quarta-feira, março 05, 2008

UM DEBATE SOBRE BOCCACCIO 70



Em 1966 Gilberto Stabili e eu, membros do Cineclube Tirol, de Natal (ele presidira a entidade no ano anterior) , escrevíamos uma coluna no jornal Correio do Povo. Eu escrevia num dia, ele no outro. Uma feita, Gilberto me propôs fazermos um debate sobre "Boccaccio 70", filme constituído de 3 episódios, dirigidos por Fellini ("As Tentações do Dr. Antônio), Visconti ("O Trabalho") e De Sica ("A Rifa"). Aceitei o desafio e uma noite fui à casa da irmã de Gilberto, onde ele residia. Ficamos no quarto dele. Ele passava para um papel tanto as suas opiniões sobre os 3 episódios, quanto as minhas. Depois datilografou. Foi um debate curto, devido às limitações do espaço de que díspunhamos no jornal. Achei que podia ser de interesse divulgar esse "confronto" entre dois jovens na casa dos vinte anos (ele mais velho um pouco do que eu, mas com uma vivência de cinema de já um veterano, comparada com a minha). Eis o que escrevemos naquela noite já distante, que saiu no jornal uns dois a três dias depois.
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Sobreira - "Boccaccio 70" é um filme de finalidade comercial, apesar de assinado por três grandes nomes do cinema italiano. Em busca de lucro para os seus empreendimentos, os produtores parecem ter verificado que já não bastam um bom elenco e um bom enredo, mas também que o filme seja dirigido por um cineasta famoso.
- Stabili - Que a finalidade é comercial basta ver que o inspirador - Giovanni Boccaccio - foi um satírico popularesco, justamente famoso também pelo conteúdo erótico das suas narrativas. Mas não importa a intenção comercial se a idéia é boa e os diretores têm a liberdade de dizer.
Sobreira - E porque por trás de tudo está o dedo do homem que financiou, tais filmes em geral nunca são bem realizados, existindo sempre desarmonia entre as histórias tratadas por diferentes realizadores, alguns deles saindo-se bem da empreitada, outros decepcionando. Pessoalmente, prefiro a parte de Visconti. A meu ver, ele foi, dos três diretores, o único que resistiu à finalidade comercial do filme. Por isso conservou-se fiel a si mesmo, fazendo uma história séria, sem fugir à sua temática ou ao seu estilo.
Stabili - As diferenças são mais resultantes das peculiaridades de estilo, cabendo as dissonâncias em relação ao tom geral à responsabilidade de cada diretor. Salvo quanto ao nível de qualidade de cada episódio, que depende, naturalmente, da competência de cada autor. Na minha opinião, é Visconti o destoante do espírito de "Boccaccio 70", precisamente por adotar uma linguagem séria para tratar de um tema de ironia cruel, um "entreato cínico e depravado", na expressão de certo crítico. Não precisava Visconti fugir à sua temática e sim adaptar o seu estilo ao espírito do episódio.
Sobreira - "O Trabalho", na minha opinião, é um episódio inteiramente viscontiano, de maneira que o espectador familiarizado com o estilo do autor de "Rocco e Seus Irmãos" não tem dificuldades em identificá-lo. Nele estão presentes o plano bem elaborado, a preocupação pelo detalhe, o extremo bom gosto, o estilo fino e requintado, a elegância formal. Acresce a isso a classe ao tratar cenas mais ousadas (o strip-tease de Romy Schneider) e a expressividade dos grandes planos de rostos.
Stabili - Por ser "viscontiano", não impede também de ser destoante e meio-frustrado. Todos os valores e características que você mencionou estão em "O Trabalho" servindo insatisfatoriamente ao espírito e ao clima dramático do episódio. O tratamento teria de ser mais leve e isso só seria possível mediante uma forma menos elaborada, pesada e um tanto teatral como é.
Sobreira - Com relação a algum teatralismo, isso se vê em todos os filmes de Visconti (até em "Rocco") , e se explica pelo fato de ele pertencer tanto ao teatro quanto ao cinema, sentindo, por isso, a influência de um sobre o outro.
Stabili - Em "Rocco" o clima pesado era exigência da história. Em "O Trabalho", não.
Sobreira - A parte de Fellini é muito boa tecnicamente e está servida brilhantemente pelo desempenho de Peppino de Filippo, no papel do Dr. Antônio. O que a prejudica é o tom de certo exagero como Fellini assesta as suas baterias contra as pessoas que o criticaram pelo seu filme "A Doce Vida". A vingança da sua resposta atinge, algumas vezes, o delírio, o que diminui, em consequência, o efeito da sátira.
Stabili - Em "As Tentações do Dr. Antônio", Fellini usou seu talento prodigioso e a técnica cinematográfica, que domina como poucos, para expor ao ridículo os falsos moralistas que condenaram "A Doce Vida" e continuam a fazer a censura moral. Mas não somente para isso. O desabafo de Fellini atinge toda a hipocrisia - nos costumes, moral, instituições, até na arte - e é a favor da liberdade. Sua sátira caricaturesca é terrível, de uma crueldade muitas vezes injusta, e isso de fato diminui a validade da crítica, mas ela é, sem dúvida, a coisa mais inteligente (e mais cinematográfica) de "Boccaccio 70".
Sobreira - O último episódio, dirigido por De Sica, é muito inferior aos demais. Além de apresentar uma narrativa ultrapassada, "A Rifa" peca, sobretudo, pela grosseria e pelo extremo mau gosto, presentes tanto nas situações humorísticas de baixa categoria, como nos diálogos.
Stabili - Concordo inteiramente com você. Chamo a atenção para aquela comparação dos homens de Lugo com animais, quando a câmera passa sucessivamente de um grupo de porcos a um grupo de homens, no começo do episódio.
Sobreira - E como se isso não bastasse, houve a intenção de explorar Sophia Loren não como atriz, mas como mulher possuidora de inegáveis atributos físicos. É uma pena que De Sica e Zavattini tenham caído tanto. Salva-se a apresentação do problema social, que leva uma mulher a submeter-se à humilhante situação de oferecer-se como prêmio de uma rifa.
Stabili - A exploração dos atributos físicos de Sophia se faz dentro da anedota picaresca, e isso não contraria a empresa (inspirada em Boccaccio). A grosseria não é a erótica, e sim a ideológica, e pior do que isso, a da expressão.
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NOTA - "Boccaccio 70" é constituído de 4 episódios. O quarto, de Mario Monicelli ("Renzo e Luciana") foi interditado pela censura da ditadura militar, quando o filme foi lançado neste pobre país. Mas está presente no DVD do filme, lançado já há algum tempo.




Um comentário:

Anônimo disse...

Tudo muito bonito, com excessão da informação falsa de que o segmento de Monicelli tenha sido censurado aqui no Brasil. Na verdade, ele foi cortado antes da apresentação do filme no Festival de Cinema de Cannes, sendo apenas reinserido no DVD. É por essas indignas distorções dos fatos históricos é que nosso país é pobre de cultura.