terça-feira, agosto 26, 2008

UM EPISÓDIO DA INFÂNCIA DE CONY



Todas as manhãs, bem cedo, o menino Carlos Heitor Cony saía de casa para ajudar a missa das seis e meia. Pegava um bonde e dele saltava em frente ao botequim Ponto de Cem Réis, que ainda existia, e com o nome preservado, quando o escritor e jornalista escreveu a crônica em que relata um marcante episódio ocorrido na sua infância. De lá ia caminhando até a igreja, que ficava perto. No lado oposto havia outro botequim. Era o local preferido de alguns rapazes que varavam a noite bebendo e cantando acompanhados por violões - "ovelhas negras que infelicitavam o rebanho, segundo o vigário local que me esperava para começar a missa".

O menino passava em frente, olhava rapidamente a cena diária e seguia. Até que numa manhã, por razão ignorada, um dos rapazes, deixou o violão, pegou uma tampinha de de cerveja Cascatinha (ao que parece muito consumida no Rio naqueles anos trinta do século passado) e a arremessou "com força" na direção do garoto, atingindo de raspão a orelha, que sofreu um arranhão, do qual saía sangue Não satisfeito com a irrazoável agressão, acresceu-a gritando estas palavras: "Lá vai o filho do padre ajudar a missa". Cony correu para a igreja e, na sacristia, mostrou ao padre a orelha ferida.
É nessa parte da crônica que Cony usa da sua peculiar ironia, que pode atingir o sarcasmo. O sacerdote o chamou de mártir. Fala da "compunsão" que pairou sobre a missa daquele dia, em que "as beatas pisavam de leve o chão de velhos ladrilhos que o vigário desejava reformar". Naquele momento ele se sentiu um santo precoce, com um lugar assegurado no Céu. Já o seu agressor iria se queimar nas chamas do Inferno. E ali mesmo que ficou sabendo da identidade do rapaz. Compunha uns "sambinhas" e estudava medicina. Noel Rosa ele se chamava.
Após a missa, o menino voltou ao local, já vazio. E se pôs a procurar a tampinha, pois, sem saber a razão, "tinha a suspeita de que devia guardá-la", Cony, porém, não revela se a encontrou.
A crônica faz parte do livro Os Anos Mais Antigos do Passado (Record/1998) e tem por título "O Mártir de Vila Isabel". E eu confesso que, ao começar a lê-la, tive a certeza de que o "mártir" era uma referência a um dos cinco ou seis maiores compositores da nossa música popular.


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