Três vezes perguntara por que ela estava tão calada. E ela sempre a responder que não era nada. Na terceira vez, quando perguntou se estava ressentida com algo que ele lhe fizera, Helena denotou, no tom ríspido de voz, um começo de irritação com a inquirição dele. Sentindo a reação dela, Ramiro achou prudente parar com aquelas perguntas. O certo seria buscar algum assunto, por mais trivial que fosse, para tirá-la daquele mutismo que o desconfortava. Como tinha sido o dia dela no trabalho? Bem, ela respondeu, lacônica. Afinal convencido de que não podia arrancar mais nenhuma palavra de Helena, ele resolveu também se calar. Assim mudos passaram o restante do jantar, um só abrindo a boca para pedir um prato que estivesse mais ao alcance do outro.
Ao deixarem a mesa, Helena foi escovar os dentes, enquanto ele foi ligar a televisão. Depois ela iria para junto dele. Era assim todas as noites, até mesmo quando iam sair. Mas naquela noite, quando voltou do banheiro, ela disse que tinha "um horror" de provas para corrigir e não podia perder tempo. "Mas não dá pra você ficar nem um pouco"? "Não dá. Eu tenho que devolver as provas amanhã". A atitude dela deixou-o ainda mais preocupado. Ela nunca procedera daquela maneira. Algum problema a estava perturbando, mas ela não queria revelá-lo. E enquanto as imagens do telejornal iam passando à sua frente, ele não se dava conta do que elas mostravam, nem ouvia direito as falas, pois o pensamento se concentrara na busca de um ato seu, um gesto, uma palavra àspera, que a tivessem magoado. Vasculhou a mente, tentando rememorar fatos do dia, da noite anterior, até mesmo quando estavam na cama nos momentos de amor. Em vão. Nada. O melhor é esperar até amanhã, talvez ela me diga o que está acontecendo. E continuou vendo, sem ver, o que se passava na televisão.
Ao entrar no quarto, Helena trancou a porta, mas não foi para o birô. Dirigiu-se para a janela. Mas, como o marido diante da tevê, ela não "via" a profusão de luzes iluminando aquela pequena parte da cidade. Meditava sobre a sua vida. A bem dizer, continuava uma meditação que começara já já algum tempo. E a cada dia que passava, mais tomava consciência da falta de sentido em que a sua vida se transformou com a irrealização de sonhos por tantos anos acalentados, a morte das ilusões, a perda da esperança. E o pior: sem vislumbrar um aceno sequer de mudança. E o casamento? Todos os conhecidos, amigas, familiares colocavam Ramiro num altar, ela tirara a sorte grande ao encontrar um homem de tantas qualidades: trabalhador, bem-educado, excelente profissional e, por cima, sempre apaixonado pela esposa. Sim, Ramiro podia ser tudo isso, mas havia algo nele que Helena não sabia discernir (e nem eram os pequenos defeitos que toda pessoa, mesmo as melhores, tem)., que a fazia não se sentir a mulher tão invejada. Quem sabe se a culpa não seria dela? E das outras coisas era também culpada? Da profissão que já não a satisfazia, da falta de estímulo para continuar lecionando? Do convívio com a maioria dos colegas e das amigas? Teria ela toda a culpa por não encontrar mais naquelas pessoas o que buscava para uma existência mais fácil de ser levada?
Tudo isso tinha se incrustado à vida de Helena, como uma dor persistente, e nesses últimos dias ela vinha se sentindo cada vez mais infeliz, embora procurasse disfarçar, sobretudo de Ramiro, todo o sofrimento. Mas naquela noite nem a ele conseguira enganar. Que assim seja, disse para si mesma. E, de repente, enquanto olhava a parte da cidade inundada de luz, voltou-lhe à lembrança um fato que presenciara na sua adolescência Um fato ocorrido há tantos anos na vida de uma pessoa, que nunca saíra da sua mente. Vez por outra se via a recordá-lo e não foram poucas as pessoas, através dos anos, às quais contou o sucedido. Até a Ramiro ela contou.
Era uma mulher da sua cidade. Uma fina doceira. Seus doces, das mais variadas espécies, eram motivo de comentários não só naquela cidade, mas nas cidades vizinhas. Até à capital do Estado a sua fama havia chegado. Solteira, devia ter, na época, quarenta e poucos anos. A família de Helena era, como as demais da mesma classe social, freguesa de Amália. E uma tarde a mãe de Helena mandou-a à casa de Amália, para comprar o doce de leite de que o marido tanto gostava. Lá chegando, Helena bateu palmas três vezes, ninguém apareceu. Nem Amália, nem uma sobrinha que morava com ela, tampouco a empregada. A porta da frente estava só encostada. Helena, acostumada a frequentar a casa, para visitar a sobrinha de Amália, foi entrando, enquanto dizia sou eu, Amália. Tão logo pôs os pés dentro da casa, deparou-se com uma cena que a deixou entre chocada e penalizada. À mesa das refeições estava Amália. A cabeça curvada, as mãos tapando quase todo o rosto (só os olhos descobertos), a doceira chorava. E o choro não era silencioso - a mulher chorava como uma criança quando apanha. De tão intenso o choro, os braços tremiam. "Amália, o que foi que houve"? Helena chegou para perto dela e repetiu a pergunta, mas Amália parecia não dar pela presença dela e continuava no choro. "Aconteceu alguma coisa com Eliane"? E Amália sem responder, continuando a chorar. Helena pôs a mão sobre a cabeça dela e fez um afago. Durante um minuto ou mais manteve a mão sobre a cabeça de Amália, como se a leve pressão da mão pudesse aliviar a dor da mulher. Depois foi saindo devagarinho, olhando para a pobre mulher, a quem sempre vira alegre e tão disposta.
E ao recordar, mais uma vez, a cena lastimável, Helena pôde compreender, depois de tantos anos, o sofrimento daquela mulher numa tarde longínqua. E sentiu-se na pele de Amália, a fina doceira, a mulher tão elogiada e respeitada pela sua arte na culinária. Então, de repente, veio-lhe, incontrolável, a vontade de repetir o ato de Amália. E lágrimas lhe vieram aos olhos. Helena chorava. Mas, ao contrário do choro de Amália, o seu era silencioso. E assim ficou por muito tempo deixando as lágrimas banharem-lhe o rosto.
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