quarta-feira, agosto 13, 2008

UM CONTO DE BARTOLOMEU CORREIA DE MELO (RN)

DA JANELA



Hei de morrer,

cantando teus louvores,

qual rouxinol

que expira ao por-do-sol

Bendito de nossa Senhora

* * * * * * * * * *


VEM passando. Debaixo do foguetório, carro-de-som puxa rosário:

"Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco..."

Rua afora e janelas adentro, choramingo da bandinha e latomia dos fiéis:

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."


No quarto-do-meio daquele sobrado, Salete e Dorinha...

- Chega, mulher! Mazinho já dobrou a esquina, com a cruz-do-divino.

- Peraí, estou indo; não acho meu trancelim. Quede a loção?

- Vem todo espigado, o semostrador; mesmo terninho curto, todo ano.

- Enjoei desse fresco besta; mais parece uma porta-estandarte!...

- Tanto que te arrumas, só pra sair na janela? Avia, lerdeza!

- Vê se me ajudas nesse colchete. Será que engordei?

- Vixe, menina, estás mascarada! Deixa tirar...

- Mudei o pó-de-arroz. Esse agora rende mais.

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

- Escutas a voz de Zabé Capela no meio-do-mundo?

- Respostando a oração arriba da multidão.

- Mas não é? Eita, magrela gasgita! Fhum!

- Indo pro céu, vai deixar Jesus mouquinho!

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

- Ah, os anjinhos, mulher, que lindeza!

- Lembras do nosso tempo de anjo? Eram asas mais bem feitas.

- A mais bonita é Tininha, não?

- Pois que bem puxou a bênção das tias dela.

- Aquela maiorzinha até que passou da idade de anjo.

- Virando capetinha... Repara os peitinhos já brotando.

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

- Eita! João da Loja vem melado; tombando fora da fila.

- Bêbado indecente, finda tangido da igreja, feito cachorro!

-Triste devoto de Nossa Senhora das Garrafas! Fhum!

- Será por chifre-de-noiva, faz-que-tempo, levado?...

- Rhum! Não sinto remorsos! Bem que foi merecido!

"Santa Maria de Deus rogai por nós pecadores..."

- Quem é aquela de fita azul, atrás de Ceição Batata?

- Maria Rita de Neco Souza. Por que indaga?

- Espia bem pra barriga... Aposto que buliram com ela.

- Coitada, quanta vergonha! E isso é Filha-de-Maria!...

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

- Dona Coló, mesmo caduca, não perde função nem obrigação.

- E largam a velha sozinha, variando no meio do povaréu...

- Diz-que a briga pela herança já começou, ela inda viva!

- Com tamanha carolice, capaz de deixar tudim pra Santa.

- Ah, magino a cara chocha dos parasitas!...

- Fhum! Será bom demais pra gargalhar.

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

- Quem disse que Paulim Meia-Garrafa agüenta carregar andor?

- Naquele tamanhico, só atrapalha os outros!

- Espia; chega vai esguiado, na pontinha dos pés!

- Finda derrubando a Santa, que Deus me perdoe!

- Cadê o sacristão, que não ajeita isso?

- Lá na torre, tocando no sino e nos meninos...

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

- Ai, Saletinha, me arrupio todinha, quando avisto essa pessoa!

- Onde, onde? Ah, já avistei, na banda-de-música.

- Tocando bombardão... Que fôlego, que bochechas!

- Parece que melhor tocava os taróis de quem conheço...

- Ah, nem me fales... Se não me olhar, hoje não durmo!

- Sossega o facho mulher, faz trinta anos!

- Quando enviuvar, casa comigo; Mãe Jupira prometeu.

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

- Vigia ali, a presepada que vem vindo!

- Tibes! Seu Agenor de novo amor!... Uma criança!

- Bonitinha, a forasteira. Mais parece bisnete desse ridículo.

- Ah, cabrita entojada! Ventinha pra riba, procurando catinga.

- Ele todo ancho, mostrando a quenguinha.

- Ora, que amostre! Que outro uso daria pra dita-cuja?...

- Nem a poder de catuaba! Mata o velho! Fhum!

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

- E as irmãs Vasconcelos sempre estreando roupas novas...

- Não as entendo... Como se arrumam?

- A decadência guarda mistérios, comem nobreza e educação.

- Falam de encontros marcados nas altas horas...

- Com tais feiúras, não acredito! Haja língua ruim!

- He, he! Aumento, mas não invento.

"Santa maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

- Olha, Zazá mais o trouxa dela. Não tira o olho dos rapagões.

- Diz-que o de agora é Biuzim de Creuza.

- Mesmo? Aquele frangote botador d'água? Não brinques!

- Bem reparando, ficou troncudo, bom de abraçar.

- Mulher, te comporta!

"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."

- Vigia só, o infeliz do Gavião! Deus nos livre!

- Solto de novo? Ah, desgraçado!

- Capaz de bater a carteira do padre!...

- Hi, olhou pra gente, disfarça!

- Diz-que,além de ladrão, é tarado.
- Oxente! Larga de léria!
- Foi pego brechando Janilza no banho.
- Até que nem tão tão malencarado como pintam...
"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."
- Cada dia mais magrinho, Padre Afonso...
- Falam naquela doença, tadinho.
- Doença-do-mundo?
- Não, maldosa, doença-do-peito!
- Vôtes, isso pega?
"Santa Maria mãe de Deus rogai por nós pecadores..."
Breque da banda, bem floreado. Daí, esbarra o andor perante o casarão. Rachões na calçada, paredes descascando, mas janelas adornadas por toalhas de labirinto. Entre papocos, aplausos e pétalas de rosas, brada o carro-de-som:
"Esta estação simboliza o quinto punhal cravado no coração de Maria. Rogamos a Deus pelos dessa casa, a família do saudoso Dr. Peixoto."
A banda tascou o hino da Padroeira.
"Viva Nossa Senhora das Dores!"
"Vivaaa!"
Da janela-do-meio, dignas como a Santa, elas sorriam e agradeciam.

-

quarta-feira, agosto 06, 2008

A METAMORFOSE ANUAL DE SEU OLAVO

Todos em São Januário já conheciam aquele ruído e, ao ouvi-lo, identificavam o autor: é o Seu Olavo. E alguém da casa ia receber a correspondência. Seu Olavo era o carteiro. Não se anunciava pela voz, como Ariston, o seu substituto. Correio, gritava Ariston. Seu Olavo adotava o método de bater com a palma de uma mão sobre o volume de cartas empilhadas na palma da outra mão, e tão forte era o som produzido que se podia ouvir pela casa toda. Punha tanta habilidade em seu método que o ruído era escutado mesmo que Seu Olavo trouxesse na mão uma única mensagem. O som, nesse caso, percutia de forma cava.
Essa maneira de se anunciar, sem a voz, condizia com o temperamento de Seu Olavo, um homem caladão, sisudo, que não apreciava uma boa conversa. Alto, seco de carnes, um bigode grosso, bem tratado, olhos que mal fitavam as pessoas, como não ousasse encará-las. Seria de esperar que usasse óculos, e os seus eram de lentes muito grossas, o que realçava mais ainda o ar sério.
Seu Olavo e a mulher formavam um casal que timbrava pelo contraste de temperamentos. Vendo-os, podia-se acreditar naquela máxima de que os opostos se atraem, pois até no físico eram diferentes. Dona Zizinha era baixa e gorda e apreciava uma conversa, tanto quanto o marido evitava-a. Tinha uma língua maior do que o corpo, com mais peçonha que uma cascavel, e, como se fosse pouco o veneno que destilava, gostava de colocar apelido nas pessoas. Imagino como seria o convívio entre aqueles dois. Dona Zizinha falando sem descanso, Seu Olavo só escutando. E é de se supor que suportasse numa boa a língua de camelô da esposa, porque só saía de casa para o trabalho, a missa aos domingos, ou para fazer alguma compra. Sem um único amigo, Seu Olavo não era visto num bar ou nas esquinas, ou na praça, em um animado papo. Jamais.
Imagino como seria difícil para alguém de passagem por São Januário, ao ouvir um nativo falar a respeito de Seu Olavo, crer que ocorresse uma extraordinária transformação nos hábitos e na conduta daquele homem quando chegava o carnaval. Eu mesmo quando atingi a idade em que o homem descobre que a natureza humana é pródiga em mistérios impenetráveis, sentia-me perplexo diante do espetáculo oferecido por Seu Olavo no período momesco. Durante aqueles quatro dias o que víamos era um homem do qual não restava qualquer vestígio daquele a que nos acostumáramos a ver nos demais dias do ano.
O homem que vivia de boca fechada durante quase o ano inteiro, abria-a no carnaval para cantar as marchinhas e os sambas; o abstêmio dos outros dias, incapaz de pôr os pés num bar, no carnaval bebia da garrafa que trazia no boso; o homem sempre vestido com roupas sóbrias, no carnaval usava uma fantasia, diferente a cada ano. E a cada ano, à medida que se aproximava a chegada do carnaval, crescia a expectativa dos januarenses em relação à fantasia que Seu Olavo iria usar. Era o segredo mais bem guardado de todo o planeta. Nem o mais scherlockiano dos homens de São Januário seria capaz de descobri-lo. Calado e discreto como era, Seu Olavo não o revelaria nem mesmo à esposa, mesmo que ela não tivesse a língua solta. É quase certo que ele a mandava confeccionar na Capital. Em São Januário não era, todo mundo saberia.
É certo que mesmo naqueles quatro dias, ainda que desvelando a alma de folião, Seu Olavo conservava o segregacionismo social. (Este o único traço de sua personalidade que permanecia imutável.) Nada de se misturar aos outros foliões, como integrante de um bloco, ou comparecendo aos bailes do clube 4 de Outubro. Também no carnaval, Seu Olavo era o solitário dos outros dias. Fazia questão de manter-se separado dos outros foliões. E certamente para inibir algum intruso de querer acompanhá-lo, Seu Olavo todo ano aparecia trazendo numa mão um pedaço de pau, que numa ponta tinha pregada uma tabuleta com a inscrição "Bloco do Eu Sozinho".
Falei, falei e não disse ainda onde Seu Olavo brincava o carnaval. Porque havia um local, o mesmo em todos os anos. Era o Posto Azul, de propriedade do Horácio Flores. Originariamente um posto de gasolina, acrescido de uma mercearia, com o tempo as duas bombas foram retiradas, mas a mercearia ficou, bem como o nome de Posto Azul. A mercearia passou a vender também bebidas, e na área cimentada, antes reservada às bombas, foram fincados três bancos de madeira, em que se sentavam fregueses, ou não, para conversar. Nesse espaço, entre os bancos, que circundava a mercearia, Seu Olavo fazia o seu carnaval.
Chegava ao Posto Azul pela manhã, depois das nove horas, e saía no começo da noite. Tortuoso o caminho de volta para casa, com Seu Olavo moído de cansaço, a cabeça rodando pela bebida. Mal se sustendo em pé, ele se arrastava apoiando-se nas paredes das residências, até chegar à sua. Por sorte a casa ficava perto do Posto Azul. Mal entrava em casa, caía na cama, só acordando no dia seguinte. E assim ia até a terça-feira. Mas na quarta-feira lá estava ele percorrendo as residências e estabelecimentos comerciais, entregando correspondência. Voltava a ser o caladão, o sisudo, o abastêmio, o recluso do resto do ano.
Morreu num daqueles carnavais. Em São Januário há quem assegure que foi a espécie de morte que pediu a Deus. Não que Seu Olavo tenha feito essa confidência - ele lá seria capaz disso. Mas por simples especulação. E tudo porque ele gostava muito de cantar um samba em que o autor revelava o desejo de morrer no carnaval. Seu Olavo nunca deixou de cantar essa música, durante os anos em que se exibiu no Posto Azul. Mas se tinha esse desejo, levou-o para o túmulo.
E suposições - isso é só o que nos resta, pobres de nós, que jamais conseguiremos decifrar o enigma daquela esfinge.

terça-feira, julho 29, 2008

25 ANOS SEM BUÑUEL

Luis Buñuel como ator numa célebre cena de "Um Cão Andaluz" (1928).

Nascido com o século vinte, o espanhol Luis Buñuel foi um cineasta dos mais importantes. E o mais singular, segundo a opinião do crítico Moniz Vianna, formulada na década de 1960, para quem Buñuel não iria deixar herdeiros (eu incluiria Fellini). Adesista de primeira hora do Surrealismo, Buñuel, na verdade, se manteve fiel ao movimento até o fim da vida. Claro que o Surrealismo, e não podia ser de outra forma, aparece bem mais diluído em meio aos temas que ele aborda a partir de uma certa parte de sua carreira, mas não deixa de ser visível, por exemplo, num filme como O Fantasma da Liberdade, o penúltimo de sua obra. Numa entrevista aos críticos franceses André Bazin e Jacques-Donioel Valcroze, concedida nos anos 50 do século passado, Buñuel, ao responder à observação do primeiro de que ainda conservava vínculos com o Surrealismo, diz que é verdade e aproveita a oportunidade para reconhecer a sua dívida com ele. E por falar em Bazin, este inclui Buñuel na lista dos diretores que fazem "o cinema da crueldade", ao lado de Dreyer, Kurosawa, Hitchcock, Stroheim e Preston Sturges.

Examinando-se os filmes de Buñuel sob o prisma da narrativa e da linguagem, observa-se, se não um desprezo, pelo menos um desinteresse pelo cuidado, o apuro da forma. Ou seja, interessa-lhe é a comunicação da mensagem ao espectador, a intensidade, o impacto que ela possa ter sobre este. Mas, às vezes, ele sonega a comunicação ao espectador. Como se quisesse bulir com o espectador, levando-o a dar tratos à bola sobre o significado de um plano, até de uma cena. Outras vezes, ele nem revela o detalhe de uma cena, como acontece, por exemplo, em A Bela da Tarde, quando se fica sem conhecer o conteúdo de uma caixinha que o cliente oriental mostra às moças da casa de encontros amorosos frequentada por Catherine Deneuve.

É o antípoda de Visconti, que, mesmo quando mostra uma cena "forte", também de impacto, jamais abdica do seu estilo requintado, do apuro visual-plástico, da elegância formal. Não há parentesco com o despojamento de Bresson, nem com o de Rosselinni; não, é o toque de Buñuel, como existe o toque de Welles, o de Fellini, o de Hitchcock, o de Ford, enfim, dos grandes cineastas. Ele disse, certa vez, destestar o que chamou de "angulos complicados". E também não gostava do uso da música no cinema, conforme afirmou na citada entrevista.

Voltando ao tema da crueldade na obra de Buñuel. Esse enfoque dado ao seu cinema o desagradava muito e, aparentemente, ele desconhecia a opinião de Bazin. Pelo menos, não faz referência ao crítico e ensaísta francês na autobiografia "Meu Último Suspiro" (Nova Fronteira/1982) . Nesse livro, indispensável para se conhecer o cineasta e, principalmente, o homem, Buñuel comenta a tristeza que sentiu ao ler este slogan escrito sobre o cartaz de um de seus filmes, exposto num cinema de Paris: " O metteur-en-scène mais cruel do mundo".

E o pior é que essa "crueldade" era associada a sua pessoa. Um pouco mais adiante de quando menciona esse fato, ele conta a impressão causada em Vittorio De Sica por Viridiana. De Sica assistiu ao filme na Cidade do México, ao lado de Jeanne, esposa de Buñuel. Saiu do cinema "horrorizado", "sufocado" e depressa tomou um táxi, junto com Jeanne, para ir a um bar. No trajeto, perguntou a ela se o marido era um monstro dentro de casa e se chegava a bater nela. Resposta de Jeanne: "Quando é preciso matar uma barata, ele me chama".

O homem era tão digno de interesse quanto o cineasta. Tinha as melhores idéias quando estava solitário num bar, degustando um bom vinho. Adorava usar disfarces que o deixavam irreconhecível. Ele conta a peça que pregou so set de filmagens de Viva Maria, de Louis Malle. Entrou ali usando uma peruca, passou um tempão pra lá e pra cá, olhando a câmera, fitando os atores, e todo mundo se perguntava quem era aquele estranho velhinho, que parecia ser alguém enviado pelo produtor. Nem Jeanne Moreau, que trabalhara com ele há pouco tempo, o reconheceu. Muito menos o próprio filho, Jean Louis, que trabalhava como assistente de Malle.

Esse era Don Luis, assim tratado, que faleceu em 29 de julho de 1983, há exatos 25 anos.


quarta-feira, julho 23, 2008

KAFKA






Este texto foi publicado em junho de 1993 em um jornal de Natal, onde eu escrevia semanalmente. Resolvi divulgá-lo aqui, por ter visto o filme recentemente na tevê e conservado a mesma impressão sobre ele quando o vi há 15 anos. Ei-lo.


* * * * * * * * * * * *


Há de se sentir logrado o leitor de Frank Kafka que alugar a fita, acreditando que irá ver a cinebiografia do autor de A Metamorfose. É verdade que este é personagem da história, sim, mas desvinculado do seu universo de escritor, bem como da sua condição de homem envolvido em problemas íntimos e familiares, com os quais, basicamente, alimentou a sua obra. É certo também que, ao longo da narrativa, esse leitor irá encontrar uma ou outra informação sobre Kafka. Como na cena em que alguém pergunta se ele está desenvolvendo algum projeto literário e Kafka responde, lacônico, que está escrevendo sobre um homem que um dia acorda transformado num inseto. Mas não fosse por essas esparsas referências a Kafka, ele nem precisava ser personagem da história, bastando que o roteirista criasse um outro de sua própria imaginação. É é de supor que dotasse esse personagem fictício da credibilidade improvável em um homem que, pelo temperamento tímido, e ainda mais tendo os pulmões arruinados pela tuberculose, jamais poderia meter-se numa aventura arriscada que exigiria a compleição quase de um atleta.

O artifício de se valer de um escritor real como personagem não é novidade no cinema. Só na década de 80 podem-se citar dois exemplos: Hammett, de Wim Wenders, onde Dashiel Hammett se mete numa trama policial em muitos pontos semelhante às que ele punha no papel; e A Ùltima Dança de Salomé, de Ken Russell, com Oscar Wilde aparecendo como espectador de sua peça Salomé, encenada num bordel. E se em ambos o resultado foi, no mínimo, satisfatório, o foi sobretudo por Hammett e Wilde se apresentarem de maneira verossímil.

Por sua vez, o espectador que viu Sexo, Mentiras e Videotape ficará desapontado com este segundo filme de Steven Soderbergh. Ele nem se sai bem no propósito de realizar algo diferente do que seria uma simples biografia (e é de lamentar a chance que jogou fora, com um material rico como a vida de Kafka) , nem cria nada em termos de narrativa. Ao invés de acender as próprias luzes, Soderbergh prefere tomá-las emprestadas do Expressionismo alemão, lançando mão de seus recursos estilísticos (câmera inclinada, sombras humanas, close de rostos exóticos ou grotescos). Ainda que possa se tratar de uma homenagem, como quer um crítico, o diretor deveria ter dado um pouco de si mesmo, como faz Brian Di Palma, que não se limita a copiar Hitchcock. E no fato de ele mesclar o preto-e-branco e o colorido, Soderbergh não só não foi original, como fez uma coisa para a qual não vejo explicação.

Mas, afinal, depois de tudo o que foi dito, sobra algo de positivo em Kafka ? Sim. Um ou outro momento inspirado, a fotografia, apesar do seu débito com o Expressionismo, e sobretudo o elenco, repleto de sotaques de várias nacionalidades. Jeremy Irons faz o que pode para parecer com o Kafka que conhecemos de informações, Alec Guiness exibe a classe habitual num pequeno papel, Ian Holm idem, como o sinistro Dr. Murnau (uma homenagem ao cineasta?). Mas a melhor atuação é de Joel Grey (o inesquecível mestre de cerimônias de Cabaret) , vivendo uma espécie de fiscal de funcionários de uma empresa de seguros, onde trabalha Kafka.

terça-feira, julho 15, 2008

PODEM ALGUNS NOMES TER UMA CARGA NEGATIVA?

Minha caçula está grávida do segundo filho. Depois de descobrir o sexo do feto, ela e o marido iniciaram o difícil processo de escolher um nome. Todo casal passa por esse problema. Até surgir um nome que agrade aos dois passam-se muitos dias, até meses. No passado, quando o sexo do filho só era conhecido quando este nascia, a coisa era mais complicada, já que tinha de se escolher um nome masculino e outro feminino. Um dos nomes discutidos foi o de Diego, mas a minha filha logo o descartou ao se dar conta de ser o prenome de Maradona, um usuário de drogas, que, por mais de uma vez, esteve perto da morte. Talvez se ela gostasse de futebol e admirasse o gênio do argentino no trato com a bola, pudesse ter relevado o vício dele.
E aí me voltou a pergunta que me faço já faz muito tempo: alguns nomes podem conter uma carga negativa, que seja nociva à pessoa que com ele foi batizada? Não tenho muitos exemplos (na verdade, só tenho um) para seguir me fazendo essa pergunta. Trata-se do nome Edmundo.
Na minha Canindé conheci três Edmundos (não me lembro se havia outros mais) que me parece atingidos por uma marca do nome que receberam. Há pouco tempo publiquei um conto neste blogue, integrante de um antigo livro meu, em que falava do Seu Edmundo, um dentista. Um homem respeitado, estimado, boa aparência, que, a partir de um determinado momento, começou a beber sem moderação, terminando por se tornar um alcoólatra. Abandonou a profissão e foi abandonado pela esposa, que não pôde agüentar a vida que ele levava. Transformou-se em um desmazelado, motivo de chacota, até morrer, de repente, com pouco mais de 50 anos.
E havia o Edmundo, que devia ter uns vinte anos, um pouco mais, quando eu era um pré-adolescente. Era um prato feito para as brincadeiras (algumas pesadas) dos outros, por ter uma boca muito grande. Além disso, esse Edmundo, que, aparentemente, não ligava para as chacotas de que era vítima, tinha a mania de querer falar "difícil", fornecendo, assim, mais munição para os gozadores. Mas o pior é que, a exemplo do seu homônimo, acabou por tornar-se um alcoólatra. Já morava em outra cidade, onde arranjara um emprego. Um homem bom, afável, incapaz de matar uma barata, mas que, quando bêbado, ficava furioso. Se não batia na esposa, quebrava objetos da casa. Também morreu relativamente novo, de ataque cardíaco, tal como o dentista.
Já o terceiro Edmundo não tinha quase a ver com os outros dois. Ou, talvez, tivesse alguma "afinidade" com o segundo, pois era um tanto tolo, que falava muita besteira, e, ainda por cima, não tinha a afabilidade do Edmundo do defeito bucal.
Tenho pra mim que passei a pensar na influência negativa do nome Edmundo por causa do jogador que surgiu no Vasco e onde joga atualmente, após atuar em outros times. Foi um grande jogador (escrevo no tempo passado porque ele está em final de carreira, não rendendo, talvez, metade do que apresentou até há poucos anos), que alternou o seu desempenho nos gramados com graves problemas motivados por seu temperamento. Chegou a sair na página policial dos jornais por conta de um acidente automobilístico ocorrido depois de uma farra, o qual causou a morte de uma pessoa, ou mais de uma. Nunca foi punido por esse delito, a não ser ter ficado preso por alguns dias. É possível que o processo contra ele já tenha prescrito.
É claro que houve e há outros Edmundos que levaram e levam uma vida sem grandes percalços - se saíram bem na vida. E os que citei aqui teriam passado pelas mesmas atribulações, a sua vida teria sido conduzida da mesma forma se tivessem outro nome. O peso não seria do nome. E os adeptos do Espiritismo poderão argumentar com o tal do carma. Mas que continuarei pensando da mesma maneira, 0u, dizendo melhor, me fazendo aquela pergunta, isso continuarei. Pelos quatro exemplos que tenho.

quarta-feira, julho 09, 2008

AMOR À FLOR DA PELE (2000)







Um filme triste este do chinês Kar-Wai Wong. Triste e amargurado, porque os personagens centrais, Chow (Tony Leung) e Su Linzhen (Maggie Cheung), que é sempre chamada por Mrs. Chan, sobrenome do marido, não conseguem transformar em amor a atração que sentem um pelo outro. A não-consumação desse amor ocorre por causa da mulher, mas a razão não é explicada, apenas ela chega a dizer uma vez "não devemos fazer como eles", que são o marido dela e a esposa dele, que têm um caso. Assim, não vão uma única vez para a cama no seu curto relacionamento, não se fazem carinhos, ainda que estejam quase sempre juntos, até em um quarto de hotel. É como se fossem dois amigos (embora, segundo Borges, a amizade é uma das formas que o amor assume), solitários pela constante ausência dos outros dois parceiros, dois carentes em busca de um amor, já que fracassou o legitimado pelo casamento. Em resumo, não é um filme de amor, mas da impossibilidade de um amor, e, nessa particularidade, "Amor à Flor da Pele" faz lembrar o universo temático de Antonioni, dentro, contudo, de um outro contexto.

O diretor enfatiza bem essa impossibilidade ao reunir os dois algumas vezes à frente de uma grade, cujas barras se assemelham à de uma prisão. E como se fosse um contraponto à falta de entrega total, avassaladora a esse amor, a trama é pontuada em algumas ocasiões pela voz de Nat King Cole interpretando boleros.

Um detalhe a ser destacado é que os dois adúlteros não são vistos pelo espectador. Ouve-se em raras ocasiões a voz deles, ou com Chow, ou com Chan, mas a câmera os "esconde", só mostrando o rosto ou o corpo destes. (Na verdade, há um plano em que a mulher de Chow é vista chorando, depois que o amante lhe diz que vai encerrar o caso, mas de uma forma em que não se distingue com nitidez o rosto dela.) Não interessa ao diretor apresentá-los ao espectador, pois, ainda que os dois sejam os desencandeadores da aproximação e, conseqüentemente, do sofrimento de Chow e Chan, estes, sim, são os personagens que lhe importam, os seus sentimentos, a sua dor.

Wong prova com este filme porque é um dos cineastas prestigiados pela crítica. Sabe produzir imagens de grande beleza, sabe revelar o drama daquele casal unido (e ao mesmo tempo desunido) pelo amor em planos que dispensam as palavras (uma das cenas mais belas e expressivas é a da lágrima caindo do olho de Chan quando ela está sozinha em um quarto, enquanto Chow está em outro quarto) e tem o pulso forte, mas sensível, na condução dessa história triste, como também no desempenho dos atores centrais.
E que linda mulher essa Maggie Cheung!



quarta-feira, julho 02, 2008

BICICLETA



Foto tirada de www.fotosearch.com.br

Via os amigos pedalando as bicicletas, nos rostos a expressão de felicidade. E ainda sem poder discerni-la, a inveja instilava-se em seu coraçãozinho. A raiva, sim. A raiva de se ver privado daquele brinquedo que fazia parte também dos adultos. Ah, como desejava montar numa bicicleta e andar com ela pelas ruas, devagarinho, às vezes, como para fruir a conta-gotas o prazer de sabê-la sua, não precisando recorrer à de um amigo, que a emprestava por pouquinho tempo e sempre o advertindo cuidado, não vá arranhar a minha bicicleta; e em outras vezes, fazendo-a correr, apostando corrida com alguém, pra ver quem chegava antes a um determinado ponto.

Não tinha coragem para pedir ao pai. Sempre recomendando à esposa para economizar na administração dos encargos domésticos, os negócios não iam bem, a seca, outros motivos de queixa que ele ouvia e não entendia.

Sim, havia os dois padrinhos. Talvez com eles fosse menos difícil o pedido. Um era rico, dono de fazenda, de gado, tinha até carro, com motorista. Só que morava longe, aparecia raramente, mas quando vinha à cidade era certo almoçar em sua casa. Difícil era falar com ele, os dois compadres sempre juntos, acompanhados das esposas. Além disso, os raros e pequenos presentes que ganhara dele confirmavam os comentários ouvidos em casa que o padrinho era assim, ó (fechava bem a mão).

O outro padrinho, por coincidência, era também fazendeiro, mas um pequeno fazendeiro. Não tinha carro, ia de cavalo à cidade, e, não sabia a razão, nunca almoçava em sua casa, visitava o compadre na casa comercial. Estava por lá numa dessas visitas, a mando de sua mãe para pegar dinheiro para uma compra. Tomou a bênção ao padrinho, que lhe fez um afago e sacou do bolso uma pequena importância, pra você comprar de bombom. (E não é que ele seguiu ao pé da letra a recomendação?)

Não, daquelas duas tocas não sairia coelho algum.

Um dia em que estava no seu quarto ouviu o pai gritar por ele. Ao chegar, quase correndo, à presença do pai, encontrou-o com o rosto mais vermelho do que o natural, tão irado estava. Segurava numa mão o boletim escolar. A voz alterava o tom à medida que lhe passava uma descompostura, a mão chegava a tremer. Ele ali calado, cabisbaixo, já com medo de apanhar. Nem sabe quanto tempo durou a cena até a mãe chegar e pedir calma ao marido, os vizinhos já deviam estar de ouvidos colados naquela gritaria raivosa. O pai foi se acalmando, de repente calou-se e sentou na cadeira de balanço. Ele aproveitou para sair, mas o pai o chamou de novo, a voz ainda irada, mas baixa. E então lhe disse: "Escute bem o que vou lhe dizer. Se você passar de ano, vou lhe dar uma bicicleta; agora, se você não passar, vai levar uma surra que nunca vai esquecer. Ouviu bem"?

Reconheceu, já sozinho, que errara ao neglicenciar os estudos, como um ato de rebeldia por não ter a bicicleta de que se julgava merecedor. Agira sem avaliar a forma dessa rebeldia, que só teria como efeito a ira do pai podendo chegar ao limite. Fosse pelos percalços nos negócios, fosse por temperamento, ou as duas coisas, o pai perdia fácil o controle e isso repercutia no trato com a esposa e os filhos.

Mas espera aí, o pai não lhe prometera uma bicicleta, se ele passasse de ano? Estava mal em todas as matérias, poucos meses restavam para o final do ano letivo. Mas iria se empenhar - reduziria as brincadeiras, renunciando a algumas, queimaria as pestanas, para não ser reprovado. E surra é uma coisa muito dolorosa. Mais na alma, certas vezes, do que no corpo.

quarta-feira, junho 25, 2008

CANTANDO NA CHUVA (Singin' in the Rain/1952)


Este texto foi aqui publicado em março de 2005. Resolvi republicá-lo como uma homenagem à atriz e dançarina Cyd Charisse, falecida na semana passada, que tem uma participação pequena, mas importante, no musical dos musicais Cantando na Chuva.
* * * * * * * * * *
Cantando na Chuva, de Stanley Donen & Gene Kelly, é o maior musical da história do cinema. Críticos e cinéfilos, creio, não têm dúvida quanto a essa afirmativa. Uma sucessão de belas músicas (principalmente a que dá título ao filme) e uma primorosa coreografia formam uma união
perfeita. Se não tivesse outros momentos inspirados de dança e música, Cantando na Chuva ainda assim se manteria no topo dos filmusicais, graças a duas sequências antológicas. A primeira, mais lembrada, é aquela em que Don Lockwood (Gene Kelly) canta e dança sob a chuva, que é uma das maiores seqüências já realizadas pelo cinema. A segunda, menos famosa, mas de grande brilho, é a dança de Kelly com a bela e sensual Cyd Charisse. É uma dança, inclusive, a que não falta um ingrediente de erotismo, não só por alguns movimentos, como pelo corpo da dançarina.
É preciso ressaltar, no entanto, que a grandeza de Cantando na Chuva deve-se também à sua adesão à comédia, até mesmo à comédia pastelão, na cena em que Katty Selden (Debbie Reynolds) atira uma torta no rosto de Lina Lamont (Jean Hagen), mas que era destinada a Lockwood. E entre os momentos mais engraçados está na pré-estréia do primeiro filme sonoro pelo estúdio onde trabalham Lockwood e Lamont. Aliás, na exibição do filme infiltra-se outro elemento que transcende o gênero musical, ou seja, as dificuldades e problemas enfrentados nos primeiros momentos em que o cinema começou a falar. Entre esses se destaca a voz de Lina Lamont, tão inadequada ao cinema sonoro que ela precisa ser dublada por Katty Selden. (A título de curiosidade: alguns atores do cinema mudo, por causa da voz, não se adaptaram ao cinema falado, sendo o caso mais célebre o de John Gilbert, que teve que abandonar a carreira, falecendo pouco depois.)
O elemento crítico estende-se ao cinema na sua função de magia, de ilusionismo, de escamoteação da realidade (observem-se a seqüência em que Don Lockwood leva Katty Selden para conhecer um "set" de filmagem, e a outra em que Lockwood e Lamont ensaiam uma cena de amor, em meio a um clima de hostilidade entre os dois.
Nessa junção de musical, comédia e crítica satírica ao cinema, Cantando na Chuva ultrapassa os limites do gênero e inscreve-se entre os maiores filmes de todos os tempos, realizado numa época em que o cinema americano, mesmo sem perder de vista o objetivo comercial, vivia uma grande fase criativa, tão distante do que acontece hoje em dia.

quarta-feira, junho 18, 2008

OS FILMES E SEUS MOMENTOS INESQUECÍVEIS

Woody Allen e Diane Keaton em Noivo Neurótico, Noiva
Nervosa (Annie Hall/1977)

Nos filmes a que assistimos guardamos deles momentos inesquecíveis. Pode acontecer que até um filme ruim contenha uma cena, um momento, um gesto de um ator, uma frase de humor, ou qualquer outra coisa, que nos fiquem para sempre na lembrança. Muitas vezes, a lembrança é reforçada por algo semelhante que vemos ou praticamos na vida real. Uma situação, um objeto, uma gargalhada, um rosto de uma pessoa que se pareça com o de um ator pouco conhecido, tudo isso e muito mais contribui para que um determinado filme (mesmo, repito, que não possua qualidades) se perpetue em nossa memória.

Todos os dias quando me levanto da cama, antes de fazer os asseios matinais, vou para a janela do quarto e fico um pouco olhando pessoas praticando o seu Cooper. Vêm algumas em grupos de três ou quatro, outras sozinhas, algumas trotando, até as que formam um casal. E é impossível não me lembrar de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de Woody Allen. Numa cena, Woody e Diane Keaton estão num local, me parece que num parque, enquanto algumas pessoas fazem a sua caminhada diária. E Woody se dirige à noiva, comentando, em tom de ironia, sobre algumas delas, no modo de praticarem aquele exercício, não poupando nem os idosos, pelo empenho em preservarem a saúde e, com isso, fazerem retardar a chegada da morte.

Em O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish /1983), de Coppola, há uma cena em que o personagem de Mickey Rourke observa um aquário numa loja. Ao jovem irmão, que o ocompanha, ele se manifesta contra a situação dos peixinhos, aprisionados naquele espaço limitado, apartados do seu habitat. E à noite ele penetra na loja fechada para libertar os animaizinhos e devolvê-los à imensidão do mar, mas é flagrado pela polícia e acaba morrendo.

Pois bem. Durante um certo tempo freqüentei uma pizzaria, onde existe um aquário. Sempre ficava perto do aquário e cheguei uma vez ou outra a me sentar à mesa encostada a ele. E observando os peixinhos, me lembrava da cena e do personagem daquele filme.

Acontece, não raro, você encontrar no dia-a-dia uma pessoa que o faça lembrar um personagem de um filme. E nem é preciso que haja entre ambos uma semelhança física. Na década de 1960 passou em Natal Servidão Humana, de Ken Hughes/1964, baseado no romance de Somerset Maugham. Estrelado por Kim Novak e Lawrence Harvey, era a terceira versão realizada daquela obra. Havia aqui um homem de seus trinta e tantos anos (deve ter morrido, ou mudou de cidade, pois nunca mais o vi), que sofria de um problema numa perna, que o levava a andar mancando. O personagem de Lawrence Harvey carregava o mesmo aleijão. Fora isso, não havia a mínima semelhanca entre o ator e o homem comum. Mas o defeito físico de ambos fazia com que um amigo meu se lembrasse de Harvey (e, claro, do filme) e comentasse o fato comigo toda vez que encontrávamos o coitado, o que ocorria com freqüência.




quarta-feira, junho 11, 2008

TUDO PASSA - E DEPRESSA

Este espaço é hoje ocupado pelo jornalista e crítico de cinema potiguar Valério Andrade. Valério é um nome conhecido nacionalmente pelos cinéfilos da minha geração por ter trabalhado durante muitos anos no Correio da Manhã e na Manchete. Na década de 1980 voltou para Natal, onde escreve na imprensa local. É o criador e o organizador do Festival de Cinema de Natal, que já passou da vigésima edição. O artigo, com o título acima citado, foi publicado no Jornal de Hoje e, a pedidos, na Tribuna do Norte, e sai aqui com a sua autorização. Ei-lo.
******************************************
Ao ser perguntado por que estava tão feliz no dia do seu aniversário, o velho chinês respondeu: "Porque estou um ano mais perto da minha morte". Em um de nossos últimos encontros, Roberto Campos resumiu numa frase curta o drama da idade: "A velhice é um naufrágio". E poderia ter acrescentado: inadiável, inevitável, sem sobreviventes.
Alguém já observou que a "juventude é um dom precioso demais para ser desperdiçado pelos jovens". Ao ver o marido afundado numa poltrona e incapaz de evitar a incontinência urinária, Simone de Beauvoir teve a certeza de que para Jean-Paul Sartre a cerimônia do adeus havia começado.
A fugacidade do tempo é uma realidade que apesar de estar ao alcance de nossos olhos, somente costumamos perceber quando já adentrou por nossas vidas. Aí, então, vemos a verdade das frases tipo "a vida passa depressa". Ou da advertência: "aproveite enquanto é tempo". Mas, aí, também já e tarde demais.
A velhice é o pior dos castigos a que o homem é submetido antes da visita da Dama de Negro. É doloroso ver na tela da televisão ou do cinema a destruição física da beleza. Estátuas de carne e osso cobiçadas por homens e mulheres, despojadas da antiga sedução carnal e ostentando na face e no corpo as cicatrizes do tempo. O recurso da cirurgia plástica é um refúgio mais ilusório do que real, que, às vezes, em vez de ocultar, acentua os estragos da idade. Veja as nossas atrizes das telenovelas - com seus rostos de boneca plastificados.
No mundo fantasioso das idealizações românticas, Vicente Serejo[jornalista norte-rio-grandense] elegeu duas musas: Greta Garbo e Sônia Braga. A esfinge sueca, numa atitude tão drástica quanto inusitada, retirou-se de cena na plenitude física dos 40 anos, sem passar pelos tormentos da decadência física e do declínio artístico. Sônia Braga, cuja imagem eternizou-se através da Gabriela, erotização juvenil da beleza brasileira, fez uma reaparição deprimente no programa de Daniel Filho. Chocante, não por estar envelhecida, mas, ao contrário, por causa da artificialidade rejuvenescedora de cirurgias e da utilização de botox.
Recomendo a Serejo que não vá ver a Sônia que vi na televisão. É melhor para a mente e o coração, imaginá-la como ela já foi. Afinal, já que não podemos dar adeus às ilusões da vida real, evitemos a despedida dos mitos físicos de nossa juventude. O castigo dos deuses não se limita à sentença da velhice. É extensivo às cabeças pensantes e às celebridades políticas. Como esquecer a imagem de Jânio Quadros, esquelético, entrevado, aparentemente senil, sendo carregado nos braços por um enfermeiro? Ou saber que Franklin Roosevelt, vítima de apagões da memória, às vezes falava com um membro do governo sem identificá-lo. Ou Roberto Campos, ainda na plenitude intelectual, emudecido e impossibilitado de escrever.
Esse vendaval de lembranças veio à tona por ocasião do meu aniversário. Entretanto, como não tenho como deter a descida do tempo ladeira abaixo, a comemoração serviu de pretexto para reencontrar os amigos, o que para nós, fordianos, que cultivamos e priorizamos a amizade, é o que melhor sobrou dos tempos idos e vividos.

quarta-feira, junho 04, 2008

AS TARDES DE DOMINGO FORAM FEITAS PARA LEMBRANÇAS?

Foto tirada de olhares.aeiou.pt


O domingo se arrasta monótono e quente. Estirado na rede, conservo o hálito do vinho e do peixe saboreados no almoço. A televisão está ligada no Santo Sílvio. O rádio do vizinho transmite um jogo de futebol. Não sinto ânimo para fazer coisa alguma. Apenas ficar deitado, ouvindo os ruídos de uma tarde de domingo. No jornal da manhã li a notícia da morte de um colega de escola. E não sei explicar por que a morte de Pirrita não me saiu da cabeça.Talvez pela forma trágica de que morreu: num tiroteio com a polícia. Seu nome e retrato freqüentavam quase diariamente as páginas policiais. Até que lhe chegou o fim violento. Deve ter sido por isso que lamentei tanto a sua morte, já que, no colégio, nem chegamos a ser amigos. Tornara-se traficante de drogas e era caçado há muito tempo pela lei.
Porque, por exemplo, quando morreu o Doca Cunha eu senti - menino e senti. Mas Doca Cunha foi um dos heróis da minha infância, por seu destemor. Um bravo que se acabou por uma bala traiçoeira do Zé Feitosa, ao meio-dia de um domingo. Estava numa mercearia do mercado público, onde, uma vez, agredira um cunhado. Contam que a irmã lhe rogara uma praga, de que ele teria o seu fim naquele mesmo local.
Uma morte que por muito tempo vivificou em minha memória e em meu coração. O mesmo, acho, aconteceu aos meus amigos. Ela era um assunto predominante em nossos papos.E afirmava-se - alguns quase chegando a jurar - que o seu filho Amauri lhe vingaria a morte quando se tornasse adulto. Que maus profetas! Amauri, rapaz, tornou-se assassino, não do matador do pai, mas do próprio irmão.
Já era adulto quando Seu Edmundo morreu. Conheci-o já corroído pela bebida, mas ainda um bonito homem. Acompanhei, penalizado, a progressiva decadência física e moral de um homem respeitado e querido. De uma viagem que fiz em sua companhia nunca me esqueci. Foi há tanto tempo, eu era garoto, mas me lembro bem dele, bêbado, importunando o motorista e ironizando a história de um livrinho que trazia comigo. Era bem chato quando bebia. Numa manhã, na fazenda de um amigo, contava uma história quando o coração parou.
Toinho Jacinto o vi um dia desses. Mal vestido, fedendo a álcool, cantando uma putinha. Uma caricatura do Toinho saudável, elegante nas proporções de sua condição financeira e da nossa cidadezinha. Toinho, o craque de futebol que jogava de uma maneira que dava gosto ver. Não compreendíamos por que nunca foi atraído para um time da capital. Hoje me parece mais fácil entender a razão: naquela época abundavam os grandes jogadores, ao contrário do que ocorre atualmente. Talvez ele até hoje ignore que nos tenha propiciado momentos de felicidade, no dia em que participou de uma pelada com a minha turma.
O momento não estimula a ação. Sem vontade de deixar a rede, sequer para ir ao banheiro, só me resta relembrar as figuras que me enriqueceram a infância. Ah! o velhinho Vitorino. Um homem sempre bem humorado, apesar de a vida o ter tratado com desprezo. Parece-me que o estou vendo de rosto escancarado para alardear a amabilidade e a simpatia de Juscelino e compondo uma carranca com que arremedava a sisudez de Juarez. E reproduzindo os sons dos instrumentos da bandinha de música. Ao morrer, terá sido velado com a mesma abnegação com que velava os corpos dos indigentes? Penso que não. Pior para os que nunca puderam apreender a sua beleza espiritual. Mas meu avô, também da linhagem dos simples, descobriu-lhe a riqueza humana logo no primeiro contato entre os dois. Tendo acontecido ser apresentado pela mamãe, na mesma ocasião, a um figurão da cidade, confessou à filha que gostara bem mais do humilde Vitorino.
Era sargento. Hoje não sei a sua patente. Por isso continuarei a chamá-lo de Sargento Adauto. Revi-o um outro dia. Velho, quase surdo, mas ainda conservando o vozeirão aprimorado nas instruções aos recrutas. Um soldado em quem a vivência na caserna não embotou os princípios de urbanidade, nem o enquadrou na disciplina que rege o relacionamento entre superiores e subalternos. Dele não posso esquecer (viva mil anos) arrancando-me a tempo de ser pisado pelas rodas de um carro. Correra do papo com os amigos - uma reunião na calçada do hotel - para me salvar da morte buzinante.
O rádio do vizinho solta um grito de gol. Não ouço euforia no homem. Talvez o gol seja do time adversário; talvez o vizinho não seja dado a rompantes de alegria. Até a mim chega a risada televisiva do Sílvio. Não recobrei o ânimo. O vinho e o peixe ainda pesam. Não só eles: a rede também. Como se todos os meus heróis tivessem se deitado comigo.
* * * * * * * * * * *

Conto do meu livro "Um Dia... os Mesmos Dias" (1983) , publicado aqui com pequenas alterações na linguagem original.


quarta-feira, maio 28, 2008

OUTRO EPISÓDIO NA DITADURA MILITAR

Henry Fonda e Victor Mature em uma cena de "Paixão dos
Fortes" ("My Darling Clementine"/1946)
(Texto já publicado aqui em 2006).
* * * * * * * * * * * * * * * * * *
Não faz muito tempo eu relatei um episódio ocorrido durante a ditadura militar, em que fui confundido com alguém caçado pelos agentes da repressão. Os que me leram naquela ocasião devem estar lembrados. Por muito pouco não fui preso e, provavelmente, teria desaparecido. Hoje vou contar outro episódio. Neste não existiu o mínimo risco de eu ser preso, apesar de ter me encontrado, por acaso, com um amigo de Natal que tivera de fugir para não ser apanhado. Eis o episódio.
Em um dia de 1969 viajei a Recife, impelido por um motivo especial: conhecer, finalmente, "Paixão dos Fortes", um dos mais belos filmes de John Ford. Entrei no cinema com o filme em andamento e tive que aguardar a sessão seguinte para vê-lo desde o início. Naquela época os filmes eram exibidos em sessões contínuas, terminava uma sessão e, com um pequeno intervalo, a seguinte era iniciada. O espectador não precisava sair da sala e comprar outro ingresso, para ver o filme de novo. Num mesmo dia, você o assistia tantas vezes quisesse, pagando apenas uma vez.
Pois bem. Nem bem as luzes foram acesas, aparece Juliano Siqueira na minha frente. Fiquei surpreso, tanto quanto emocionado, pela presença de Juliano, pois jamais me passaria pela cabeça encontrá-lo ali, ou em qualquer outro local de Recife. Juliano era um dos milhares de brasileiros que, naqueles tempos de trevas, eram caçados pelo regime militar. Durante o breve intervalo, ele conversou sem parar, sempre interessado em saber notícias dos ex-companheiros do Cineclube Tirol. E me confessou que fora ao cinema, não só pelo filme, que já conhecia, mas na esperança de me encontrar, ou a Gilberto Stabile, dois fordianos assumidos e de carteirinha assinada.
Mas a alegria, a emoção daquele reencontro perdiam-se um pouco pela apreensão que nem um dos dois conseguia disfarçar, devido à circunstância de um dos interlocutores ser procurado pelos agentes policiais. Quem viveu aquele período da nossa História há de se lembrar de que o medo e a tensão eram presenças constantes quando as pessoas, mesmo sem estarem com a cabeça a prêmio, se reuniam para uma simples conversa. Felizmente não aconteceu o pior, até o intervalo terminar. E, ao nos despedirmos, disse a Juliano para tomar cuidado.
O filme recomeçou, assisti-o até o final. Saí do cinema duplamente emocionado: pela grandiosidade de "Paixão dos Fortes" e pelo inesperado encontro com Juliano. Voltei a Natal um ou dois dias depois. Mas Juliano não deve ter seguido o meu conselho, ou os brucutus da repressão foram mais eficientes. Pouco tempo depois soube que ele fora apanhado. Passou cinco anos na prisão. Menos mal que conseguiu sobreviver. E hoje está morando em Natal, depois de passar uma longa temporada no Rio.
Foi isso.

terça-feira, maio 20, 2008

OS GUARDA-CHUVAS DO AMOR (Les Parapluies de Cherbourg/1964)



Se "Os Guarda-Chuvas do Amor" é uma homenagem, como parece ser, ao musical americano, essa homenagem do diretor francês Jacques Demy é prestada sem se subordinar aos padrões do gênero. Ao invés de intercalar músicas às falas, o seu filme é cantado do começo ao fim, os diálogos, seja uma pequena fala, como a de um carteiro trazendo uma mensagem, seja alguém pedindo ao empregado de um posto de gasolina para lhe abastecer o carro, são apresentados em forma de canto. Aí está a diferença de "Os Guarda-Chuvas do Amor" dos seus congêneres hollywoodianos, aí a sua originalidade, que transforma numa quase obra-prima o que poderia ser apenas mais um musical e de qualidade inferior àqueles.
É um exemplo de como pela forma é realizada uma grande obra, debruçando-se sobre um conteúdo já muito explorado, sobretudo por outros gêneros. A história é a do clássico triângulo amoroso. Geneviève (Catherine Deneuve), filha de uma viúva, proprietária de um loja de guarda-chuvas e Guy (Nino Castelnuovo), um mecânico de uma oficina de carros, se amam. Guy parte para a guerra na Argélia, entra em cena Roland (Marc Michel), um rapaz rico que se apaixona por Geneviève. A ausência do namorado, agravada com a falta de notícias dele, motiva o assédio da mãe (Anne Vernon) a Geneviève para que ela se case com Roland, que já chegara a pedir-lhe a mão da filha. Afinal, Geneviève sucumbe às investidas e consente em casar. Quando Guy retorna da guerra, com uma perna avariada, descobre que a namorada a trocara por outro e até se mudara de Cherbourg, acompanhada da mãe, que vendera a loja, e termina por casar com uma conhecida sua.
Outra diferença dos seus similares americanos é a ausência da dança, constante naqueles filmes, formando uma parceria com a música. Apenas uma vez, se vê numa boate Guy e Geneviève dançando, em meio a outros casais. Por outro lado, há a presença diversificada (e bem utilizada) da cor, com uma certa predominância do lilás. Muito boa a fotografia, a música de Legrand, que, além das outras músicas, compôs uma bela canção que sublinha o romance do casal. Tudo bem conduzido pela mão leve e sensível de Demy. Um dos melhores momentos do filme ocorre na partida de Guy: um traveling acompanha o trem deixando a estação, mostrando Geneviève ao fundo, à semelhança de uma silhueta.
No meio das qualidades de "Os Guarda-Chuvas do Amor" intromete-se, porém, um defeito. O nome da Esso é visto inúmeras vezes no desenrolar da história. Sou levado a crer que a intenção é a de denunciar o poder econômico como causador de muitos males, inclusive o de destruir um amor (a mãe de Geneviève passava por graves dificuldades financeiras, que iriam resultar na perda do seu comércio), esse poder representado por Roland. Até aí tudo bem. O problema está na aparição em excesso dessa marca de combustível. Além de inscrito numa placa de posto de gasolina, o nome da Esso surge uma vez em uma grande quantidade de latinhas dispostas num móvel da casa de Guy quando este já está casado. Demy deveria ter seguido o exemplo de Ozu em "Pai e Filha". Ao mostrar a invasão americana ao Japão ainda na década de 1940, ele faz apenas aparecer, rapidamente, uma placa com a frase publicitária Drink Coca Cola e, escritas em inglês, as palavras chá e café na fachada de um restaurante. Só isso. E não bastaria mais nada.

quarta-feira, maio 14, 2008

MEUS PRIMEIROS ANOS EM NATAL

Cheguei a Natal em 30 de julho de 1965. Acho que não exagero em dizer que a capital do Rio Grande do Norte era uma cidade grande do interior, com uma população estimada em 207.000 habitantes, segundo me informa um amigo que trabalha no IBGE. As famílias ainda se reuniam nas calçadas de suas residências à noite, não havia um só canal de televisão (a Tupi chegava através de uma retransmissora de Recife, numa imagem de má qualidade), o quarteirão da João Pessoa, em uma parte da área no centro chamada de O Grande Ponto, era povoado de pessoas formadas em grupinhos falando de tudo, especialmente da vida alheia. Localizada na Av. Rio Branco, a principal da cidade, a "Sempre Alerta", a única banca de revista que vendia jornais do Rio. Um grupinho de rapazes, geralmente os mesmos, ficavam à noite em frente a ela discutindo futebol. Me lembro de um tipo baixinho, feinho, muito engraçado, que torcia pelo Vasco. Pouquíssimos os edifícios. Cinemas havia 5: Nordeste, Rex, Rio Grande, no centro, o Poti, não longe do centro, podendo-se chegar a ele caminhando, e o São Luís, no Alecrim. (O Poti se diferençava dos demais por exibir apenas reprises. Foi lá que vi "Os Amores de Pandora", com Ava Gardner no esplendor de sua beleza, e James Mason, o primeiro na minha lista de atores preferidos.) Em 1966, ou 67, foi inaugurado o Panorama, no bairro das Rocas. Mais longe do centro, o acesso a ele tinha que se dar através de um meio de transporte (no meu caso e dos meus amigos, por ônibus). No Rex, nas manhãs de sábado, era apresentado o filme promovido pelo Cineclube Tirol, sessão chamada de Cinema de Arte. O primeiro filme que vi no Cinema de Arte foi "O Médico e o Monstro", a segunda versão adaptada para o cinema do livro de Stevenson, dirigida por Victor Fleming, inferior à primeira, de Rouben Mamoulian, com Fredric March.
Não demorou muito e a sessão foi transferida para o Nordeste, ainda nos sábados. Se não estou enganado, só no ano seguinte ela passou de vez para os domingos. As reuniões dos sócios do Cineclube Tirol estavam condicionadas ao dia daquelas sessões, ou seja, aos domingos pela manhã, quando aqui cheguei, e depois aos sábados à noite. Já informei como eram essas reuniões em um texto aqui publicado sobre o Cineclube Tirol.
Logo nas primeiras sessões no Nordeste, pela metade, mais ou menos, de "Abismo de um Sonho", de Fellini, a energia pifou. Como o cinema não dispunha de um gerador de energia, os espectadores foram se acotovelar na sala de espera, aguardando o restabelecimento dela. Quando fomos informados de que isso não ocorreria tão cedo, a sessão foi suspensa. E assim quem ali estava naquele dia, só iria ver integralmente o primeiro filme solo de Fellini há uns 5, 6 anos, quando ele foi lançado em DVD.
Na pequenina praça Kennedy, vizinha ao Nordeste, havia uns blocos de pedra superpostos, que eram chamadas de "cocadas". Nunca descobri o autor, ou autores dessa denominação, que se popularizou ao ponto de aquele logradouro ser conhecido por praça das cocadas. Lá me juntava a amigos e conhecidos (alguns eram companheiros de cineclubismo) nas noites em que não ia ao cinema. Embora os temas principais fossem cinema e literatura, falávamos de outros assuntos, inclusive de política, mas com cautela, pois o país vivia sob uma ditadura militar.
Quando o Cinema de Arte passou para os domingos, era certo o encontro com amigos e conhecidos na Livraria Universitária (a melhor e, praticamente, a única de Natal na época), conversando e vendo as mulheres passar. Lá para as onze horas, muitos de nós procurávamos os bares, onde permanecíamos por um bom tempo. Nos domingos à tarde havia a pelada na praia do Forte, basicamente jogada por sócios do Cineclube, aos quais se acrescentavam uns poucos rapazes. Depois da pelada, o banho de mar. Com o passar do tempo, alguns foram se desinteressando desse saudável divertimento, preferindo a cervejinha depois do Cinema de Arte, para falar do filme exibido, até chegar o dia em que o joguinho e o banho de mar foram abolidos.
Não só inevitável, como indispensável, o progresso trouxe muitos benefícios para Natal, inclusive na área cultural. Em contrapartida, há o preço a se pagar ao progresso. A cidade está atulhada de edifícios, de shoppings, tem problemas graves de segurança e de trânsito, pela quantidade excessiva de veículos, desproporcional ao número de habitantes (em torno de 800.000), dirigidos por um monte de estressados e mal-educados.
E não restou um só cinema de rua.

quarta-feira, maio 07, 2008

"POEMA À MÃE"


Foto in Google, autoria desconhecida.
Em uma homenagem ao Dia das Mães, a ser celebrado no próximo domingo, aqui vai um poema de Eugénio de Andrade, poeta português (1923-2005) , de título acima mencionado, o qual me foi enviado pelo amigo e poeta Horácio Paiva.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.
Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelo.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.

terça-feira, abril 29, 2008

A PERVERSIDADE DO TEMPO

Foto retirada do Google

Há poucos dias Brigitte Bardot teve que ir à policia, para prestar depoimento sobre declarações racistas contra os muçulmanos. Foi a quinta vez em que a ex-atriz compareceu a uma delegacia policial pelo mesmo motivo. Nesse mesmo dia, sintonizando o canal francês TV5, pude ver a reportagem sobre o caso. E o que mais me impressionou foi ver como ela envelheceu. É óbvio que, a poucos meses de completar 74 anos, Brigitte teria que mostrar as marcas da idade, mesmo com todos os recursos de rejuvenescimento à disposição das mulheres da sua situação econômica, mas me parece que, no seu caso , o tempo foi mais perverso do que com outras colegas da sua geração, como, por exemplo, Sophia Loren, que, aliás, é do mesmo ano de Brigitte.

Mas o tempo não alisa. E pouco depois de ver a reportagem, me lembrei de uma crônica do potiguar Berilo Wanderley (1934-1979), também crítico de cinema, em que ele faz um indignado e contundente protesto contra o que o tempo fez com atrizes de gerações anteriores à de Bardot. Tudo indica que a crônica é dos anos 1970. Quem sabe se não foi escrita pouco tempo antes de Berilo falecer? Está no livro Cine Lembrança (Sebo Vermelho, 2004), organizado por sua viúva. Eis o texto:

GRITO

Oh tempo, por que marcaste tanto o rosto de AVA GARDNER? Por que maltrataste tanto o corpo do RITA HAYWORTH? Por que machucaste tanto as pernas de MARLENE DIETRICH? O rosto de devastadora beleza de AVA... O corpo de avassalador domínio de RITA... As pernas de MARLENE que tanto me maltrataram em o "Anjo Azul"...

Tempo que quebrou a voz de GRETA GARBO, falando pela primeira vez no cinema, para dizer "give me a whisky", que foi como um copo de cristal batendo contra outro copo de cristal. Tempo que atirou SILVANA MANGANO dentro do arrozal, chapelão na cabeça, meias pretas resvalando sobre as pernas de cetim, tão grossas, e depois matou tudo isso. Tempo que não soube preservar JUDY GARLAND cantando para a eternidade diante de nós "Meet me tonight in Dreamland"... Tempo que assassinou os olhos verdes de MICHELLE MORGAN se tornando líquidos acima de todas as misérias humanas naquela sequência da igreja de "As Grandes Manobras", de René Clair... Tempo que quebrou as pernas de CYD CHARISSE...

Tempo, miserável tempo, que um dia nos atirou diante dos olhos, da boca, dos ouvidos, do estômago, dos órgãos genitais, tudo isso que eletrizou em nossa carne e espírito todas essas mulheres... se nos deu tudo isso tão generosamente... por que nos deu, se havia de nos tirar essas vozes, esses rostos, essas pernas, esses corpos?!

Desgraçado tempo!

quarta-feira, abril 23, 2008

CURIOSIDADES

O último dos auto-retratos de Vincent Van Gogh, in Google

* * * * * * * * * * * *

1) É fato suficientemente sabido que Vincent Van Gogh vendeu um único quadro em sua curta vida de 37 anos. Mas quem adquiriu esse quadro, "A Vinha Encarnada", ou "A Vinha Vermelha", ou, ainda, "O Vinhedo Vermelho", conforme a tradução do título original nos sítios pesquisados? E é relevante se saber a identidade do comprador? Como curiosidade, creio que sim. E, afinal, estamos tratando de alguém tido como um dos maiores expoentes da forma de arte que adotou, que não conseguia vender o que criava, apesar do empenho do irmão Theo. Hoje, quando um quadro de Van Gogh é arrematado em um leilão por uma fortuna não existe mais o interesse em saber a identidade do comprador, já que é dos pintores que mais atraem a cobiça dos colecionadores.

Mas quem foi que "fez essa caridade" a um dos mais torturados artistas que já existiram? Há coisa de dois meses ocorreu, em Londres, uma exposição de quadros só de pintoras, uma das quais era Anna Boch, da Bélgica, um país vizinho da Holanda de Van Gogh. A matéria sobre a exposição, que li no sítio da BBC Brasil, informava, de passagem, que foi ela que comprou o quadro.
2) O livro "Abdias", de Cyro dos Anjos (edição do Círculo do Livro, s/data), autor de "O Amanuense Belmiro", é narrado em forma de diário pelo personagem-título. Na página 14, Abdias fala da possibilidade de passar a guardar o diário no seu local de trabalho, para proteger o manuscrito de uma possível descoberta da esposa. E revela um estratagema criado por Tolstoi quando escrevia o seu diário. Transcrevo suas palavras: "Contam que o velho Tolstoi resolveu engenhosamente o problema do diário, fazendo dois simultâneos. Um, escrevia-o às claras e esquecia-o de propósito por todos os compartimentos da casa, para que a família nele saciasse a curiosidade; o outro, o verdadeiro, que continha confidências mais íntimas, era escrito em segredo e escondido nas botas". Muito sabidinho o autor de "Anna Karenina", não?
3) Alagoano de nascimento, mas radicado no Rio do século XIX, o poeta Guimarães Passos passou boa parte de sua vida lutando contra a tuberculose que o acometeu. Apesar da doença, ele continuava produzindo e chegou a escrever um livro, cujo título era Tratado de Versificação. Contemporâneo de Passos, o poeta Emílio de Menezes, que adotava a linha do poema satírico, ao saber, boêmio que era, em um bar, do próximo lançamento do seu colega, não se conteve e soltou este trocadilho: "Coitado do Guimarães! Há muito tempo ele tem tratado de ver se fica são.
4) "Domingo pé-de-cachimbo". Eis uma expressão que vem de longe e é grafada erroneamente. Até por escritores, como já vi em um livro de um autor aqui do Estado, que a utilizou como uma das epígrafes da obra. O correto é "Domingo pede cachimbo", o verbo pedir na acepção de querer, necessitar, e cachimbo na de ócio, descanso; ou seja, domingo é dia de a pessoa não trabalhar, mas se estirar em uma rede, fumando cachimbo. Ou cigarro, se preferir.

quarta-feira, abril 16, 2008

QUEBREI A TIGELA




Faz poucos dias estreei uma camisa. Ao me ver com a camisa, minha mulher disse: "hi, quebrou a tigela!" Quebrar a tigela. Há séculos não ouvia essa expressão, muito usada na minha infância e adolescência. Embora originária do Nordeste, é possível que os habitantes do Sul e Sudeste a conheçam por ela estar no Aurélio. Quem consultou o dicionário, viu que quebrar a tigela significa que uma pessoa usa uma roupa, ou um objeto, pela primeira vez. Como sinônimo, o Aurélio registra também "quebrar a panela", que nunca ouvi. Sei que não é possível, mas que bom seria se o dicionário pudesse revelar a origem dessas expressões. Penso em Marco, do Antigas Ternuras. Como eu, ele gosta muito dessas saborosas expressões e vai à cata da origem delas. Quem sabe se ele não sabe de onde veio quebrar a tigela e faça uma daquelas postagens cheias de humor, irreverente, às vezes, que muito aprecio?
Estava com cinco anos quando nasceu Bosco, o meu irmão caçula. Se meus pais não inventassem de ter mais um filho, encerrando uma série de 11 (o primogênito, uma mulher, morreu com pouco tempo de nascido), eu permaneceria como o caçula. E, assim, não teria ficado no canto. Usava-se a expressão "ficar no canto" naquela época para a criança que perdera a condição de filho mais novo, com o nascimento de um seu irmão. A expressão não consta do Aurélio. Como só disponho desse dicionário (nessa especialidade), não sei se outros do mesmo gênero a registram. Deve ser também exclusiva da região nordestina.E tal como "quebrar a tigela" , fico doido pra saber a sua origem, a exemplo de tantas outras.
Essas expressões, ou palavras, nascidas no Nordeste desapareceram, ou estão em processo de extinção. E a culpa é da televisão, via novelas. Um adolescente, de ambos os sexos, mesmo morando numa cidade das mais atrasadas deste país, prefere falar como os jovens das novelas da Globo. Tantas e tantas expressões que fizeram parte da minha infância, adolescência e juventude se perderam no esquecimento das pessoas.
Mas isso não ocorreu apenas nas cidades do interior. Falei aqui uma vez da expressão "o cão chupando manga" e de outras, que eram comumente usadas quando cheguei a Natal nos anos sessenta. Onde estão elas? Mesmo pessoas da minha idade, até mais velhas, talvez com umas poucas exceções, as desprezaram, por certo para não ouvirem que elas "são de 12" (cadê esta também?), isto é, de um tempo muito antigo. Não sou contra o emprego de palavras importadas do Sudeste (principalmente), assim como os nativos daquela região utilizam algumas do Nordeste. O carioca Machado usou mais de uma vez a expressão "vender azeite às canadas", ao falar de um personagem que está furioso, muito irritado. É um dito aqui do Nordeste, mais especificamente de Pernambuco, conforme descobri há poucos anos.
Acho importante esse intercâmbio. Não vejo nada demais nisso, são palavras faladas em um mesmo país (até a alguns estrangeirismos sou receptivo), mas que não joguemos no lixo, como um objeto imprestável, as expressões e palavras da nossa região.
A minha filha mais nova está esperando o segundo filho. Quando este nascer, o seu primogênito, ao contrário do avô, não vai ouvir das pessoas que ficou no canto. Ainda que morando no interior do Estado.

terça-feira, abril 08, 2008

PAI E FILHA (Banshun/1949)




Em seu Dicionário de Cinema, Jean Tulard transcreve estas palavras do diretor japonês Yasujiro Ozu: "Os filmes de enredo elaborados demais me aborrecem. Naturalmente, um filme deve ter uma estrutura própria, de outro modo não seria um filme, mas acho que para que ele seja bom é preciso renunciar ao excesso do drama e ao excesso da ação". Essa visão que Ozu tinha do cinema está bem caracterizada em "Pai e Filha". Se na recusa de Noriko (Setsuko Hara) em se casar (já com 27 anos), para poder dedicar-se ao pai viúvo Shukichi (Chishu Ryu), atitude que não é aceita pela tia Masa (Haruko Sugimura) e pela amiga Aya (Yumeji Tsukioka), existe uma situação dramática, esta, no entanto, é mostrada com sobriedade, sem permitir uma discussão acalorada, mesmo quando se percebe o aborrecimento , o enfado de Noriko com as investidas casamenteiras das duas, principalmente da primeira. Mas, para mim, o exemplo maior dessa contenção da dramaticidade é dado na cena em que Noriko está se preparando para o casamento (sim, ela acaba por capitular, porém, por obra de um estratagema do pai). Já vestida de noiva, prestes a sair para a cerimônia matrimonial, Noriko se ajoelha diante do pai e lhe agradece pelo cuidado e o amor que teve por ela. Um momento de forte emoção, transmitido apenas pela expressividade dos rostos de Noriko e Shukichi. Ressalte-se também que o casamento não é mostrado (aliás, o noivo só é visto uma única vez, de relance, quando ainda não namorava Noriko), nem se vêem a noiva, o pai e a tia saindo para tomarem o carro estacionado à frente da casa, apenas curiosos em volta do carro. Como o faz ao longo do filme, o diretor opta pelo destaque aos pequenos detalhes, aos silêncios, à contemplação, relegando, portanto, a ação a um plano inferior.
O cinema de Ozu, como afirmam os conhecedores de sua obra, está visceralmente ligado à tradição, às raízes culturais do seu país, havendo quem lhe colasse o rótulo de o mais japonês dos diretores. (O seu entranhado japonesismo é até responsabilizado pelo reconhecimento tardio de seu talento e de sua importância no Ocidente, ao contrário de seus pares Kurosawa e Mizoguchi, com os quais ele forma a Santíssima Trindade do cinema nipônico.) Em "Pai e Filha" o seu apego à cultura, à tradição, aos costumes do Japão se faz presente em vários momentos, como, por exemplo, no espetáculo musical a que Noriko e Shukichi vão assistir; ou, ainda, na carteira de cédulas encontrada na rua por Masa e que ela guarda, pois isso lhe irá trazer sorte - no caso, a concretização do desejo de ver a sobrinha casada, pelo qual luta com obstinação. E é bem possível que a original maneira de Ozu filmar, com a câmera bem perto do chão, o operador se pondo de cócoras, resulte do seu posicionamento nacionalista. Pois, segundo o crítico André Setaro, ao posicionar assim a câmera, ele pretendia "enquadrar os personagens conforme a visão de uma pessoa sentada no chão, como é hábito e costume das casas nipônicas tradicionais, da cultura japonesa, antes dela se transfigurar e se descaracterizar com a ocidentalização de Tóquio".
No entanto, em uma oposição (ou, uma invasão) ao tradicional, percebe-se a presença da modernidade. É esclarecedor, por exemplo, o diálogo entre Shukichi e a cunhada Masa, em que esta reprova a gula de uma noiva após a cerimônia do casamento, um comportamento inconcebível no tempo em que ela casou. Essa intromissão do moderno é mais agravada pela influência da cultura americana no país, a qual é mostrada, de modo sutil, como convém a Ozu, em duas ocasiões: uma placa com um anúncio da Coca Cola, em inglês, na estrada por onde Noriko e o assistente do pai passeiam, e um restaurante em cuja fachada estão escritas, também em inglês, as palavras café e chá.
Com o lançamento deste belíssimo filme, A Lume, nova produtora de DVD, dá um grande presente ao cinéfilo. Torçamos para que ela lance outros filmes desse mestre do cinema, como "Viagem a Tóquio", que, dizem os que o conhecem, é ainda melhor.

quarta-feira, abril 02, 2008

UM EPISÓDIO NA DITADURA MILITAR

Este artigo foi aqui publicado em 13.06.06. Sai pela segunda vez, na ocasião em que, há 44 anos, estava se iniciando a implantação da ditadura militar no Brasil, um terrível pesadelo que durou mais de 20 anos.
* * * * * * * * * *
Há poucos dias Moacy Cirne comentou, no seu Balaio Vermelho, que chegou a ser caçado pelas forças da repressão da ditadura militar, um dos períodos que mais mancharam a história do Brasil no decurso de mais de vinte anos. Felizmente, o nosso amigo não chegou a ser preso e torturado, pelo menos não tenho informação disso. Já outros amigos e conhecidos meus não tiveram a mesma sorte, e um ou outro pagou com o sacrifício da própria vida o fato de contestar o regime militar. Comigo não houve problemas, até porque não dei motivos para tal, o que não quer dizer que fosse favorável à presença daqueles milicos no poder. Evidente que não concordava com toda aquela situação pela qual o país estava passando, discutia-a com os amigos, mas tive o cuidado de não me expor demais, principalmente quando escrevia nos jornais. Sobre cinema. Apesar dos meus cuidados, houve uma vez em que, por um triz, não fui preso. É um episódio que jamais me saiu da cabeça.
Foi assim. Num certo dia, em 1972 (no governo de Médici, o mais sanguinário de todos), precisei ir a Fortaleza, para tratar de um negócio. O ônibus saía à meia-noite. A viagem seguia tranqüila, mas aí pela metade do percurso, de repente o ônibus parou. Era no meio da estrada escura, o que já causou estranheza nos passageiros. O ônibus, pois, pára, as luzes se acendem e, então, surgem dois homens, com toda a pinta de agentes policiais. Ficam por alguns segundos em pé, à frente da porta que dá acesso ao posto do motorista, e, com os olhos, examinaram os viajantes. Logo em seguida um deles se afasta e vem diretamente para o lugar onde eu estava. Devia ser na terceira ou quarta fileira. Me pede a carteira de identidade e examina-a atentamente. Ao ver a fotografia, certamente, olha meu rosto com atenção. Por fim me devolve o documento, com um obrigado. Sem um pedido de desculpas. A mim e aos demais viajantes. Quando o ônibus se pôs de novo em movimento, as pessoas não tiravam os olhos de mim. Se não me falha a memória, alguém chegou a me perguntar o que eu fizera para ser submetido àquele incômodo exame. Mas se eu próprio não saberia dizer o motivo! Sem nenhuma dúvida, aqueles homens estavam à caça de alguém e me acharam parecido com ele.
No início eu disse que, por um triz, escapei de ser preso. O caso é que eu quase viajava sem a minha carteira de identidade. Durante o dia, no meu trabalho, tive que entregá-la à Seção de Pessoal, para uma atualização de dados na minha ficha funcional. Cheguei a alertar o colega que ia precisar do documento, pois iria viajar naquele mesmo dia. Ele prometeu devolvê-lo dentro de pouco tempo, mas o certo é que o expediente se encerrou e não o recebi de volta. Como a minha viagem era inadiável, mesmo preocupado, tinha que ir a Fortaleza. Mas aí por volta de umas oito horas da noite, eis que chega o colega à minha residência com a carteira de identidade.
Pelo que relatei, se estivesse sem ele, teria sido arrastado do ônibus, talvez tivesse ficado preso e até sido torturado. Talvez nem estivesse contando aqui esse episódio de uma época que, só os que a viveram, sabem dos seus inúmeros e enormes malefícios.

quarta-feira, março 26, 2008

A CARRUAGEM DE OURO (Le Carrosse d'Or/1952)



Com a eclosão da Segunda Guerra, Jean Renoir mudou-se para os Estados Unidos. Ao contrário de seus compatriotas René Clair e Julien Duvivier, sua experiência americana não foi bem-sucedida. Talvez por ser o mais francês dos diretores, na afirmação de Georges Sadoul, ele não tenha conseguido se adaptar à cultura daquele país, nem ao processo de produção de filmes em Hollywood. Ele só voltaria ao cinema europeu, não na França, mas na Itália, com "A Carruagem de Ouro", e entre este e seu último filme americano, realizou, na Índia, "The River", que Andrè Bazin alçou à altura de obra-prima.
Pelo que se depreende do depoimento de Renoir nos Extras do DVD, a peça "Le Carrose de Saint Sacrement", de Prosper Mérimée, serviu, digamos, apenas como um ponto de partida para a concepção de "A Carruagem de Ouro". Na verdade, um amante do teatro, Renoir foi movido pelo propósito de prestar uma homenagem à "Commedia dell' Arte", um popularíssimo gênero teatral originário da Itália. Ele pretendeu fazer um filme que absorvesse o espírito do gênero, isto é, que a trama tivesse que se despojar de qualquer resquício de realismo, ou naturalismo. E além disso, eliminasse a fronteira entre o que se passa no palco e na realidade - realidade aqui no sentido da trama do filme. Quer dizer: que as apresentações realizadas pela trupe italiana que vai parar numa colônia espanhola (não identificada) na América do Sul se confundissem com a história (realidade) do filme. É o que ocorre com Colombina (Anna Magnani) no palco e, fora deste, Camila, cortejada por três homens: o Vice-Rei (Duncan Lamont), que lhe presenteia a carruagem de ouro que mandara buscar na Itália e transportada no mesmo navio em que Camila viera; o oficial espanhol Felipe (Paul Campbell), que a acompanhara na excursão, e o toureiro Ramon (Riccardo Rioli). No envolvimento com este, aliás, há um momento em que Camila passa de atriz para espectadora. Uma cena de belo efeito cinematográfico, iniciada com um "close" do rosto dela, seguida por um "traveling" que vai até à arena.
Por falar em Anna Magnani, não se pode deixar de relevar o desafio de Renoir ao escolhê-la para viver um personagem tão diverso, até mesmo antagônico, dos que ela interpretara até então. E devido à natureza do seu personagem, La Magnani contém certos excessos que marcaram os seus desempenhos, a despeito do seu inquestionável talento interpretativo. Ela, inclusive, teve que aprender inglês (o filme tem uma versão nesse idioma, que é a deste disco, com vistas a atingir o mercado anglo-americano), porque Renoir pretendia que o inglês falado pela atriz, impurificado pelo forte acento italiano, tivesse um efeito expressivo, confrontado com o dos intérpretes nativos da Inglaterra, que compõem a maioria do elenco.
Com uma carreira iniciada ainda no cinema mudo, apenas pela segunda vez Renoir fazia uso da cor, sendo a primeira no já mencionado "The River". E ela constitui-se em um elemento fundamental no resultado do filme. Contando com a colaboração valiosa do fotógrafo e seu sobrinho Claude (com quem trabalhou em tantos filmes), o diretor empenhou-se em que a cor casasse perfeitamente com o cenário, os figurinos e a iluminação. Há outro importante colaborador, e, como diz Renoir em tom de "blague", é do tipo que não dá problema, que concorda com o realizador em tudo, pois já não está neste mundo. Trata-se de Vivaldi, que com seu peculiar estilo musical contribui para que o filme tenha a leveza de outros tantos do diretor.
Pelas qualidades artísticas e pela atração do enredo, "A Carruagem de Ouro" talvez seja o filme em que Renoir tenha conseguido promover a união dessas duas categorias geralmente inconciliáveis, ou seja, a crítica e o público.

terça-feira, março 18, 2008

A SEMANA SANTA DA MINHA INFÂNCIA

Quadro Cristo Morto, de Andrea Mantegna (1431-1506).

Todos os anos, quando chega a Semana Santa, eu me lembro da minha infância naquele período. As lembranças se acumulam, principalmente as da Sexta-Feira Santa: as imagens de santos cobertas por um pano preto ou roxo (não me recordo com precisão), o sacristão percorrendo o pátio da Basílica, em intervalos de quinze a vinte minutos, se muito, carregando a matraca e fazendo-a soar um ruído alto e enervante; a imagem de Cristo deitado, exposta no centro da igreja para receber o ósculo dos fiéis, ordenados em fila indiana; a procissão à tarde, com a Verônica, representada por uma moça, exibindo em um pano a face ensanguentada de Jesus.

Me lembro, ah, se me lembro, de que em uma certa hora (a memória não me deixa dizê-la), anunciada pelo relógio da Basílica, minha mãe, a voz alterada pela emoção, afirmava que naquele momento começava a agonia de Jesus.

Muitas pessoas, especialmente as mais humildes, não tomavam banho naquele dia, um hábito talvez ainda preservado nas cidades mais atrasadas deste imenso país. E as rádios só tocavam músicas fúnebres.

Já o Sábado de Aleluia era outro dia, e não apenas no sentido cronológico. À tarde uma multidão se reunia na praça do mercado público para ouvir de alguém a leitura do testamento de Judas. A cada objeto legado por Judas a um habitante da cidade, as risadas explodiam. (Um dos meus irmãos, que não perdia por nada esse espetáculo, ao voltar para casa, relembrava alguns desses legados e os respectivos herdeiros.)

No outro dia era o Domingo da Páscoa, da ressurreição de Cristo. Terminava a Semana Santa e na segunda-feira os cristãos voltavam a "pecar".