terça-feira, maio 26, 2009

AQUELE FILME

Foto de Fortaleza em meados da década de 1950.
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E à medida que o ônibus avançava pela cidade , em direção à agência, ia aumentando o fluxo de automóveis e ônibus. Ao mesmo tempo a cidade se revelava para mim, exibindo casas de estilos arquitetônicos que eram novidade para os meus olhos, assim como os edifícios. Estirava o pescoço para não perder nada daquele espetáculo que me era apresentado pela primeira vez, enquanto Stela o olhava com o ar indiferente de quem se habituara a vê-lo. Em alguns cruzamentos de ruas chamou-me a atenção a presença de um guarda, a fazer movimentos com os braços que obrigavam os veículos a parar ou seguir. Pessoas apressadas atravessavam as ruas.
Quando chegamos à agência, descemos, Stela pegou a bagagem e a conduzimos até um automóvel estacionado próximo do ônibus. Stela ajustou o preço da corrida com o motorista e em seguida nos aboletamos no banco traseiro. Era um carro pequeno, marca Prefect, parecendo já um tanto usado, e talvez a minha irmã o tenha escolhido por causa do preço mais baixo da corrida.
Era um carrinho bem modesto aquele, mas o fato não fez nenhuma diferença para quem nunca tinha entrado num automóvel. Me encostei à janela e novamente grudei os olhos na paisagem, enquanto o Prefect percorria as ruas.
Nos hospedamos na casa do tio Alberto, irmão da mamãe. Era lá onde a minha família ficava quando ia a Fortaleza. Meu tio estava trabalhando quando chegamos e fomos recebidos por tia Íris. Stela tornara-se hóspede habitual da casa, por causa das frequentes viagens que fazia a Fortaleza. Daquela vez, no entanto, iria demorar-se, para poder assistir-me nos dias que eu ia passar em Fortaleza; Stela seria, digamos assim, a minha cicerone na cidade, já que meu tio era um homem muito ocupado e sua mulher também, já que se encarregava das tarefas domésticas. (Meu outro irmão já vivia em Fortaleza, mas quase não dispunha de tempo, trabalhando durante o dia e estudando à noite.)
A primeira vez que saí com Stela, logo no outro dia, foi para conhecer o mar. Fomos até lá caminhando, pois a casa de titio não era muito distante da praia. Tudo nele me deixou maravilhado. A cor, a imensidão, o vaivém das ondas, o som delas. Contemplando aquele mundão dágua, me dei conta de como era acanhado o rio da minha cidade, que só enchia na época das chuvas.
Em companhia de Stela conheci o centro de Fortaleza, andando por calçadas povoadas de pessoas apressadas. Atravessei a Praça do Ferreira, que achei enorme. Viajei nos ônibus, em tudo diferentes dos ônibus que conhecia, com fileiras de assentos de um lado e de outro, os quais eram reservados só para dois passageiros.
Tive uma surpresa no primeiro ônibus em que viajei: pouco tempo depois de deixarmos a parada, apareceu no início do corredor um rapazote de boné, vestido com calça e camisa de um verde desbotado, e começou a cobrar as passagens. Entre dois dedos de uma mão ele prendia as cédulas dobradas, enquanto com a outra mão recebia o dinheiro, passava o troco e entregava a cada passageiro uma pecinha de cor e redonda como uma moeda. A rapidez e a habilidade do cobrador me deixaram impressionado. Ele entregou a Stela duas daquelas pecinhas. Stela ficou com uma e me deu a outra. A minha era de uma cor diferente da de Stela e perguntei a ela a razão daquilo, ela me disse que era porque eu só pagava meia-passagem. Quando fomos descer, depositamos as "moedas" numa urna perto do motorista.
As lembranças que tenho do meu primeiro contato com Fortaleza, todas elas me são muito caras, cada uma ocupando um lugar destacado em minha memória. Há, no entanto, aquela de recorrência mais freqüente, como se quisesse sobrepujar as demais. E porque isso? Suponho que seja porque jamais pude ter um novo contato com o agente dessa lembrança. Explico melhor: enquanto renovava o contato com o móbil das demais lembranças, em outras vezes que visitei Fortaleza e quando fui morar com o tio Alberto, o mesmo não ocorreu com o filme que vi numa manhã de domingo.
Não foi com Stela que o assisti, mas com o meu irmão. Stela não se interessava por cinema, então pediu ao nosso irmão que fosse comigo, quando disse a ela que estava curioso por conhecer um daqueles cinemas em cuja frente passei quando andamos pelo centro de Fortaleza.
Meu irmão levou-me ao Cine Diogo. Tive logo uma idéia das dimensões do prédio quando entramos no enorme saguão. Vi, impressionado, vitrines espalhadas pelas paredes laterais, atrás das quais se expunham fotos e cartazes de filmes. Meu irmão examinou-as todas e depois subimos uns degraus e fomos em direção a um homem uniformizado que recebia os ingressos. Ao pôr os pés na sala de projeção, me senti muito mais criança diante das dimensões daquele espaço e da profusão de luz. E tal como acontecera quando me vi de frente para o mar e o comparei com o acanhado rio de São Januário, assim também procedi, ao ingressar no Diogo, em relação ao cinemazinho da minha cidade.
Do filme quase nada me lembro, além do título: Segredo de Estado. Me lembro, vagamente, de um homem sendo seguido através de ruas de uma grande cidade. E de uma cena em que ele entra numa cabine telefônica. E, no entanto, esse filme, cuja trama permanece por mim ignorada, do qual só gravei aquela cena, ficou para sempre na minha memória. Quem pode explicar isso? Será que foi porque nunca o revi?
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- Segundo capítulo do meu romance "Infância do Coração" (2002).
NOTA - Conservei a grafia da época em que o livro foi escrito.

terça-feira, maio 19, 2009

UM TEXTO DE MARIO BENEDETTI (14.9.1920-17.5.09)



Foto in diversao.terra.com.br/




Os Galarza


A casa de Capurro também tinha códigos e mistérios. Por exemplo, eu notava que às vezes, geralmente na hora da sesta, quando o meu pai se aproximava da minha mãe e começava a cercá-la com carícias, beijos e abraços furtivos, em algumas ocasiões minha mãe sorria, devolvia-lhe um beijo ou outro e depois os dois se trancavam por um longo tempo no quarto. Mas outras vezes, quando meu pai começava com seus chamegos, mamãe ficava séria e apenas dizia: "Hoje não posso, querido. Os Galarza chegaram". Para mim aquela resposta era um enigma, porque eu passara a manhã inteira em casa e não tinha chegado ninguém: nem os Galarza nem qualquer outra família. Além disso, eu não conhecia ninguém que se chamasse daquele jeito. Só vários anos depois fui saber que Galarza era o nome de um chefe colorado dos tempos da guerra civil e, pelo que diz a lenda, quando seus homens passavam por algum povoado os derramamentos de sangue eram inevitáveis. Ou seja, o que mamãe estava avisando ao meu pai (em código, claro, devido à minha indiscreta presença) era que ela estava com as regras e portanto sem nenhuma disponibilidade erótica.

O outro mistério era uma espécie de porta-alçapão, situada num dos quartos internos. Uma vez ouvi minha mãe dizer que aquele quadrado de madeira era a entrada do porão. Eu fora proibido de tentar abri-lo; interdição que podia ter sido evitada porque os porões sempre me produziram um medo irracional, e não apenas jamais me propus a abri-lo como nunca me arrisquei quando entrava no quarto, a pisar naquele terrível quadrado de tábuas.

Entre as lembranças mais bonitas de Capurro, guardo as da hora de acordar, missão que normalmente cabia aos inquilinos da figueira. Quando mamãe gritava da cozinha para eu me levantar e ir tomar café, já fazia um bom tempo que os pássaros tinham se encarregado de me acordar. Alguns haviam perdido o medo, e até a prudência, e entravam no quarto e se aproximavam da minha cama, sabedores de que eu sempre reservava para eles uma refeição de migalhas. E havia um visitante adicional, sobre o qual nunca, é claro, informei à minha mãe: um ratinho minúsculo, um filhotinho de camundongo que quase sempre, quando eu abria os olhos, estava junto à cama, esperando os pedacinhos de queijo, restos de minha quota na dieta especial para compensar meu déficit de proteínas. É óbvio que o camundongo e eu tivemos naquele período uma elevação protéica nada desprezível.


- Capítulo do romance "A Borra do Café", de 1992, lançado no Brasil pela Record/1998, traduzido por Ari Roitman e Paulina Wacht.


- Falecido no último domingo, o uruguaio Mario Benedetti foi um dos escritores mais representativos da literatura latino-americana, embora muito pouco conhecido no Brasil. Escreveu, segundo se informa, mais de 80 livros, abrangendo poesia, romance, conto e ensaio. Também escreveu roteiros para cinema.

terça-feira, maio 12, 2009

UM POEMA DE FERNANDO PESSOA PARA CRIANÇAS

O Poeta aos 10 anos.
in
biografia.wiki.br/

POEMA PIAL

Casa Branca - Barreiro a Moita

(Silêncio ou estação, à escolha do freguês)

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Toda gente que tem as mãos frias

Deve metê-las dentro das pias.

Pia número UM,

Para quem mexe as orelhas em jejum.

Pia número DOIS

Para quem bebe bifes de bois.

Pia número TRÊS,

Para quem espirra só meia vez.

Pia número QUATRO,

Para quem manda as ventas ao teatro.

Pia número CINCO,

Para quem come a chave do trinco.

Pia número SEIS,

Para quem se penteia com bolos-reis.

Pia número SETE,

Para quem canta até que o telhado se derrete.

Pia número OITO,

Para quem parte nozes quando é afoito.

Pia número NOVE,

Para quem se parece com uma couve.

Pia número DEZ,

Para quem cola selos nas unhas dos pés.

E, como as mãos já não estão frias,

Tampa nas pias!



terça-feira, maio 05, 2009

VICKY CRISTINA BARCELONA (2008)

Nesta cena, Penélope Cruz, Javier Bardem eScarlett Johansson.




Em "Match Point" (2005), Woody Allen deixava Nova York - onde eram ambientados quase todos os seus filmes anteriores - e se mudava para Londres. Embora tenha gostado moderadamente de "Match Point", não há dúvida de que ele representava um sopro de revitalização na carreira do diretor, seriamente abalada por filmes como "O Escorpião de Jade", "Dirigindo no Escuro", "Assaltantes", entre outros que vi. Como não conheço o outro filme que ele rodou em Londres, não sei se ele manteve, pelo menos, o mesmo nível de qualidade do anterior.

A experiência na Europa deve ter agradado a Allen, pois ele escolheu a Espanha para cenário de um novo filme. Mas se ele se dera relativamente bem em Londres, não se pode dizer o mesmo com relação a Barcelona. Esse "Vicky Cristina Barcelona" apresenta alguns graves defeitos no roteiro. A mudança de sentimentos da americana Vicky (Rebeca Hall) para com o pintor Juan Antonio (Javier Bardem) não é só previsível, mas ocorre com uma certa rapidez, principalmente se se levar em conta que ela está noiva. Enquanto a amiga Cristina (Scarlett Johansson) sente de imediato atração pelo espanhol e adere com entusiasmo à sua proposta de passarem uns dias em Oviedo, para, entre outras coisas, fazerem amor com ele, Rebeca rejeita com veemência o convita, mas, forçada por Cristina, acaba fazendo a viagem. Lá em Oviedo, por um desses acasos que ocorrem em roteiros convencionais, Cristina vai ao quarto de Juan Antonio, mas, de repente, antes de irem para a cama, é acometida de uma crise de úlcera, que a deixa sob cuidados médicos até sairem de Oviedo. O espectador, que nem precisa ser um estudioso de cinema, bastando-lhe ter uma razoável rodagem cinematográfica, não ficará surpreso quando Vicky e o espanhol fazem amor logo depois de sairem da apresentação de um guitarrista; nem que essa relação irá mexer com os sentimentos dela, mesmo depois de casar com Doug (Chris Messina), que vem de Nova York para essa finalidade.

Outro defeito do roteiro é a inserção de situações que em nada contribuem para a fluidez natural da história. Qual a necessidade do aparecimento daquele estudante americano que se sente atraído por Vicky? Eles vão ao cinema assistir a "Sombra de Uma Dúvida", de Hitchcock, e, depois, num supermercado, ele assedia Vicky, que o rejeita, e depois dessa cena, o rapaz some tão de repente como apareceu. Outro exempo, a cena em que Vicky flagra a amiga Judy (Patricia Clarkson), em cuja casa ela e Cristina se hospedam ao chegarem a Barcelona, beijando um desconhecido. O propósito da cena fica evidente na conversa que as duas mulheres têm pouco depois: Judy confessa que não sente mais atração pelo marido e incentiva Vicky a abandonar Doug e retomar a fugaz relação com Juan Antonio, para que, no futuro, não se veja na situação dela. Ora, sabendo Judy desse envolvimento da amiga, essa conversa poderia se dar normalmente, sem necessidade da cena anterior, que parece forçada, artificial.

Tal como relação sexual que têm uma vez Cristina e Maria Elena (Penélope Cruz), a desequilibrada ex-esposa de Juan Antonio, num intervalo do "ménage-à-trois" que se estabelece entre eles. (Aliás, o relacionamento entre Juan Antonio e Maria Elena, numa dualidade entre amor e ódio, atração e repulsão, mostrando dois seres que "foram feitos e não foram feitos um para o outro", como diz ele a Vicky, é, a meu ver, um dos únicos, se não o único, elementos positivos do roteiro.)

Para piorar, esses furos no roteiro não são compensados pela direção de Woody Allen - sem brilho, pouco inspirada, sem a "entrega" que vimos nos seus grandes filmes - que o tornaram durante alguns anos um dos diretores mais importantes do cinema contemporâneo. A impressão que passa é que ele não está muito à vontade em terras espanholas.

E, assim, "Vicky Cristina Barcelona" o faz retornar aos baixos de sua filmografia, forçando-nos à pergunta se já não estaria na hora de ele começar a pensar nos rumos que a sua carreira vem tomando de alguns anos para cá.