terça-feira, maio 10, 2005

ORQUÍDEA E MAGNÓLIA




Recostada à janela, observava o vaivém dos carros barulhentos na rua em frente. A uns poucos metros, os carros de alguns médicos permaneciam estacionados. Cada médico possuía uma vaga, o seu nome inscrito numa plaqueta fincada no chão e colada ao muro. Achou curiosa a semelhança entre as plaquetas e as cruzes de mortos anônimos encontradas à margem das estradas. Tinha ficado muito tempo sentada próximo à cama, e o desconforto da cadeira deixara-a com a coluna dolorida. Era mais para aliviar-se das dores que estava ali, pois nada de agradável tinha a oferecer aquela paisagem monótona e ruidosa.
Depois de algum tempo foi verificar o frasco de soro. Ficou olhando a queda lenta e intermitente da gotinha. A irmã permanecia naquela modorra que afeta os recém-operados. Há pouco a enfermeira mudara o saco de plástico onde era coletada a urina. A outra janela, que fica perto da cabeceira da cama, também estava aberta. Retornou à janela. Um médico entrou apressadamente no carro. Lembrou-se das palavras do cirurgião sobre o estado de saúde da irmã. A frieza com que lhe comunicara a malignidade do tumor extirpado, acentuada pelo uso da terminologia técnica. Ainda bem que regressaria ao Rio no dia seguinte. O lançamento de seu novo livro estava marcado para dali a dois dias. Não teria coragem de revelar a verdade à irmã, embora soubesse que ela receberia a notícia com serenidade e resignação.
Desde criança Magnólia apresentara uma saúde precária. Sofria de problemas respiratórios, que a prendiam vários dias na cama. Brincara muito pouco. Atrasara-se nos estudos, sendo suplantada por ela, três anos mais nova. À custa de uma firmeza insuspeitada em organismo tão frágil, concluíra o segundo grau, mas nesse ponto parou os estudos. E o admirável nisso tudo é que nunca ninguém a viu queixar-se.
O pai delas foi muito arguto quando observou que Magnólia e Felicité pertenciam à mesma família. Ele lia muito e tentou transmitir aos filhos o gosto pela leitura, mas só teve êxito com Orquídea. Um dia ele entregou a Orquídea um volume encadernado de novelas francesas e lhe disse: leia com atenção Um Coração Simples. Você vai ver que a personagem Felicité é uma irmã espiritual da nossa Magnólia.
Figura mais curiosa o seu pai! Outra paixão sua eram as flores. Cultivava as mais diferentes espécies no jardim. E tratava-as com um carinho que jamais exprimiu pelos filhos. Apesar de terem nomes de flor: Orquídea, Magnólia, Gardênia e Lírio, o único homem.
Até ela chegava o ressonar de Magnólia. Pensou nos roncos da irmã, que lhe agravavam a insônia. E naquele dia que se seguiu a uma noite inteira sem dormir, em que afinal explodiu: não iria mais dormir no mesmo quarto. A mãe e Gardênia defenderam Magnólia, que nada falou. Empalideceu, arremedou um sorriso, como se fosse um mudo pedido de desculpa. Orquídea passou a se deitar no sofá, mas não conseguiu dormir melhor. Magnólia continuou a perturbar-lhe o sono. Já não eram os roncos: o peso do remorso por ter agredido uma pessoa tão indefesa. No quarto dia lhe pediu que a perdoasse. Magnólia quase sorriu e lhe falou não tem de que se desculpar, mana. E Orquídea voltou para o quarto.
A enfermeira vem verificar a temperatura da doente. Orquídea vai até à cama. A enfermeira consulta o relógio. Depois de retirar o termômetro da axila, agita-o e examina. "Como está ela"? pergunta Orquídea. "Um pouquinho febril. Vou aplicar um antitérmico".
Orquídea sentou-se. Sorriu para Magnólia. Ela olhava em sua direção, as pálpebras quase cerrando os olhos. A moça reapareceu com o medicamento. Quando saiu, Orquídea dirigiu-se ao sanitário. Ao voltar, deteve-se no espelho oval, de gasta moldura amarela. Retirou os óculos e os pousou sobre a cômoda. Aproximou o rosto da lâmina e pôs-se a examinar os sinais dos anos nele. Recolheu os óculos e tornou a sentar.
Magnólia dormia outra vez. Reteve o olhar naquele corpo que sumia sob o lençol. Dali para a frente iria ficar cada vez mais transparente até o soar da hora final. Com uma mão alçou os óculos até à testa e, com a outra, levantou a barra da saia e enxugou uma lágrima. O frasco de soro estava no fim. Apertou o interruptor e chamou a enfermeira. Pra renovar o soro, falou quando a moça apareceu. Ela se afastou e logo em seguida reapareceu com um novo frasco. Atirou o vazio num cesto. Antes de sair, examinou o saco que armazenava a urina. Ainda levaria algumas horar para ficar cheio.
Orquídea foi para a janela. O estacionamento estava quase vazio. Os carros prosseguiam no seu transitar barulhento. Amanhã teria que regressar. Só viera por causa da cirurgia de Magnólia. Seu novo livro estava a dois dias do lançamento. Sentia por ele uma expectativa talvez maior do que quando estreara na literatura. Um romance de humor - uma experiência nova em sua carreira. Na penúltima obra já realizara uma incursão pelo gênero em algumas passagens. Os críticos não gostaram. Preferiam os pequenos-grandes dramas do homem comum, que, segundo eles, Orquídea sabia transformar em arte genuína. Mas há muito tempo deixara de se interessar pela opinião dos críticos. Não é de hoje que ela pensava em escrever uma história que deixasse o leitor, se não feliz, pelo menos alegre. Uma história de pés plantados na realidade, mas essa realidade vista sob a ótica do humor. A literatura brasileira - concordava com o que escrevera um crítico certa vez - é muito carrancuda, excessivamente grave. Molière e Chaplin - um no teatro, o outro no cinema - provaram a eficácia do humor como instrumento de crítica. Sem a pretensão de igualar-se aos dois, ela buscara atingir o alvo com esse último livro. E os críticos que tentassem aceitá-la com essa nova imagem, porque estava disposta a prosseguir com a experiência.
O ruído do sono de Magnólia trouxe-lhe de volta o drama da irmã. E ela ali pensando no seu novo livro! Mas o que é que podia fazer? Menos que nada. Se pudesse, concederia a Magnólia aquilo que as pessoas se acostumaram a desejar aos aniversariantes: muitos e muitos anos de vida. Mas nada poderia fazer. Nem ficar ao seu lado por mais um dia. Não era apenas o livro. O emprego, o filho, a direção da casa. Pobre Magnólia. Seus numerados dias teria que passá-los em companhia de Bilu, a criada que as viu nascer e nunca as abandonou. Gardênia virara grã-fina e no momento percorria a Europa com o marido. Lírio fora embora para São Paulo e nunca mais dera notícias. Os pais falecidos. Só restava a preta Bilu, já de cabelos embranquecidos, mas ainda vigorosa. Maravilhosa Bilu. O que iria ser dela quando Magnólia morresse, se não tinha nenhum parente vivo? Não alimentava a certeza de que Gardênia a amparasse. Mas lutaria para que a velha Bilu não fosse abandonada depois de servir tanto à família.
Foi interrompida pela criada, que lhe trazia o jantar. Pediu que deixasse a bandeja sobre a cômoda. Depois daria uma olhadela nos pratos. A noite chegara. As luminárias da rua já estavam acesas. No pátio um solitário carro. O quarto parcialmente coberto pela escuridão. Orquídea permaneceu ali por muito tempo. Sem pensar em nada. Vagando o olhar pelo pátio, ouvindo o barulho dos carros e o ressonar de Magnólia. Até as trevas amortalharem o pátio e o quarto.
(Do meu livro Um dia... os mesmos dias, 1983)

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