sexta-feira, maio 27, 2005

A Paixão de Joana D' Arc




Os olhos esbugalhados de Joana. Uma lágrima escorrendo por um das faces. Uma mosca que pousa no seu rosto. O olhar, ora assustado, ou amedrontado, ora iluminado pela fé que a move, e, às vezes, exprimindo sofrimento. A verruga de um dos juízes. As rugas de outro. A astúcia, o sarcasmo, a falsidade, a coação dos seus algozes expressos num olhar. A Paixão de Joana D' Arc, que o dinamarquês Carl Dreyer rodou na França em 1928, é um filme quase todo construído de closes, principalmente de rostos. Essa opção narrativa necessitava do suporte de uma fotografia que atendesse o desejo do diretor. E Dreyer a conseguiu com o polonês Rudolph Maté, que realizou um trabalho não apenas primoroso, do ponto de vista técnico, mas revelador de uma "audácia fotográfica", conforme escreveu o crítico André Bazin. Maté ainda trabalharia com Dreyer no filme seguinte deste (Vampyr) e, muitos anos depois, já em Hollywood, trocaria a carreira de fotógrafo excepcional pela de diretor medíocre.
O roteiro é inspirado nas minutas do processo do julgamento de Joana D' Arc, que a condenou à fogueira. A história transcorre num único dia e é quase toda ambientada no interior do tribunal, com exceção duas ou três cenas exteriores. O já citado Bazin definiu A Paixão de Joana D' Arc como uma "tragédia espiritual". De fato. Uma tragédia vivida por uma jovem pobre e humilde, que sequer sabe assinar o nome, mas que defende a sua fé com convicção e obstinação, diante de juízes e teólogos ardilosos e empenhados em levar o processo às últimas consequências. Apenas um dos monges esboça uma inócua tentativa de desafiar a disposição condenatória dos julgadores, quando exclama que sente que naquela jovem indefesa se encontra uma santa e se prostra aos seus pés.
Curioso nesse filme de intensa espiritualidade, transmitida pela forte expressividade dos rostos (não só o de Falconetti, que vive a trágica Joana, mas o dos demais atores), é a linha do realismo traçada por Dreyer; realismo sem adjetivos (o poético, se o coubesse, seria pela orquestração das belíssimas imagens em close ). Ao lado da sucessão de closes de rosto, ou de partes dele, há as cenas de um realismo cru, às vezes impactante (a sangria em Joana, a tosquia de seus cabelos, o instrumento da tortura que lhe é infligida a girar com intensa velocidade, entre outras ). E na busca desse realismo, o diretor não poupou imposições: os cabelos de Falconetti foram realmente cortados, as cabeças dos monges tiveram que ser raspadas e não foi permitido o uso de maquilagem nos atores.
A Paixão de Joana D' Arc não é apenas a obra-prima de um grande cineasta, que fez apenas quatorze filmes no longo período de 1919 a 1964. É também uma das maiores da história do cinema. Um filme para ser exibido num templo sagrado, para que os espectadores o assistam de joelhos, com as mãos postas.

terça-feira, maio 24, 2005

HERBENE




"Gostei de ter ficado com você e queria que a gente se encontrasse uma vez por semana. Pode ser"? "Perfeitamente. Só que você tem de me ligar com antecedência para marcar o dia". "Tudo bem. Agora tem uns detalhes que preciso desde já acertar com você. Na verdade, são duas coisinhas apenas. Acredito que pra você não será um grande sacrifício atender os meus dois pedidos, que representam muito pra mim. E ademais eu saberei lhe recompensar bem".
Armando parou de repente ao ver Sílvia arregalar os olhos, então sorriu e disse: "Não vai lhe tirar nenhum pedaço, menina. Você vai ver". "Diga então o que é". "Bom, é o seguinte. Você vai mudar de nome quando estiver comigo. Esqueça que é Sílvia. (E, no fundo de si mesmo, duvidou de que aquele fosse o verdadeiro nome dela.) Você vai ser Herbene. Herbene, viu? Tudo bem"? "Tudo bem". "Beleza. Agora a outra mudança vai ser no cabelo. Eu vou querer que você faça aquele penteado chamado pastinha. Tá bem"? Dessa vez, Armando não foi obrigado a repetir a pergunta.
"Como você vê, não é nenhum bicho de sete cabeças o que estou lhe pedindo. E vou repetir, você será bem recompensada".
Passaram a se encontrar uma vez por semana. O dia é que nunca era o mesmo, nem ocorria entre sexta e domingo. Sílvia, logo nas primeiras vezes, percebeu um detalhe no nome que Armando adotara para ela: não a chamava de Herbene enquanto não iam deitar-se (tampouco a tratava pelo suposto nome) . Percebeu também a preferência dele pelo sexo anal.
Quando a penetrava, ele não se continha em insultá-la com as palavras mais chulas. Reprovava-a por ter resisitido tanto a praticar aquela forma de coito e a obrigava a reconhecer quanto tempo desperdiçara por causa da sua tola recusa. Mas, às vezes. Armando entremeava os insultos e as agressões com ardorosos louvores à bunda de Herbene, e daí era um passo apenas até à ternura, mostrando-se grato a Herbene por ter, afinal, cedido aos seus apelos.
Era assim também o comportamento de Armando quando ela lhe chuchava o sexo. Os mesmos termos chulos, os mesmos insultos, a mesma reprovação pela resistência de Herbene; e, às vezes, o elogio, você assim me deixa doidão, Herbene.
Um dia, já com uns três meses que se encontravam, Sílvia foi com uma amiga ver um filme num shopping. Depois do cinema foram para a praça da alimentação. Ao chegarem à mesa, Sílvia avistou uma mulher acompanhada de um filho pequeno, sentada próximo a elas, que não lhe chamou a mínima atenção.
As duas começaram a comentar o filme, depois passaram para outros assuntos. Uns trinta minutos mais tarde, em seguida a uma pausa na conversa, Sílvia, que ficara um pouco de costas para a estranha, desviou casualmente a vista em direção a ela, e o que viu causou-lhe o impacto de um soco inesperado no rosto. A reação seguinte foi arregalar os olhos para se convencer de que era real a cena que acabara de ver. Logo depois virou-se para a amiga: "Mulher, tu não faz idéia de quem é que está ali naquela mesa". A amiga apurou a vista na direção da mesa: "Que gato! Quem é"? "É o cara que te falei". "Não diga". "Pois é o tal. Não fica olhando muito pra lá pra não dar na vista. Pois é ele, mulher".
E Sílvia, de repente, viu-se muito interessada na desconhecida. Com cautela, relanceava o olhar para ela e ia-lhe descobrindo traços de beleza de que não se dera conta quando a vira ao chegar ali. Uma beleza, Sílvia admitiu, que não era daquele tipo que despertava desejos nos homens, impondo-se pelo que tinha de ostentatório, de agressivo até. Nada a ver. Era uma beleza que parecia não se querer notar, distinguida pela suavidade dos traços, a delicadeza dos gestos, a fragilidade do corpo. No seu modo simplório de ver as coisas, Sílvia a comparou a um bibelô, no que esse objeto tem de frágil, de quebradiço.
"Eu fico imaginando por que um homem que tem em casa uma coisinha daquela ainda vai atrás de outra mulher". "É ver uma mocinha. Sozinha ninguém diz que é casada". "É verdade. Ainda mais usando aquela pastinha".
Sílvia já deixara de olhar para a mulher. Mas a amiga concentrara toda a atenção naquela mesa. Por uns três minutos, os olhos, como hipnotizados, não se afastavam dali. E mais tempo talvez os demorasse, se Sílvia não voltasse a advertir a amiga.
"Mulher, larga de olhar pra lá. Daqui a pouco a mulher vai pensar que tu tá querendo comer o homem dela". "Sabe, Sílvia, que eu tive agora mesmo um palpite. É que o nome daquela mulher é o mesmo que ele deu pra você. Como é que ele te chama"? "Herbene". "Herbene. Sou capaz de apostar que é o nome dela". "Tu acha mesmo"? "Não acho não, tenho certeza. Veja bem. Ele manda tu usar pastinha, do jeito que a mulher usa. Depois te chama de Herbene. Só pode ser o nome dela. Não tou certa"? "Sei lá". "Puxa, mulher, como tu é burra". "Pois você que é tão sabida, me diga então qual e a dele". "Isso eu não sei. Por que tu não pergunta pra ele"? "Eu não". "Pois se fosse comigo, eu já tinha perguntado". "Eu lá me interesso em saber por que os homens exigem certas coisas. Eles pagando, tudo bem. A única coisa que não deixo é eles cagarem em cima de mim".
A amiga riu com espalhafato. Em seguida, voltou a olhar para a mesa. "Olha, eles tão saindo. O safado demorou pouco".
Sílvia voltou-se. Eles iam deixando a praça da alimentação, de costas para ela. Armando com a mão no ombro da mulher, que segurava a mão do filho. Ela era pequena, mal chegando ao ombro do marido, apesar do salto alto. Ouviu a amiga dizer: "Esses homens"...

sábado, maio 21, 2005

OS DEZ MAIORES FILMES DE LUCHINO VISCONTI




1 - La Terra Trema (1948)

2 - O Leopardo (1963)

3 - Um Rosto na Noite (1957)

4 - Rocco e Seus Irmãos (1960)

5 - Violência e Paixão (1974)

6 - Morte em Veneza (1971)

7 - Os Deuses Malditos (1969)

8 - Sedução da Carne (1954)

9 - Ludwig, A Paixão de Um Rei (1973)

10 - Ossessione (1942)

quarta-feira, maio 18, 2005

A IDADE DO OURO




Segundo filme de Luis Buñuel, A Idade do Ouro (L' Age d' Or, 1930) é o seu primeiro filme sonoro. Dois anos antes, com Um Cão Andaluz, Buñuel fizera um curta experimental, segundo ele produto de dois sonhos que ele e Salvador Dali tiveram, e do qual talvez se pudesse dizer que era um filme-manifesto do Surrealismo, tendo em vista que, antes dos créditos, era divulgado um trecho do manifesto do Movimento. Não que A Idade do Ouro não levasse em consideração o destaque dos princípios básicos do Surrealismo; pelo contrário, eles estão lá tão ou mais radicalizados quanto em Um Cão Andaluz. Situações sem um mínimo de explicação racional se sucedem, tais como: um homem a chutar um violino pela calcaçada, uma vaca deitada numa cama, que dali se retira ordenada por um gesto de expressão no rosto de uma mulher, uma carroça conduzida por dois homens do povo que atravessa o salão onde está se realizando uma festa burguesa, um homem caminhando com uma pedra na cabeça, como se imitasse a estátua pela qual ele passa. (Essa última cena é a única contribuição de Dali no roteiro, conforme informou o próprio diretor.)
Portanto, há em A Idade do Ouro essa obediência (ou, mais do que obediência, uma integração, um parti-pris ) àquele Movimento, ao qual, é preciso dizer, Buñuel sempre se manteve fiel. Claro que, ao longo da sua carreira, o Surrealismo aparecia mais diluído, de forma bem mais atenuada do que nos seus dois primeiros filmes. No entanto, caminhando paralelamente ao elemento surrealista (ou dele se servindo para acentuar a investida crítica) existe o ataque à burguesia e à religião. E se o filme trata ainda do caso de um amor louco, que jamais poderá dar certo, e ao qual Buñuel dá grande importânca (segundo suas próprias palavras), é a investida àquelas duas instituições que dá o tom de A Idade do Ouro, até porque os dois amantes pertencem ao mundo burguês. Às vezes, numa mesma cena o propósito é duplo. Dois exemplos: quando um carro estaciona à frente da casa, onde será realizada a festa, antes de sair um conviva, um objeto sagrado é retirado do carro e posto no chão; e na imagem final, sobre uma cruz se entrançam plumas usadas no vestuário feminino. E aí Buñuel já se mostra o iconoclasta, o cruel, o irrevente que se manteve até o final da carreira. E a sua irreverência, que muitos podem considerar sacrílega, contra a religião chega ao ponto de mostrar o Duque de Blangis, organizador de uma série de orgias que duram 120 dias, tendo por local o castelo de Sellinay (numa referência ao Marquês de Sade) , como um sósia perfeito de Jesus.
Tudo isso custou muito caro a Buñuel e ao filme. Os fundamentalistas católicos e burgueses da época invadiram o cinema, destruíram quadros de uma exposição sobre o Surrealismo, rasgaram poltronas e atiraram bombas sobre a tela. Desse ato de barbárie e vandalismo resultou a proibição da A Idade do Ouro por longuíssimos cinquenta anos. E isso num país como a França. É, seguramente, o maior caso de interdição de um filme em toda a história do cinema.

sábado, maio 14, 2005

CURIOSIDADES CINEMATOGRÁFICAS




1) Já falei aqui de escritores que experimentaram a direção de filmes. Hoje será a vez dos que atuaram à frente das câmeras. Eis aqueles que consegui localizar. Começo com Susan Sontag e Saul Bellow (falecidos, respectivamente, em janeiro e abril deste ano), que aparecem em Zelig (1983), de Woody Allen. Em seguida, Gore Vidal, em Roma (1972), de Fellini. O alemão Erich Maria Remarque, autor do famoso Sem Novidades no Front , adaptado para o cinema por Lewis Milestone, participou de Amar e Morrer, de Douglas Sirk, 1958. Já o mexicano Juan Rulfo (Pedro Páramo) apareceu em Nesta Cidade Não Há Ladrões, (baseado no conto homônimo de Garcia Marquez), do seu compatriota Alberto Isaac, em 1964. (Outra presença ilustre nesse filme é a de Buñuel.) O inglês Graham Greene, autor da história e do roteiro de O Terceiro Homem, o clássico de Carol Reed, fez uma ponta em A Noite Americana, de François Truffaut, E sobre a participação de Greene nesse filme há uma historinha também curiosa. Ele estava na França quando o filme era rodado e, sendo admirador de Truffaut, dirigiu-se ao local da filmagem para conhecer o diretor e lhe pedir para fazer uma ponta. Só que não pôde falar com Truffaut, mas, em todo caso, conseguiu aparecer no filme, através da assistente do diretor, se não estou enganado. E Truffaut só foi saber que o famoso escritor inglês tinha participado de uma cena, como representante de uma seguradora inglesa, quando da edição dela, informada pela sua colaboradora. Os dois estiveram bem próximos um do outro, mas Greene não falou com Truffaut, nem foi por este reconhecido.
E aqui no Brasil? Bem, há o caso do dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, que foi o protagonista (ótima interpretação, aliás) de Um Homem Sem Importânica, de Alberto Salvá, 1973. E Vinícius de Moraes e Fernando Sabino participaram de Garota de Ipanema, Leon Hirszman, 1967. Por sinal que Vinícius foi um dos 5 ou 6 roteiristas do filme, um deles Glauber Rocha. Acredito que deva haver muitos outros exemplos , no Brasil e lá fora, de escritores que atuaram em filmes, mas só consegui localizar os aqui mencionados. Ah, já ia me esquecendo. O poeta Jacques Prévert, roteirista de alguns filmes de Marcel Carné, aparece rapidamente numa rua em A Idade do Ouro, de Buñuel, segundo informação do próprio cineasta.
2) Quem conhece Cantando na Chuva jamais esquecerá a sequência em que Gene Kelly canta e dança sob um toró daqueles. Realmente, não dá para esquecê-la. A beleza dá música, a interpretação desta por Kelly (e ele não era um cantor) e a coreografia fazem daquela sequência um dos momentos mais deslumbrantes do cinema. Foram horas e horas de ensaio e de filmagem para se chegar ao resultado final. Ou, digamos, à perfeição total. Disso tudo, segundo contou o crítico Sérgio Augusto, resultou que o genial Kelly contraiu uma gripe que o deixou de cama. Mas ele mesmo deve ter dito, para si e para os outros, que valeu a pena ter adoecido.
3) Ha tantas lendas envolvendo Orson Welles, como , de resto, todos os monstros sagrados do cinema, que a historinha que vou contar talvez seja mais uma. Já faz algumas décadas que a ouvi. Contam que na rodagem de um filme com Rita Hayworth, Welles (então seu marido) estava presente quando ouviu alguém da equipe de filmagem gritar para o diretor: "Pare a cena, que Miss Hayworth está suando". Welles, incontinenti, se dirigiu à pessoa e lhe disse: "Nunca diga que Miss Hayworth está suando. Os cavalos suam, as pessoas transpiram, mas Miss Hayworth brilha".

terça-feira, maio 10, 2005

ORQUÍDEA E MAGNÓLIA




Recostada à janela, observava o vaivém dos carros barulhentos na rua em frente. A uns poucos metros, os carros de alguns médicos permaneciam estacionados. Cada médico possuía uma vaga, o seu nome inscrito numa plaqueta fincada no chão e colada ao muro. Achou curiosa a semelhança entre as plaquetas e as cruzes de mortos anônimos encontradas à margem das estradas. Tinha ficado muito tempo sentada próximo à cama, e o desconforto da cadeira deixara-a com a coluna dolorida. Era mais para aliviar-se das dores que estava ali, pois nada de agradável tinha a oferecer aquela paisagem monótona e ruidosa.
Depois de algum tempo foi verificar o frasco de soro. Ficou olhando a queda lenta e intermitente da gotinha. A irmã permanecia naquela modorra que afeta os recém-operados. Há pouco a enfermeira mudara o saco de plástico onde era coletada a urina. A outra janela, que fica perto da cabeceira da cama, também estava aberta. Retornou à janela. Um médico entrou apressadamente no carro. Lembrou-se das palavras do cirurgião sobre o estado de saúde da irmã. A frieza com que lhe comunicara a malignidade do tumor extirpado, acentuada pelo uso da terminologia técnica. Ainda bem que regressaria ao Rio no dia seguinte. O lançamento de seu novo livro estava marcado para dali a dois dias. Não teria coragem de revelar a verdade à irmã, embora soubesse que ela receberia a notícia com serenidade e resignação.
Desde criança Magnólia apresentara uma saúde precária. Sofria de problemas respiratórios, que a prendiam vários dias na cama. Brincara muito pouco. Atrasara-se nos estudos, sendo suplantada por ela, três anos mais nova. À custa de uma firmeza insuspeitada em organismo tão frágil, concluíra o segundo grau, mas nesse ponto parou os estudos. E o admirável nisso tudo é que nunca ninguém a viu queixar-se.
O pai delas foi muito arguto quando observou que Magnólia e Felicité pertenciam à mesma família. Ele lia muito e tentou transmitir aos filhos o gosto pela leitura, mas só teve êxito com Orquídea. Um dia ele entregou a Orquídea um volume encadernado de novelas francesas e lhe disse: leia com atenção Um Coração Simples. Você vai ver que a personagem Felicité é uma irmã espiritual da nossa Magnólia.
Figura mais curiosa o seu pai! Outra paixão sua eram as flores. Cultivava as mais diferentes espécies no jardim. E tratava-as com um carinho que jamais exprimiu pelos filhos. Apesar de terem nomes de flor: Orquídea, Magnólia, Gardênia e Lírio, o único homem.
Até ela chegava o ressonar de Magnólia. Pensou nos roncos da irmã, que lhe agravavam a insônia. E naquele dia que se seguiu a uma noite inteira sem dormir, em que afinal explodiu: não iria mais dormir no mesmo quarto. A mãe e Gardênia defenderam Magnólia, que nada falou. Empalideceu, arremedou um sorriso, como se fosse um mudo pedido de desculpa. Orquídea passou a se deitar no sofá, mas não conseguiu dormir melhor. Magnólia continuou a perturbar-lhe o sono. Já não eram os roncos: o peso do remorso por ter agredido uma pessoa tão indefesa. No quarto dia lhe pediu que a perdoasse. Magnólia quase sorriu e lhe falou não tem de que se desculpar, mana. E Orquídea voltou para o quarto.
A enfermeira vem verificar a temperatura da doente. Orquídea vai até à cama. A enfermeira consulta o relógio. Depois de retirar o termômetro da axila, agita-o e examina. "Como está ela"? pergunta Orquídea. "Um pouquinho febril. Vou aplicar um antitérmico".
Orquídea sentou-se. Sorriu para Magnólia. Ela olhava em sua direção, as pálpebras quase cerrando os olhos. A moça reapareceu com o medicamento. Quando saiu, Orquídea dirigiu-se ao sanitário. Ao voltar, deteve-se no espelho oval, de gasta moldura amarela. Retirou os óculos e os pousou sobre a cômoda. Aproximou o rosto da lâmina e pôs-se a examinar os sinais dos anos nele. Recolheu os óculos e tornou a sentar.
Magnólia dormia outra vez. Reteve o olhar naquele corpo que sumia sob o lençol. Dali para a frente iria ficar cada vez mais transparente até o soar da hora final. Com uma mão alçou os óculos até à testa e, com a outra, levantou a barra da saia e enxugou uma lágrima. O frasco de soro estava no fim. Apertou o interruptor e chamou a enfermeira. Pra renovar o soro, falou quando a moça apareceu. Ela se afastou e logo em seguida reapareceu com um novo frasco. Atirou o vazio num cesto. Antes de sair, examinou o saco que armazenava a urina. Ainda levaria algumas horar para ficar cheio.
Orquídea foi para a janela. O estacionamento estava quase vazio. Os carros prosseguiam no seu transitar barulhento. Amanhã teria que regressar. Só viera por causa da cirurgia de Magnólia. Seu novo livro estava a dois dias do lançamento. Sentia por ele uma expectativa talvez maior do que quando estreara na literatura. Um romance de humor - uma experiência nova em sua carreira. Na penúltima obra já realizara uma incursão pelo gênero em algumas passagens. Os críticos não gostaram. Preferiam os pequenos-grandes dramas do homem comum, que, segundo eles, Orquídea sabia transformar em arte genuína. Mas há muito tempo deixara de se interessar pela opinião dos críticos. Não é de hoje que ela pensava em escrever uma história que deixasse o leitor, se não feliz, pelo menos alegre. Uma história de pés plantados na realidade, mas essa realidade vista sob a ótica do humor. A literatura brasileira - concordava com o que escrevera um crítico certa vez - é muito carrancuda, excessivamente grave. Molière e Chaplin - um no teatro, o outro no cinema - provaram a eficácia do humor como instrumento de crítica. Sem a pretensão de igualar-se aos dois, ela buscara atingir o alvo com esse último livro. E os críticos que tentassem aceitá-la com essa nova imagem, porque estava disposta a prosseguir com a experiência.
O ruído do sono de Magnólia trouxe-lhe de volta o drama da irmã. E ela ali pensando no seu novo livro! Mas o que é que podia fazer? Menos que nada. Se pudesse, concederia a Magnólia aquilo que as pessoas se acostumaram a desejar aos aniversariantes: muitos e muitos anos de vida. Mas nada poderia fazer. Nem ficar ao seu lado por mais um dia. Não era apenas o livro. O emprego, o filho, a direção da casa. Pobre Magnólia. Seus numerados dias teria que passá-los em companhia de Bilu, a criada que as viu nascer e nunca as abandonou. Gardênia virara grã-fina e no momento percorria a Europa com o marido. Lírio fora embora para São Paulo e nunca mais dera notícias. Os pais falecidos. Só restava a preta Bilu, já de cabelos embranquecidos, mas ainda vigorosa. Maravilhosa Bilu. O que iria ser dela quando Magnólia morresse, se não tinha nenhum parente vivo? Não alimentava a certeza de que Gardênia a amparasse. Mas lutaria para que a velha Bilu não fosse abandonada depois de servir tanto à família.
Foi interrompida pela criada, que lhe trazia o jantar. Pediu que deixasse a bandeja sobre a cômoda. Depois daria uma olhadela nos pratos. A noite chegara. As luminárias da rua já estavam acesas. No pátio um solitário carro. O quarto parcialmente coberto pela escuridão. Orquídea permaneceu ali por muito tempo. Sem pensar em nada. Vagando o olhar pelo pátio, ouvindo o barulho dos carros e o ressonar de Magnólia. Até as trevas amortalharem o pátio e o quarto.
(Do meu livro Um dia... os mesmos dias, 1983)

sábado, maio 07, 2005

LOUIS MALLE

Outro dia numa matéria sobre a Nouvelle Vague na Internet, o nome de Louis Malle aparece como um dos participantes daquele Movimento. Eis um equívoco em que ainda incorrem alguns cinéfilos/críticos mal informados. Creio que isso tem a ver com o fato de Malle ter estreado no longa quase na mesma época do nascimento da NV., embora o seu primeiro filme, um curta, date de 1953. Sim, é verdade que no livro Os Filmes de Minha Vida, (Nova Fronteira, 1989), na parte intitulada "Meus Companheiros da Nouvelle Vague", François Truffaut comente dois filmes de Malle, mas é possível que tenha considerado todos os filmes ali analisados, de diretores comtemporâneos seus, como empenhados em uma nova forma de fazer cinema, em oposição aos filmes de diretores da "Vieille Vague", e não apenas os de seus verdadeiros pares da NV.. Se assim não fosse, é o caso de se perguntar o que ali estava fazendo Roger Vadim. O certo é que Louis Malle nunca foi bei aceito pela turna da NV., certamente por manter uma independência em relação ao Movimento. E, aliás, em seu Zazie dans le Metro (1960), há numa fala de um personagem uma referência maliciosa à Nouvelle Vague.
E o cinema de Malle possui uma característica inconfundível que não não devia atrair as simpatias daquele grupo. Quero aludir à queda que ele sempre demonstrou pelo ousado, o escandaloso, o polêmico, desde quando no distante ano de 1958 mostrou, em Os Amantes, uma variação do ato sexual, chocando os puritanos da época. E ao revelar isso, Malle procurava atingir aquele que, segundo o crítico Ricardo Cota, era o alvo principal de seu ataque, isto é, "os arraigados costumes burgueses", encobertos pelo manto do puritanismo, da hipocrisia, do falso moralismo. Na fuga do personagem de Jeanne Moreau com o amante, ela (mal) casada com um homem riquíssimo, é feita a defesa da liberação da mulher, quando o feminismo era uma palavra que não constava do dicionário.
E daí pra frente ele expôs a relação incestuosa entre a mãe e o filho adolescente em O Sopro no Coração (1970), o colaboracionismo à ocupação nazista, uma mancha indelével no orgulho francês (Lacombe Lucien , 1973), a paixão abrasadora entre a noiva e o pai do noivo em Perdas e Danos (1992, seu penúltimo filme), neste ainda tendo de volta a presença do incesto, entre irmã e irmão, só que o incesto não é mostrado, mas revelado pela irmã numa conversa dela com o amante e quase futuro sogro. E há ainda em Pretty Baby, 1978, sua estréia no cinema americano, a iniciação na prostitutuição de uma garota criada em um bordel, onde sua mãe trabalhava. Mas, atenção. Não se pense que Malle, no propósito de pôr o dedo na ferida, tivesse apenas em mente o desejo de passar a sua "mensagem", com o único objetivo de causar escândalo, de provocar polêmica. Não. Seus filmes eram bem realizados, demonstrando o conhecimento que ele possuía da técnica e da linguagem cinematográficas. Sem falar da sensibilidade e de uma certa delicadeza imprimidas à narrativa. Inesquecível, para citar um exemplo ao acaso, a antológica sequência em que o casal de Os Amantes passeia, de mãos dadas, em plena madrugada, na qual se aliam o lirismo, a magia e um quê de onirismo.
Se nunca realizou uma obra-prima (em dois ou três filmes raspou a trave), sempre manteve um nível de qualidade entre os mais de trinta filmes que dirigiu. Poucos os tropeços (Viva Maria. O Ladrão Aventureiro, A Baía do Ódio, até certo porto Perdas e Danos, mais um ou outro) . Louis Malle estudou Ciência Política na Sorbonne. Antes de experimentar a direção, foi assistente de Bresson. Morreu em 23.11.95, na Califórnia, onde residia deste os anos de 1970. Estava com 63 anos.

quarta-feira, maio 04, 2005

OS DEZ MAIORES FILMES DE FEDERICO FELLINI




1 . Oito e Meio (1963)

2 . Amarcord (1973)

3 . A Doce Vida (1960)

4 . A Estrada da Vida (1954)

5 . Os Boas-Vidas (1953)

6 . Noites de Cabíria (1957)

7 . E La Nave Va (1983)

8 . As Tentações do Doutor Antônio (1962)

9 . Ginger e Fred (1985)

10. Abismo de um Sonho ( 1952)