sábado, outubro 22, 2005

UM DIA... OS MESMOS DIAS

Assim que acordou, olhou o relógio. Gesto mecânico, que o faria sorrir, se pudesse sorrir. Tinha tomado a decisão, noite passada. Não.Foi quando chegou ao trabalho, no turno da tarde. O encarregado lhe cobrou explicação por ter faltado pela manhã, ele disse que estivera adoentado. O caso teria morrido aí, o superior alertando-o, cordato, para avisá-lo quando não pudesse comparecer ao expediente matutino. Mas o homem tinha de representar o tiranete para uma platéia o seu tanto numerosa: esbravejou, espezinhou, ameaçou. Ele sem força para revidar. Aniquilado, arrastou-se para a mesa de trabalho. Tarde péssima. A mais comprida de toda a sua vida, os ponteiros do relógio tartarugando pelos números.
O que houve à noite, em casa, foi um restinho de dúvida alfinetando-o. Mas quando ouviu a opinião da mulher, concluiu que não mais devia hesitar. E tu vai viver de vento, Eduardo? Largar um emprego tão bom por uma besteira dessa. Será que tu esquece que tem filhos e mulher pra sustentar? Homem, aprenda a viver.
Aquele incidente fora o impulso que lhe faltava para despencar na fossa. O serviço há muito o deixara de interessar. Embora trabalhasse com certa desenvoltura e uma correção que lhe valiam, vez por outra, um elogio, recebido com indiferença. Chocava-se, acima de tudo, com a disciplina, a submissão ao relógio, controlando a hora de chegar, a hora de sair, a hora de descansar. Quando se atrasava no intervalo entre o fim do primeiro turno e o início do segundo, era o banho só pra molhar o corpo, o almoço engolido, o carinho sonegado aos filhos. Impossível também aceitar os métodos utilizados para se fazer carreira. Para se galgar o menor d menor dos cargos, o que menos contava era a eficiência no serviço: o sujeito tinha de beijar os pés do superiores e até, sendo necessário, apontar algum companheiro em falta. E ele obrigado a conviver com esse tipo de gente, dar bom dia a esses abanadores, receber ordens deles.
E agpra aqiela implicância do encarregado. Um baba-ovo querendo bancar autoridade. Lutava pra não pensar na figurinha, mas os olhos só viam o rosto balofo do homem, e nos ouvidos zuniam as palavras que o encarregado aprendera nos cursos da Fábrica. Tenaz perseguição, de que não podia escapar. Ainda vendando os olhos e arrolhando os ouvidos.
Eduardo, não tã na hora de se levantar, não? Não respondeu. Será que a mulher pensava que recuara da decisão^Que se dobrara à maneira vulgar dela de protestar? De uma vez por todas: a mulher não o comprendia. As vezes que lhe explicou por que não adaptava ao trabalho! Perda de tempo. Ela via a Fábrica como um deus generoso que havia dado tudo ao marido: a casa, o carro, a mesa farta, os filhos calçados e vestidos. Nem por um instante parou para pensar que ele havia dado muito mais do que recebera.
Outra vez o relógio. Mas que mania essa de olhar o relógio, não precisando mais dele! Sete e quinze. Todo dia a essa hora estava saindo do banho. Se penteava, se vestia, comia, corria para o emprego. Trabalhava até às dez, voltava, brincava um pouco com as crianças, se banhava, se vestia, almoçava, fumava, corria para a Fábroca. E a tarde tão comprida Mais de dez anos nisso. E a mulher ainda vinha achar que devia continuar nessa vida. Ela não tinha nada que botar os filhos na história. Tinha sido grossura demais falar aquilo. Precisava ser um desnaturado para deixar os filhos passarem fome. Arranjaria outro emprego, ganhando menos, mas onde não houvesse tanta sujidade. Podia arranjar qualquer coisa. Tivesse que viver mais simples do que vivia, venderia o carro, tomaria o ônibus.
Sete e meia (terceira vez que olhava o relógio). Já devia estar no banho. Depois do café , ia conversar com a mulher. (O trivial.) A cara do encarregado reapareceu, a bocona - atirando ameaça. Da próxima vez que você faltar pela manhã, sem me comunicar, não precisa vir de tarde. Terá falta pelo dia todo. Isso aqui não é cu-de-mãe joana pra todo mundo fazer o que bem entende. Tá com alguma coisa, Eduardo? Silêncio. A mulher se afastou. Os filhos se achegaram, pularam sobre ele, fazendo-lhe brincadeiras. Ele chegou a rir. Então, num repente, saltou da cama, correu para o banheiro. Ela: eu posso mandar passar o café? Ele: mudo,só lhe adiantando gritar. Um grito de mil decibéis. Asseou-se e vestiu-se acelerado. Entrou no carro, faltando dez minutos para começar o expediente. Iria voando, para não chegar atrasado.
Este conto faz parte do meu livro de título homônimo, de 1983. É aqui republicado em forma integral, apenas com mínimas alterações na linguagem.

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