quarta-feira, outubro 29, 2008

PERSONAGENS

Quando trabalhei em Fortaleza, de maio/1972 a junho/74, tive como colega José Moura, tratado por Mourinha. Era o contínuo da seção. De uma fealdade que chamava a atenção: corpo mal-ajambrado, olhos abugalhados e o nariz despencando para a boca. Mas uma figura humana muito interessante, pronta para fazer parte de um texto de ficção. Uma de suas facetas era a de mudar o nome de alguns colegas. Não o fazia com todos, e nunca com os superiores. Poucos dias depois em que comecei a trabalhar na seção, ele me achou com cara de Romualdo e assim me chamou durante os dois anos em que ali fiquei. Um colega, Esdras, foi por ele "batizado" de Luís.
Mourinha nem sempre era bem-humorado. Tinha, às vezes, atritos com algum colega, invariavelmente relacionados com o trabalho. Eu fui um deles. Passamos uns dias sem nos falar, mas depois voltamos às boas.
Duas ou três vezes deixou o birô dele e veio tirar dois dedos de prosa comigo. Numa delas, não me lembro a propósito de quê, começou a falar sobre a ex-esposa. Revelou que mantinham um bom relacionamento, se visitando regularmente. Pelo que depreendi da conversa, ainda conservavam, se não amor, um carinho especial um pelo outro. E se era assim, não entendia por que haviam se separado. E perguntei, não podendo conter a curiosidade: "Mourinha, e por que vocês se separaram"? E Mourinha, com um meio-sorriso, respondeu com a maior naturalidade: "Porque não gostava das comidas dela". Pode uma coisa dessas?
Tive outro colega de personalidade também muito interessante, esse em Natal. Nestor guardava, parece que na carteira de cédulas, uma carta antiga, para afugentar algum colega que lhe viesse pedir um empréstimo. Mal o coitado terminava de falar, Nestor tirava a carta e o mandava ler. Naquele papel eram mencionados os motivos pelos quais não emprestava dinheiro. Não sei que motivos eram esses, pois nunca tive acesso àquela carta.
Calvo, de volta de umas férias, apareceu de peruca. Foi uma diversão para todos. E ele contava por que, afinal, resolvera esconder a careca. Mas não usou a peruca por mais de uma semana, talvez nem isso. Um dia chega Nestor sem ela e, do mesmo modo como fizera quando apareceu com a peruca, deu várias justificativas para deixar de usá-la.
Fã dos faroestes italianos, quando estes estavam em voga, quase sempre que assistia a um deles vinha no dia seguinte me contar parte do filme, divertindo-se ao falar das cenas inverossímeis.
Na minha cidade havia um barbeiro chamado Isaías. Como todo barbeiro que se preze, Isaías conversava que nem o homem da cobra. Além de barbeiro, exercia as funções de leiloeiro nas festas religiosas. E se gabava de ser bom nessa modalidade. Uma vez eu e uns amigos estávamos num banco da Praça da Basílica, onde se realizava um leilão. Isaías não tinha sido convidado. Ele chegou perto da gente e começou a fazer críticas ao rival. Ao mesmo tempo, revelava as regras para a pessoa se tornar um bom leiloeiro. Em tudo aquilo havia a ponta de um despeito por ter sido preterido.
Mas eu queria falar especialmente de um fato ocorrido com ele, que o papai não se cansava de contar. Uma feita, uma romeira entrou na barbearia para cortar o cabelo do filho pequeno. O menino devia estar com o cabelo muito crescido e a mãe, talvez, não quisesse que ele fosse com aquele cabelo visitar São Francisco de Canindé, como os romeiros chamam o santo de Assis. Isaías mandou a mulher sentar e colocou o garoto na cadeira. Mal começou o serviço, perguntou à mãe: "Que mal pergunte, vosmecê é de onde"? "De Teresina". "De Teresina"? Como se a mulher tivesse dito que morava na lua, Isaías parou, virou-se para a mulher, com a tesoura na mão, e perguntou: "É verdade que lá tem uma devassidão danada"? E a mulher: "Meu senhor, eu não sei dessas coisas, não. Sou uma mulher casada, que vivo na minha casa". Isaías retomou o corte do cabelo e entrou noutro assunto.
Mourinha, Nestor, Isaías - três personagens à procura de um ficcionista.

quarta-feira, outubro 22, 2008

ELA NÃO GOSTAVA DE CHICO BUARQUE


Chico e Paulinho da Viola em um boteco, no início dos anos
1970.
Foto in http://veja.abril.com.br/

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Onde andará Mariazinha? Me faço a pergunta, como naquele samba de Ataulfo. Embora não tenha sido o meu primeiro amor. Nem foi um namoro de longa duração, mas que me marcou de uma certa maneira - só me agora me dou conta.
Mariazinha. Talvez o que tenha me atraído primeiramente nela foi o nome. Tinha como certo que era Maria e, como todas as Marias, acrescido de um outro nome - Maria das Graças, por exemplo. E nesse caso seria chamada de Graça, como é comum. Foi quando ela me mostrou a carteira de identidade e lá estava Mariazinha. Pensei no seu batismo, um padre desses ranhetas se indispondo com aquele diminutivo da mãe de Jesus, como se esta fosse uma mulher qualquer. Mariazinha me disse que nunca ouviu nada sobre isso em sua casa. E você gosta do seu nome? Disse que sim.
Lembro hoje do nosso namoro. De uma particularidade, sobretudo: nossos papos pendiam invariavelmente para a música. E a música nos punha em campos opostos. Daí as divergências, mas numa boa. Nada de altercações, sequer levantávamos a voz. Ou melhor, eu às vezes começava a alterar a minha, mas logo era desarmado pela docura de Mariazinha, o seu sorriso, a sua serenidade, a simpatia. Punha, é certo, um pouco de ironia ao me replicar, mas sem me deixar ferido. Como aquele qualé. Ou não é do meu tempo, como se não fôssemos quase da mesma idade.
O ponto central de nossas divergências era Chico Buarque, que estava surgindo, como muitos dos seus coetâneos, naquela metade dos anos 1960. Ela não gostava de Chico. Para ser de todo justo, algumas frases das letras de Chico chegava a apreciar. Mas também citava trechos das letras de Caetano, que, para ela, era superior a Chico, até na composição da música. Não só Caetano, mas também Gil, Torquato e toda a turma da Tropicália.
Como (presumo) todo jovem daqueles anos, ela adorava os Beatles. Eu também gostava, mesmo captando apenas algumas palavras do que eles cantavam, pois não dominava o inglês. Ela, de queixo no chão, estou besta por você gostar dos Beatles. E dos Rolling Stones? E, para provocá-la, destes eu nunca ouvi falar. Nunca ouviu falar? Joãozinho, você é mesmo de doze, até de um tal de Ataulfo Alves você vem falar.
Há poucos dias eu tinha lido um artigo de um crítico de cinema em que ele dizia que não existiam filmes velhos e filmes novos, mas sim filmes ruins e filmes bons, então eu transferi esse conceito para a música. E ela, pra cima de moá, Joãozinho?
Porque tinha o hábito de usar o diminutivo (talvez quem sabe? uma influência do próprio nome). Chamava as amigas e os amigos pelo diminutivo, as coisas, os objetos. Você está muito salientezinho, dizia, com o sorriso radioso, quando a minha mão procurava um dos peitos de Mariazinha. E que peitos! Percebia-se que ela não usava sutiã e isso atiçava mais o meu desejo de tocá-los, não só tocá-los, mas cobrir um deles com a mão e ficar acariciando-o.
Mais se atiçava o meu desejo quando me lembrava de um conto, belíssimo conto, que lera fazia um certo tempo. O personagem, aposentado, solitário e entediado na cidade grande, vê, de repente, aflorar-lhe à memória, um fato ocorrido na sua adolescência. Durou uns raros segundos, mas, só agora se dava conta, o marcara para sempre. A visão dos seios de uma adolescente, mal saída da infância. Ele decide empreender uma viagem de volta à sua cidadezinha para reencontrar a mulher que lhe proporcionara aquele momento ímpar de sua vida.
Não conseguia atinar com aquela resistência de Mariazinha, uma moça de idéias avançadas (está claro que as nossas conversas não se limitavam à música) , uma mulher pra frente, como se dizia naquela época. Uma vez, por brincadeira, mas tentando dar um tom de sinceridade na voz, cheguei ao ponto de lhe prometer que se ela me mostrasse os seios, eu deixaria de gostar do Chico. Ela fez foi soltar uma gaitada.
Teve um dia que ela veio se encontrar comigo ainda mais alegre e brincalhona - diria mesmo feliz. Tinha passado no vestibular. Não tenho certeza, mas acho que nesse dia nem falamos no Chico, a vitória que conquistara, com uma excelente colocação, dominou a conversa. É hoje que vou conseguir, disse pra mim mesmo, vendo-a naquela euforia. Num dado momento, após um beijinho, pedi para ela me mostrar um peito. Mas mesmo naquele estado, ela opôs a firme resistência habitual e ainda me mandou tirar o cavalinho da chuva e acrescentou que eu queria me aproveitar da alegria dela. Mas eu insisti e insisti e insisti, até que ela cedeu, tá bem, seu acesinho. Olhou para um lado, olhou para o outro. Precaução desnecessária, estávamos isolados na pracinha. O coração pinotando, por estar a segundos de ver, finalmente, o meu desejo realizado, observei atentamente Mariazinha pousar um dedo no primeiro botão para retirá-lo da casa. A seguir o segundo botão. Parou, e protegendo com uma mão um peito, com a outra abriu o lado da blusa para exibir o outro peito. Pronto, seu danadinho. E eu vi - vi aquela obra de arte se mostrando pra mim, por um segundo, ou dois, mas valeu a pena. Até me conformei por não poder tocá-lo - isso não, não era só pra olhar? E depois você vai querer mais e mais. E fechou depressa a blusa. Mariazinha malvada.
Depois de terminarmos o namoro, ainda a vi algumas vezes, ela sempre me sorrindo. O tempo foi passando e a via com menos freqüência. Acabei deixando a cidade, pra assumir um emprego num estado do Sul. Voltei há uns dez anos e não vi Mariazinha. Posso até tê-la encontrado e não a reconhecer, nem ela a mim. E como gostaria, penso agora, de revê-la. Mesmo que ela esteja gorda (já naquela época era um pouco gordinha), mesmo que aqueles peitos tenham perdido todo o encanto. Queria rever Mariazinha. Até pra perguntar se ela continua a não gostar do Chico. E ouvir o que ela iria dizer.

quarta-feira, outubro 15, 2008

O SERVIÇO DE ALTO-FALANTE DE CANINDÉ


Ficava a poucos metros da Praça da Basílica, na Rua do Fogo. Esse não era o nome oficial da rua, onde, aliás, nasci, mas todo mundo a chamava assim. E não me recordo do seu verdadeiro nome. Também ninguém, exceto o locutor, usava a palavra alto-falante - para os outros era a "radiadora", ou a amplificadora. Funcionava toda noite, durante uma hora e meia - talvez duas horas. As músicas eram quase sempre as mesmas, raramente aparecia uma música nova. Possuo algumas daquelas músicas ("Brasa", de Lupiscínio Rodrigues, na voz de Orlando Silva, "Adivinhe, Coração", de Custódio Mesquita e Evaldo Rui, "Lancha Nova" e "Tem Gato na Tuba", de Braginha, outras, de que não me lembro agora), e, ao ouvir qualquer uma delas, é inevitável o meu retorno à infância.
Algumas das músicas eram muito repetidas por fazerem parte das chamadas mensagens musicais. Ah, as mensagens musicais! "Alguém oferece a alguém"... Um rapaz endereçava a sua declaração de amor a uma moça que passeava na praça com uma amiga, ou mais de uma. Para ela se sentir a destinatária da mensagem, o apaixonado remetente mencionava-lhe a cor e o penteado do cabelo, a cor do vestido, a cor da pele, dos olhos. (Nunca, que me lembre, ousava dizer o nome dela.) E a amiga dizia: "olha, fulana, é pra você". E procuravam descobrir a identidade do rapaz. A destinatária, se sabia de quem se tratava, reagia de acordo com o sentimento que tinha por ele. Havia também as músicas com mensagens de felicitações a um aniversariante.
Cheguei algumas vezes a entrar naquele pequeno estúdio, e um irmão foi por alguns dias locutor, fazendo parceria com outro. Eu examinava os disco, ainda em 78 rotações, pousados nas prateleiras, ou na mesa de som para serem tocados. Os discos eram recobertos por uma capa de papel ordinário, que, no centro, tinha uma abertura, onde se lia o nome da música, do cantor e dos autores e da gravadora. (Nunca me esqueci do nome de uma delas, que, parece, ter tido uma vida efêmera: "Todamérica".) Havia um locutor de cara amarrada, óculos de lentes grossas, que uma vez me advertiu que manuseasse os discos com muito cuidado, porque eram facilmente quebráveis. E, sem eu perguntar, me disse que eles eram feitos de cera de carnaúba. Abri um sorriso de incredulidade.
Uma noite um rapaz usou o microfone para um assunto de seu interesse. Ele se envolvera em um caso, do qual hoje não faço idéia. Mas me lembro que deu o que falar na cidade. Era um rapaz , na verdade, já casado, de classe média. Ao iniciar a sua defesa, dizendo que estava utilizando aquele "veículo" (referindo-se ao serviço de alto-falante), eu e uns amigos reunidos na praça caímos na gargalhada, à menção daquela palavra. É que achávamos que o rapaz havia cometido um erro - para nós, veículo era apenas um meio de transporte.
Umas poucas vezes a "radiadora" foi ocupada pelo Raimundo Marreiro. Dono de uma casa comercial, era uma pessoa comunicativa, divertida e inteligente. Pai do Tonico, de quem já falei certa vez aqui, ao fazer uma postagem sobre uma fotografia para a qual eu, ele e mais 3 meninos posamos antes do início de um jogo de futebol. Era um programa cheio de variedades, apresentado numa sexta-feira. Se a memória não estiver me pregando uma peça daquelas, Marreiro narrava causos ocorridos com matutos, recitava poemas populares, alguns, talvez, de sua autoria, e até cantava (reafirmo, se a memória não estiver brincando comigo) acompanhando-se por um violão. Havia os que gostavam e os que não gostavam. Eu estava entre os primeiros.
E toda noite, ao término da audição, o locutor anunciava que na noite seguinte estaria de volta, "se assim o Criador nos permitir".

terça-feira, outubro 07, 2008

HOMENAGEANDO MANUEL BANDEIRA


Foto do sítio www.overmundo.com.br/
Neste ano dos centenários de morte e de nascimento de Machado de Assis e Guimarães Rosa, completam-se ainda, no próximo dia 13, os 40 anos do falecimento de Manuel Bandeira (1886-1968) . Pernambuco de Recife, Bandeira, além de poeta (um dos maiores da língua portuguesa), foi também cronista, crítico de arte e literatura e tradutor. Como uma homenagem à data, este espaço é hoje ocupado por um texto dele. Não um poema, mas uma crônica, uma saborosa crônica em que ele exercita o humor, uma das facetas do seu temperamento, como atestam os que o conheceram. Ei-la.
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FRASES
Dos vendedores ambulantes que freqüentavam a Rua da União, dois me interessavam particularmente: a preta das bananas, com o seu vistoso xale de pano da Costa, e o homem dos sapatos. Este chegava com o seu grande baú de folha-de-flandres, abria-o na saleta de entrada e ficava esperando pela freguesia, que eram as senhoras de casa e da vizinhança. Eu gostava de olhar aquela confusão de borzeguins, chinelas e sapatos rasos. Mas, um dia o sujeito, que era robusto e falava grosso, me interpelou: Já vai ao colégio? Estuda Geografia? Qual é a Capital do Espírito Santo?
Embatuquei, e o sapateiro tripudiou: - Ignora?
O que eu esperava, o que eu ouvia dizer em tais ocasiões era - "Não sabe?" Aquele "ignora", que eu jamais ouvira, soou-me duro. Senti-me insultado, afastei-me do baú, nunca mais me aproximei do homem. E até hoje implico com esse inocente verbo "ignorar", sobretudo no singular do presente do indicativo.
Outro dia foi meu tio Antonico que me surpreendeu, dizendo ao amigo Fiúza:
- Quando você ia colher os cajus, eu já voltava com as castanhas!
Surpresa maior, porém, foi o que disse à minha avó uma sua amiga, ouvindo-lhe queixas de achaques que não cediam aos remédios.
- Minha Dona França, deixe a natureza obrar!
Essas foram frases ouvidas na infância e então me soaram insólitas e inexplicáveis. Adulto, ouvi outras, sem nenhum mistério, mas igualmente surpreendentes. Assim, a de uma dessas pretinhas de Copacabana, cabelizadas e maquiladas, que tratava emprego com a senhora:
- A que horas a senhora janta?
- Às oito horas.
- Não pode ser às sete?
- Quem marca o horário das refeições em minha casa sou eu, não a cozinheira.
A pretinha então, muito gentil:
- Claro, não leve a mal que eu pergunte: não vê que eu sou mulher da vida e tenho de noite o meu trabalho lá fora?
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- Crônica extraída do livro "Colóquio Unilateralmente Sentimental" (Distribuidora Record/1968).