Ficava a poucos metros da Praça da Basílica, na Rua do Fogo. Esse não era o nome oficial da rua, onde, aliás, nasci, mas todo mundo a chamava assim. E não me recordo do seu verdadeiro nome. Também ninguém, exceto o locutor, usava a palavra alto-falante - para os outros era a "radiadora", ou a amplificadora. Funcionava toda noite, durante uma hora e meia - talvez duas horas. As músicas eram quase sempre as mesmas, raramente aparecia uma música nova. Possuo algumas daquelas músicas ("Brasa", de Lupiscínio Rodrigues, na voz de Orlando Silva, "Adivinhe, Coração", de Custódio Mesquita e Evaldo Rui, "Lancha Nova" e "Tem Gato na Tuba", de Braginha, outras, de que não me lembro agora), e, ao ouvir qualquer uma delas, é inevitável o meu retorno à infância.
Algumas das músicas eram muito repetidas por fazerem parte das chamadas mensagens musicais. Ah, as mensagens musicais! "Alguém oferece a alguém"... Um rapaz endereçava a sua declaração de amor a uma moça que passeava na praça com uma amiga, ou mais de uma. Para ela se sentir a destinatária da mensagem, o apaixonado remetente mencionava-lhe a cor e o penteado do cabelo, a cor do vestido, a cor da pele, dos olhos. (Nunca, que me lembre, ousava dizer o nome dela.) E a amiga dizia: "olha, fulana, é pra você". E procuravam descobrir a identidade do rapaz. A destinatária, se sabia de quem se tratava, reagia de acordo com o sentimento que tinha por ele. Havia também as músicas com mensagens de felicitações a um aniversariante.
Cheguei algumas vezes a entrar naquele pequeno estúdio, e um irmão foi por alguns dias locutor, fazendo parceria com outro. Eu examinava os disco, ainda em 78 rotações, pousados nas prateleiras, ou na mesa de som para serem tocados. Os discos eram recobertos por uma capa de papel ordinário, que, no centro, tinha uma abertura, onde se lia o nome da música, do cantor e dos autores e da gravadora. (Nunca me esqueci do nome de uma delas, que, parece, ter tido uma vida efêmera: "Todamérica".) Havia um locutor de cara amarrada, óculos de lentes grossas, que uma vez me advertiu que manuseasse os discos com muito cuidado, porque eram facilmente quebráveis. E, sem eu perguntar, me disse que eles eram feitos de cera de carnaúba. Abri um sorriso de incredulidade.
Uma noite um rapaz usou o microfone para um assunto de seu interesse. Ele se envolvera em um caso, do qual hoje não faço idéia. Mas me lembro que deu o que falar na cidade. Era um rapaz , na verdade, já casado, de classe média. Ao iniciar a sua defesa, dizendo que estava utilizando aquele "veículo" (referindo-se ao serviço de alto-falante), eu e uns amigos reunidos na praça caímos na gargalhada, à menção daquela palavra. É que achávamos que o rapaz havia cometido um erro - para nós, veículo era apenas um meio de transporte.
Umas poucas vezes a "radiadora" foi ocupada pelo Raimundo Marreiro. Dono de uma casa comercial, era uma pessoa comunicativa, divertida e inteligente. Pai do Tonico, de quem já falei certa vez aqui, ao fazer uma postagem sobre uma fotografia para a qual eu, ele e mais 3 meninos posamos antes do início de um jogo de futebol. Era um programa cheio de variedades, apresentado numa sexta-feira. Se a memória não estiver me pregando uma peça daquelas, Marreiro narrava causos ocorridos com matutos, recitava poemas populares, alguns, talvez, de sua autoria, e até cantava (reafirmo, se a memória não estiver brincando comigo) acompanhando-se por um violão. Havia os que gostavam e os que não gostavam. Eu estava entre os primeiros.
E toda noite, ao término da audição, o locutor anunciava que na noite seguinte estaria de volta, "se assim o Criador nos permitir".
4 comentários:
Muito bom. Adorei. Acho que é a segunda vez nesse ano que leio sobre Canindé. Um amigo escreveu um artigo acadêmico sobre os santos grandes...Será que estou certo? acho que sim.
abraços.
santos gigantes.
Recordações dos tempos da juventude! Que bem sabem, não?
Lembro-me desses programas de rádio com músicas a pedido, algummas (bastantes) dedicadas a outras pessoas - jovens, é claro!
Gostei muito deste texto. É só segui-lo (pena não se poder ler de olhos fechados...) e "ver" todas as cenas.
Uma noite feliz (aqui são quase onze horas).
Beijinhos
Mariazita
CHIQUINHO... Voce tem boa memória. Porém, voce esqueceu de narrar, que certa vez, voce ganhou uma "baladeira", ao cantar o baião SABIÁ,(Zé Dantas) no programa semanal das sextas-feiras, que era apresentado pelo meu saudoso pai, poeta popular e folclorista Raimundo Marreiro.
Um abraçoi do Tonico Marreiro
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