quarta-feira, agosto 06, 2008

A METAMORFOSE ANUAL DE SEU OLAVO

Todos em São Januário já conheciam aquele ruído e, ao ouvi-lo, identificavam o autor: é o Seu Olavo. E alguém da casa ia receber a correspondência. Seu Olavo era o carteiro. Não se anunciava pela voz, como Ariston, o seu substituto. Correio, gritava Ariston. Seu Olavo adotava o método de bater com a palma de uma mão sobre o volume de cartas empilhadas na palma da outra mão, e tão forte era o som produzido que se podia ouvir pela casa toda. Punha tanta habilidade em seu método que o ruído era escutado mesmo que Seu Olavo trouxesse na mão uma única mensagem. O som, nesse caso, percutia de forma cava.
Essa maneira de se anunciar, sem a voz, condizia com o temperamento de Seu Olavo, um homem caladão, sisudo, que não apreciava uma boa conversa. Alto, seco de carnes, um bigode grosso, bem tratado, olhos que mal fitavam as pessoas, como não ousasse encará-las. Seria de esperar que usasse óculos, e os seus eram de lentes muito grossas, o que realçava mais ainda o ar sério.
Seu Olavo e a mulher formavam um casal que timbrava pelo contraste de temperamentos. Vendo-os, podia-se acreditar naquela máxima de que os opostos se atraem, pois até no físico eram diferentes. Dona Zizinha era baixa e gorda e apreciava uma conversa, tanto quanto o marido evitava-a. Tinha uma língua maior do que o corpo, com mais peçonha que uma cascavel, e, como se fosse pouco o veneno que destilava, gostava de colocar apelido nas pessoas. Imagino como seria o convívio entre aqueles dois. Dona Zizinha falando sem descanso, Seu Olavo só escutando. E é de se supor que suportasse numa boa a língua de camelô da esposa, porque só saía de casa para o trabalho, a missa aos domingos, ou para fazer alguma compra. Sem um único amigo, Seu Olavo não era visto num bar ou nas esquinas, ou na praça, em um animado papo. Jamais.
Imagino como seria difícil para alguém de passagem por São Januário, ao ouvir um nativo falar a respeito de Seu Olavo, crer que ocorresse uma extraordinária transformação nos hábitos e na conduta daquele homem quando chegava o carnaval. Eu mesmo quando atingi a idade em que o homem descobre que a natureza humana é pródiga em mistérios impenetráveis, sentia-me perplexo diante do espetáculo oferecido por Seu Olavo no período momesco. Durante aqueles quatro dias o que víamos era um homem do qual não restava qualquer vestígio daquele a que nos acostumáramos a ver nos demais dias do ano.
O homem que vivia de boca fechada durante quase o ano inteiro, abria-a no carnaval para cantar as marchinhas e os sambas; o abstêmio dos outros dias, incapaz de pôr os pés num bar, no carnaval bebia da garrafa que trazia no boso; o homem sempre vestido com roupas sóbrias, no carnaval usava uma fantasia, diferente a cada ano. E a cada ano, à medida que se aproximava a chegada do carnaval, crescia a expectativa dos januarenses em relação à fantasia que Seu Olavo iria usar. Era o segredo mais bem guardado de todo o planeta. Nem o mais scherlockiano dos homens de São Januário seria capaz de descobri-lo. Calado e discreto como era, Seu Olavo não o revelaria nem mesmo à esposa, mesmo que ela não tivesse a língua solta. É quase certo que ele a mandava confeccionar na Capital. Em São Januário não era, todo mundo saberia.
É certo que mesmo naqueles quatro dias, ainda que desvelando a alma de folião, Seu Olavo conservava o segregacionismo social. (Este o único traço de sua personalidade que permanecia imutável.) Nada de se misturar aos outros foliões, como integrante de um bloco, ou comparecendo aos bailes do clube 4 de Outubro. Também no carnaval, Seu Olavo era o solitário dos outros dias. Fazia questão de manter-se separado dos outros foliões. E certamente para inibir algum intruso de querer acompanhá-lo, Seu Olavo todo ano aparecia trazendo numa mão um pedaço de pau, que numa ponta tinha pregada uma tabuleta com a inscrição "Bloco do Eu Sozinho".
Falei, falei e não disse ainda onde Seu Olavo brincava o carnaval. Porque havia um local, o mesmo em todos os anos. Era o Posto Azul, de propriedade do Horácio Flores. Originariamente um posto de gasolina, acrescido de uma mercearia, com o tempo as duas bombas foram retiradas, mas a mercearia ficou, bem como o nome de Posto Azul. A mercearia passou a vender também bebidas, e na área cimentada, antes reservada às bombas, foram fincados três bancos de madeira, em que se sentavam fregueses, ou não, para conversar. Nesse espaço, entre os bancos, que circundava a mercearia, Seu Olavo fazia o seu carnaval.
Chegava ao Posto Azul pela manhã, depois das nove horas, e saía no começo da noite. Tortuoso o caminho de volta para casa, com Seu Olavo moído de cansaço, a cabeça rodando pela bebida. Mal se sustendo em pé, ele se arrastava apoiando-se nas paredes das residências, até chegar à sua. Por sorte a casa ficava perto do Posto Azul. Mal entrava em casa, caía na cama, só acordando no dia seguinte. E assim ia até a terça-feira. Mas na quarta-feira lá estava ele percorrendo as residências e estabelecimentos comerciais, entregando correspondência. Voltava a ser o caladão, o sisudo, o abastêmio, o recluso do resto do ano.
Morreu num daqueles carnavais. Em São Januário há quem assegure que foi a espécie de morte que pediu a Deus. Não que Seu Olavo tenha feito essa confidência - ele lá seria capaz disso. Mas por simples especulação. E tudo porque ele gostava muito de cantar um samba em que o autor revelava o desejo de morrer no carnaval. Seu Olavo nunca deixou de cantar essa música, durante os anos em que se exibiu no Posto Azul. Mas se tinha esse desejo, levou-o para o túmulo.
E suposições - isso é só o que nos resta, pobres de nós, que jamais conseguiremos decifrar o enigma daquela esfinge.

Um comentário:

mundo azul disse...

...pareceu-me uma vida bem triste!
Alegria somente no carnaval...Que magoa tão grande guardava em seu coração?
Morreu como gostaria, realmente...

Muito boa a sua história! Tocou-me profundamente...


Beijos de luz e o meu carinho!