto e sentindo a nostalgia que nele vejo. Nostalgia de tempos vividos...tempos diferentes quando se viveu uma outra vida, numa outra pessoa(o ser criança/adolescente) que hoje é uma parte de você. Ah nostalgia!
...
Pois é, Francisco, você acaba de me proporcionar uma bela leitura logo pela manhã. Obrigada.
Grande abraço e um bom domingo.

Bené Chaves disse...

Sobreira: enquanto vc assistia os seus seriados no cine Canindé, eu, aqui em Natal, os assistia no cine São Luiz, no bairro do Alecrim, onde hoje funciona o Banco do Brasil.
E antes das sessões ficava trocando 'figurinhas'com os garotos de minha idade.Bons tempos aqueles, bons tempos!...

Um abraço...

Obs: os imeios que mando pra vc voltam todos. Algum problema?

nina rizzi disse...

Sobreira, que bonito :) eu adoro reminiscências, vc sabe. e que foto garimpou, hein! maravilha!

olha, ontem passeava pelo velho centro da fortalezabela e me quedei no cine são luíz, como aquilo é lindo, né. a arquitetura, as escadas e a opulência. quase me ajoelhei em agradecimento aos céus pelo espaço não ter virado igreja... rsrsrs...

mas não foi só ai. estive na igreja do rosário, na fortaleza antigo schonnerborck, prisão de d. bárbara de alencar, o antigo cassino que hoje é restaurante, o museu do ceará... coisa mais linda tudo, uma saudade dos (teus) tempos que não vivi. tenho cada vez mais certeza que sou uma musa tardia... rsrsrs...

lembrei de vc. e do seu livro. tirei umas fotos e vou fazer algo por estes dias. te ellenizar.

um beijo, viu.

nina rizzi disse...

ah!!! estive também no sobrado dr. josé lourenço. o maior prédio no final do XIX e início do XX. na década de 1940 foi uma "casa de recurso". tou fascinada cm essa história. vc sabe algo, ou mesmo "visitou" o local? rsrsrs...

outro beijo.

DILERMArtins disse...

Mas bah, Sobreira.
Que linda crônica para ser lida nesse final de manhã de domingo, entre um chimarrão e outro.
Suas reminicências não raro, coincidem com as minhas; no Cine Theatro Apolo, em PelotasRS, havia um expectador frequênte cuja esposa era analfabeta, ele lia em voz alta para que ela entendesse o filme. Era terrível, você acabava de ler e vinha a voz, como um eco, repetindo tudo! Eu mudava de lugar na hora.rsrs.
Obrigado por copartilhar e um abração.

Jota Effe Esse disse...

Mais gostoso do que isso, só isso mesmo, ler essa narrativa com detalhes de saudade. E a foto do Cine Canindé em plena atividade? Digna de uma moldura. Meu abraço, amigo!

Claudinha ੴ disse...

Querido Sobreira! Lembranças de sua Canidé... Sabe que tive alguns conhecidos assim que nao cumprimentavam, mas depois que entrei na faculdade bem novinha, fiquei na mira destas pessoas, daí, eu só continuei amiga de quem era amigo antes. Hahaha. E sempre tinha um chato que contava as cenas... Um dia me lembro de meu pai falar com rispidez "desinfeta" para um menino assim. Eu me assutei, pois ele não fazia estas coisas...
Esta nostalgia dos cinemas eu trago comigo, como bem sabe. Minha época, uma outra depois da sua, afinal você quase pode ser meu painho virtual, mas o sentimento é o mesmo. No dia que destruíram o cine Pax e fizeram uma loja no lugar, eu chorei! Você nos mostra seus passos e eu fico lisonjeada com isto!
Um beijo! Ótima semana!

. fina flor . disse...

Querido,

hoje em dia ninguém lê a legenda em voz alta, mas, atende celular =/

#adoro cinema de rua!

beijos e boa semana

MM.

Anônimo disse...

quê isso, sobreira... eu queria saber se de repente não tinha "ouvido falar" do chateau. de visitação tava frescando... rsrsrs...

saudade, viu. um beijo.

nina rizzi

www.pedradosertao.blogspot.com disse...

Já gosto de cinema e fico imaginando se tivesse vivido conforme aponta em suas narrativas! Lembrei-em de quando cheguei em Fortaleza, em janeiro de 83. Dois dias depois, estava no Cine Luís (não há quem não goste!)assistindo ao filme E. T., mesmo sendo uma menina ainda, fiquei encantada com o luxo do prédio...Tenho detalhes da cena...vivinhos na mente. Abração

Mariazita disse...

Querido Francisco
Gostei muito de seu relato duma época já longínqua, mas que sabe bem recordar.
Interessante o que vc diz desse tal senhor César Campos, que alguns chamavam de orgulhoso. Muitas vezes acontece pessoas parecerem orgulhosas, e afinal são, simplesmente, tímidas.
São os diversos comportamentos humanos.

Beijinhos de boa noite

Ilaine disse...

Uma linda viagem ao passado, Francisco. E sempre o cinema presente em sua vida e de forma intensa. Uma delícia de leitura. Pura nostalgia.
Beijo

Vanuza Pantaleão disse...

Olha o Ceará aqui!
E bem representado com as crônicas deliciosas do nosso Sobreira.
Pois é, amigo, quem não conhece as peculiaridades do povo nordestino não sabe o que tá perdendo. Vai perder o Cine Canindé (foto ótima), vai perder o César, perderá o Brasil.
Borges sempre declarava - isso irritava os argentinos - ser um cidadão do mundo. Mais que isso, Patrimônio e um Exemplo a ser seguido. Retraído, mas gentil. Amigo fidelíssimo e...enfim, tudo o que já sabemos e amamos.
Feriado bom aí, amigo!!!Bjsss
[sou amiga da família Pontes aqui no Rio, você conhece? Ele são daí]

Vanuza Pantaleão disse...

Errinho besta, rs:
"ELES"
Perdão!

Dilberto L. Rosa disse...

Reminiscências cinematograficamente lindas, meu caro: parabéns! Mas será que este Sr. César Campos era tão louco por dinheiro como o inescrupuloso dono do cinema Paradiso (inevitável lembra-se desse filme lendo esta tua crônica, não é mesmo, meu caro?!)? Abração!

Marco disse...

Caro amigo Francisco,
claro, você já percebeu que adoro ouvir causos e história antigas.
Ver a foto e ler as historinhas que você contou sobre a plateia do Cine Canindé, me trouxe boas lembranças dos cinemas de minha infância e adolescência...
Seu jeito memorialista me agrada profundamente. Tenho certeza de que gostaria muito de me sentar numa roda de pessoas e te ouvir contar estas histórias.
Carpe Diem. Aproveite o dia e a vida.

Unknown disse...

Olá!

Meu nome é Douglas Santos e trabalho na agência publicitária Núcleo da Idéia Comunicação. Gostaria de um e-mail para que possamos entrar em contato direto. Por favor, envie para mkt9@nucleodaideia.com.br

Aguardo resposta e agradeço pela atenção.

Francisco Sobreira disse...

Douglas,
Seria possível você dizer o motivo pelo qual deseja que entremos em contato? Se você puder fazer isso, lhe enviarei uma mensagem. Boa noite.

Vanuza Pantaleão disse...

"As pessoas o tinham por orgulhoso..."

Francisco, querido, você coloca uma percepção aguçada nos seus personagens. Isso de rotular as pessoas é um negócio muito sério. Se o cara é fechadão, é orgulhoso, se o oposto, é xereta, abusado.
Carlitos, lá de cima, que nos proteja![risos]
Obrigada, amigo!
Final de semana dos bons!!!Bjsss