terça-feira, maio 19, 2009

UM TEXTO DE MARIO BENEDETTI (14.9.1920-17.5.09)



Foto in diversao.terra.com.br/




Os Galarza


A casa de Capurro também tinha códigos e mistérios. Por exemplo, eu notava que às vezes, geralmente na hora da sesta, quando o meu pai se aproximava da minha mãe e começava a cercá-la com carícias, beijos e abraços furtivos, em algumas ocasiões minha mãe sorria, devolvia-lhe um beijo ou outro e depois os dois se trancavam por um longo tempo no quarto. Mas outras vezes, quando meu pai começava com seus chamegos, mamãe ficava séria e apenas dizia: "Hoje não posso, querido. Os Galarza chegaram". Para mim aquela resposta era um enigma, porque eu passara a manhã inteira em casa e não tinha chegado ninguém: nem os Galarza nem qualquer outra família. Além disso, eu não conhecia ninguém que se chamasse daquele jeito. Só vários anos depois fui saber que Galarza era o nome de um chefe colorado dos tempos da guerra civil e, pelo que diz a lenda, quando seus homens passavam por algum povoado os derramamentos de sangue eram inevitáveis. Ou seja, o que mamãe estava avisando ao meu pai (em código, claro, devido à minha indiscreta presença) era que ela estava com as regras e portanto sem nenhuma disponibilidade erótica.

O outro mistério era uma espécie de porta-alçapão, situada num dos quartos internos. Uma vez ouvi minha mãe dizer que aquele quadrado de madeira era a entrada do porão. Eu fora proibido de tentar abri-lo; interdição que podia ter sido evitada porque os porões sempre me produziram um medo irracional, e não apenas jamais me propus a abri-lo como nunca me arrisquei quando entrava no quarto, a pisar naquele terrível quadrado de tábuas.

Entre as lembranças mais bonitas de Capurro, guardo as da hora de acordar, missão que normalmente cabia aos inquilinos da figueira. Quando mamãe gritava da cozinha para eu me levantar e ir tomar café, já fazia um bom tempo que os pássaros tinham se encarregado de me acordar. Alguns haviam perdido o medo, e até a prudência, e entravam no quarto e se aproximavam da minha cama, sabedores de que eu sempre reservava para eles uma refeição de migalhas. E havia um visitante adicional, sobre o qual nunca, é claro, informei à minha mãe: um ratinho minúsculo, um filhotinho de camundongo que quase sempre, quando eu abria os olhos, estava junto à cama, esperando os pedacinhos de queijo, restos de minha quota na dieta especial para compensar meu déficit de proteínas. É óbvio que o camundongo e eu tivemos naquele período uma elevação protéica nada desprezível.


- Capítulo do romance "A Borra do Café", de 1992, lançado no Brasil pela Record/1998, traduzido por Ari Roitman e Paulina Wacht.


- Falecido no último domingo, o uruguaio Mario Benedetti foi um dos escritores mais representativos da literatura latino-americana, embora muito pouco conhecido no Brasil. Escreveu, segundo se informa, mais de 80 livros, abrangendo poesia, romance, conto e ensaio. Também escreveu roteiros para cinema.

9 comentários:

Ines Mota disse...

Olá, Francisco.
Lamento a morte do Mario Benedetti, que vim a saber agora, através do seu blog.
Ótimo, o Mario!. Este texto aqui, é maravilhoso. Gosto de outro que certa vez postei no meu blog:"El hombre que aprendió a ladrar".
Um grande abraço.

M. disse...

Sem dúvida uma grande perda do mundo das letras! Tudo em Mário é grandioso.

Mariazita disse...

Querido Francisco
Fez a grande viagem um bom escritor que deixa vasta obra de qualidade.
Não se pode dizer que tenha sido grande surpresa, dado que no início deste mês já ele tinha estado internado com problemas (?) intestinais.

Este texto é muito interessante. Gostei muito, até porque conheço muito pouco de sua obra em prosa; conheço-o mais como poeta.

Um resto de boa semana.

Beijinho carinhoso
Mariazita

BOTINHAS disse...

Foi um grande valor que nos deixou, sem dúvida.
Ele já estava bastante doente, era de prever que o fim se aproximava...

Preciso que vá deixar o seu voto na minha casota.
A votação é só até sábado.

Abraço fraterno
Botinhas

tb disse...

Meu caro amigo: andei tão longe e tão arredada das coisas daqui, mas cá estou de novo.
A roda da vida que vai trazendo uns e levando outros. Grande homenagem, para um grande homem e artista! O mundo ficou um pouco mais pobre.
Abraço apertado

BOTINHAS disse...

Amigão Francisco
Obrigado pela sua colaboração, com vista à escolha da melhor.
O resultado já foi apurado e publicado.
Quer vir ver?

Abraço fraterno
Botinhas

DILERMArtins disse...

Mas bah, Francisco.
Quando morre um poeta, cala-se uma boca capaz de nos dar novas respostas...É uma pena.
Muito oportuno seu post.
Parabéns.

Nine Stecanella disse...

A morte deste escritor nos mostra como somos limitados.

BOTINHAS disse...

Amigão
O resultado do Concurso de Anedotas já foi publicado no dia 23.
Não queres ir buscar o prémio?

Abraço fraterno
Botinhas