terça-feira, abril 14, 2009

PÁSSAROS CATIVOS




Com os filhos não fora tão difícil, apesar das reclamações deles, às vezes tendo a mãe como intermediária. Já com os netos não estava conseguindo. Eram três os netos, o mais velho já quase chegando à adolescência, filhos de sua única filha. Desde que vira aquelas três gaiolas, com um pássaro dentro de cada uma, que tentara convencê-los de que o pássaro não pode ficar aprisionado, fora do seu habitat natural, mas os netos não lhe deram ouvidos. Tentara o apoio dos pais, a filha até que demonstrou interesse em ajudá-lo, mas o genro, um homem bom, mas sem um mínimo de sensibilidade para certas coisas, achava aquilo muito natural. Ora, Seu Luiz, todo menino gosta de criar passarinho em gaiola. O senhor quando era menino, deve ter tido os seus. Reagiu com certa veemência, dizendo que o seu pai não permitia essa crueldade com os pássaros. Mas o senhor bem que tinha vontade, ou não? Preferiu se calar.
E passou a frequentar cada vez menos aquela casa. Queria muito bem à filha, queria muito bem aos netos, os primeiros que tivera, e os únicos que moravam na mesma cidade. Mas se sentia incomodado quando chegava lá e via as três gaiolas enfileiradas com aqueles pássaros mudos, que lhe pareciam tristes na sua condição de prisioneiros.
Numa noite de insônia, chegou-lhe, de repente, a lembrança de um poema de Olavo Bilac, que lera na juventude e que lhe calara fundo na mente e no coração. E o título veio de imediato: "O Pássaro Cativo". Fez um enorme esforço para se lembrar de alguns versos, em vão; a memória, no entanto, preservara a lembrança de que era um poema destinado às crianças, no qual o tema era o crime de tornar um pássaro cativo em uma gaiola. Não se levantou de um salto para procurar o poema porque sabia que não o tinha, mas no dia seguinte, depois do café, telefonou para um seu amigo desde os tempos de jovens. Perguntou-lhe se lembrava do poema e se o tinha. A memória do amigo não retivera sequer o título e estava convicto que não o tinha. Mas vou pesquisar na Internet e, encontrando-o, ou não, ligo pra você. Telefonou ainda cedo da noite. Descobrira, sem trabalho, o poema, e, à medida que o lia, os versos foram se lhe tornando familiares e a emoção tomou conta dele. Conversaram um bom tempo sobre o poema, e, antes de se despedirem, combinaram que Seu Luiz iria à casa dele na manhã do dia seguinte.
Lá chegando, o amigo já estava com o poema impresso. Seu Luiz leu o título e ficou em silêncio, segurando o papel, como se tivesse recuperado um objeto raro e precioso que lhe fora tirado há muitos anos. Depois, como se acostumara a fazer, leu o poema em voz alta, e, tal como o amigo, não pôde conter a emoção, que se intensificou na parte em que o poeta dá voz ao pássaro cativo para se dirigir à criança que o aprisionara. Ao terminar, perguntou ao amigo se ele podia tirar mais três cópias, para dá-las aos netos.
No outro dia, um domingo, foi à casa da filha. Como sempre, a visão das três gaiolas causou-lhe mal estar, mas ocorreu algo estranho: sentiu, ao mesmo tempo, uma ponta de esperança de que um dia elas poderiam ser jogadas fora. Juntou-se com os três netos no quarto deles e lhes pediu muita atenção ao que iria ler-lhes. Outra vez a emoção lhe tomou conta. Terminada a leitura, agora respaldado pela força do poema, alertou-os mais uma vez para a maldade que estavam praticando. Em seguida, entregou a cada neto uma cópia do poema, recomendando a eles que o lessem uma vez ou outra, sem se desfazer jamais daquele papel.
O tempo foi voando, voando, a cada vez que Seu Luiz ia visitar os netos, perguntava pelo poema, se o liam de vez em quando, se não o tinham rasgado. Lê-lo é provável que não o fizessem, mas, pelo menos, o conservavam, como faziam questão de mostrar ao avô.
Até que chegou o dia de mais um aniversário de Seu Luiz. A manhã já ia adiantada, quando os netos irromperam em sua casa para lhe dar os parabéns. Cada um com a sua gaiola, os três disseram, vovô, viemos trazer o nosso presente. Vendo o "presente", o avô ficou tão irritado que pela primeira vez foi grosseiro com os netos. Vocês estão me faltando com o respeito. Saiam já daqui. Ora, fazerem isso com o seu velho avô. Aí o mais velho falou, não é o que o senhor está pensando, vovô Luiz. Vamos para aquela janela. Ainda aborrecido, acompanhou os meninos. Chegaram à janela, que se abria para um largo e extenso terreno baldio. Olhe só, vovô, continuou o mais velho. Pousou a gaiola no parapeito, abriu-lhe a portinha, pegou o pássaro com mãos cuidadosas e soltou-o para a imensidão do espaço. Em seguida foi a vez do segundo neto abrir a portinha, retirar com o mesmo cuidado o pássaro e soltá-lo. Por fim, o mais novo imitou a ação dos outros. Pronto, vovô, este é o nosso presente para o senhor, falou como sempre o mais velho dos netos. Seu Luiz estava recostado num canto do parapeito, olhando para fora e sem dizer palavra. Assim ficou por uns três minutos. Os netos o olhavam atentamente. Foi então que viram, em dado momento, o avô puxar um lenço do bolso e levá-lo aos olhos.


- Este texto foi baseado numa história, por ele vivenciada, que me contou o meu amigo João Wilson Mendes Melo, escritor potiguar e professor aposentado da UFRN.

7 comentários:

Mariazita disse...

Querido Francisco
Mais logo venho ler e comentar.
Por agora, quero acordar-te com um beijo porque...

E porque hoje é o Dia Nacional do Beijo, no Brasil, acabei de publicar um poema dum amigo meu e poeta brasileiro cujo tema é BEIJOS.
Vai ver. Penso que vais gostar.

Beijinhos
Mariazita

Ines Mota disse...

Bom dia, Francisco.
Belo, o seu texto.
Coincidentemente, também postei sobre a clausura...ou sobre a liberdade. Abrir gaiolas, foi um exercício que pratiquei ao longo da vida. Quer de fato, quer metaforicamente.
Um abraço.

Jacinta Dantas disse...

Nas entrelinhas do texto, sinto a emoção da conquista. Conquista de um bem que não é para o consumo próprio, mas um bem que, estando longe das mãos, pode ser melhor apreciado com os olhos e os ouvidos. E, mais, a força da poesia contribuindo na sensibilização do outro. Isso é lindo.
Um beijo

Mariazita disse...

Querido Francisco
Finalmente (!) vim ler o post.
Ontem foi uma correria de lá para cá...que cheguei à noite cansada...

Gostei imenso deste conto.
Imagino que foi o melhor presente que seu Luiz recebeu em toda a sua vida - por uma lado por ver concretizado o seu desejo de "não clausura" para os passarinhos; por outro lado ver realizado, por fim, um seu sonho de tanto tempo.
Parabéns. É um belíssimo conto.

Beijinho carinhoso
Mariazita

BOTINHAS disse...

Amigão Sobreira
Se lhe faço lembrar um colega bloguista com um forte senso de humor...é porque também aqui encontra motivo para boa disposição.
Estou certo ou estou errado???

Obrigado! Volte sempre.

Abraço fraterno
Botinhas

PS - Este seu conto é muito bonito.
O avô conseguiu realizar o sonho de "converter" os netos.

Mariazita disse...

Querido amigo
Respondendo ao seu comentário a Anita, não sei se este final terá sido o de maior suspense...
Sei que nos primeiros episódios havia mais facilidade em terminar assim, levando as pessoas a tentar adivinhar o seguimento.
Depende do assunto que estamos a tratar, às vezes dá para terminar assim, outras vezes não...
Também há que ter em conta o tamanho do texto, que limita um pouco esse aspecto.
Enfim, veremos o que se segue, mas é capaz de ser um pouco...susceptível, para algumas pessoas...
O remédio será não lerem.

Beijinho carinhoso
Mariazita

Lily disse...

Que delícia de conto! O avô tinha razão: lugar de pássaro é solto no céu.
Eu tenho aqui na minha pequena varanda uns pássaros que vêm beber a água que coloco com um pouquinho de açúcar. Às vezes me esqueço e os danadinhos vêm e fazem um barulho danado...acho que reclamando da minha falta de atenção.
Beijo, querido amigo.