terça-feira, setembro 29, 2009

NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS, 70

Realizado em 1939, "No Tempo das Diligências" ("Stagecoach) está completando 70 anos neste 2009. Para assinalar a data, divulgo aqui, com algumas alterações, um artigo que publiquei no Diário de Natal na década de 1990, quando o filme foi lançado em VHS. Ei-lo.
* * * * * * * * * * * * * * *
À época do surgimento de "No Tempo das Diligências", o "western" já estava com 36 anos. Adulto na idade cronológica, não o era na idade intelectual e artística. Até então, os exemplares do gênero, ou se enquadravam na categoria de produções modestas, servindo de veículo para os caubóis populares da época (Tom Mix, Buck Jones, Hopalong Cassidy, entre outros), ou na de produções caras, como "Aliança de Aço", de Cecil B. De Mille. O filme de Ford, apesar de este já ser um nome respeitado em Hollywood, com um Oscar na bagagem, não tinha um alto orçamento, nem uma única estrela no elenco (John Wayne era um ator pouco menos que obscuro, e sua escolha para o principal papel masculino, dizem, foi uma conquista que Ford obteve depois de uma luta árdua com o produtor Walter Wanger), e apresentava uma proposta temática não convencional. Sim, é verdade que, como observa J.L. Rieupeyrout em seu "O Western, ou o Cinema Americana por Excelência", o filme "respeitava todos os elementos consagrados pelo uso, conservando os tiroteios e as galopadas, e, em suma todos os temas dramáticos do gênero", mas, por outro lado, o autor ressaltava, "enriquecia-os com um conteúdo moral, social e psicológico que, sem desnaturá-los, lhes confere uma dignidade intelectual e artística, com a qual até então o "western" não se preocupava.
"No Tempo das Diligências", de fato, à medida que procedia ao desnudamento dos passageiros de uma viagem de diligências, representando diversas categorias sociais (que sofrem um ataque de índis, o qual propicia uma sequência que entraria para a antologia das maiores do cinema), tocava em questões, como o farisaísmo, a discriminação social, a dignidade humana e profissional de pessoas postas na marginalidade.
O roteiro de Dudley Nichols e Ben Hecht (este não creditado) inspirou-se no conto (ou novela?) "Bola de Sebo", de Maupassant. Essa identificação com a obra do escritor francês torna-se acentuada na importância que é dada à figura da prostituta Dallas (Claire Trevor). É o personagem principal. Ela acaba revestida de uma dimensão humana, que a coloca em posição superior às beatas que a expulsaram da cidade e à jovem esposa do oficial de Exército, que lhe torcera o nariz empinado durante a viagem. E não por acaso, a afinidade que se estabelece entre ela e Ringo Kid (Wayne) é originada por ele ser também um pária social, já que é um pistoleiro que acabara de cumprir pena na prisão. A segregação que sofrem dos demais passageiros, com exceção do médico alcoólatra (na primeira parada da diligência, ficam separados dos outros durante a refeição), os conduz a essa afinidade que evolui para o amor.
Essa simpatia, essa generosidade por pessoas ou etinias postas à margem do Sistema é um dos temas caros a John Ford. Recorde-se, a propósito, que foi ele o primeiro diretor a dar voz ativa ao índio em "Fort Apache", isso em 1948.
Outro tema sempre presente em sua obra é a amizade. Em "No Tempo das Diligências", esse sentimento, que Jorge Luis Borges definiu como uma das formas assumidas pelo amor, aflora entre o médico (Thomas Mitchell, por sinal, ganhador do Oscar pelo papel, juntamente com Claire Trevor) e o xerife (George Bancroft). E a imagem final, com os dois caminhando em direção ao bar, leva-nos a pensar se não inspirou a que encerra "Casablanca", em que aparecem, também andando juntos, Humphrey Bogart e Claude Rains.
"No Tempo das Diligências", pois, mantém-se ainda hoje de pé por suas diversas qualidades , ao mesmo tempo que se firma, cada vez mais, como desbravador de uma trilha temática pela qual transitaram inúmeros "westerns" que o sucederam, ajudando o gênero a adquirir o status artístico.

terça-feira, setembro 22, 2009

ISADORA, CARMEM E MARILYN VISTAS POR EDUARDO GALEANO

Foto in Google

ISADORA

Descalça, despida, envolvida apenas pela bandeira argentina, Isadora Duncan dança o hino nacional.

Comete esta ousadia numa noite de 1916, num café de estudantes em Buenos Aires, e na manhã seguinte todo mundo sabe: o empresário rompe o contrato, as boas famílias devolvem suas entradas ao Teatro Colón e a imprensa exige a expulsão imediata desta pecadora norte-americana que veio à Argentina para macular os símbolos pátrios.

Isadora não entende nada. Nenhum francês protestou quando ela dançou A Marselhesa com um xale vermelho como traje completo. Se é possível dançar uma emoção, se é possível dançar uma ideia, por que não se pode dançar um hino?

A liberdade ofende. Mulher de olhos brilhantes, Isadora é inimiga declarada da escola, do matrimônio, da dança clássica e de tudo aquilo que engaiole o vento. Ela dança porque dançando goza, e dança o que quer, quando quer e como quer, e as orquestras se calam frente à música que nasce de seu corpo.

CARMEM

Toda brilhosa de lantejoulas e colares, coroada por uma torre de bananas, Carmem Miranda ondula sobre um fundo de paisagem tropical de cartolina.

Nascida em Portugal, filha de um fígaro pobretão que atravessou o mar, Carmem é hoje em dia o principal produto de exportação do Brasil. O café vem depois.

Esta baixinha safada tem pouca voz, e a pouca voz que tem desafina, mas ela canta com as cadeiras e as mãos e com o piscar dos olhos, e com isso tem de sobra. É a mais bem paga de Hollywood; possui dez casas e oito poços de petróleo.

Mas a empresa Fox se nega a renovar seu contrato. O senador Joseph MacCarty denunciou-a como obscena, porque durante uma filmagem, em plena dança,um fotógrafo delatou intoleráveis nudezas debaixo de sua saia voadora. E a imprensa revelou que já em sua mais tenra infância Carmem tinha recitado para o rei Alberto da Bélgica, acompanhando os versos com descarados gestos e olhares que provocaram escândalo nas freiras e uma prolongada insônia no monarca.

MARILYN

Como Rita, esta moça foi corrigida. Tinha pálpebras gordas e papada, nariz de ponta redonda e dentes demasiados: Hollywood cortou a gordura, suprimiu cartilagens, limou seus dentes e transformou seus cabelos castanhos e bobos numa maré de ouro fulgurante. Depois os técnicos a batizaram de Marilyn Monroe e lhe inventaram uma patética história de infância para que ela contasse aos jornalistas.

A nova Vênus fabricada em Hollywood já não precisa se meter em cama alheia para conseguir contratos para papéis de segunda em filmes de terceira. Já não vive de salsichas e café, nem passa frio no inverno. Agora é uma estrela, ou seja: uma pessoinha disfarçada que gostaria de recordar, mas não consegue, certo momento em que simplesmente quis ser salva da solidão.

- Textos do livro "Mulheres" (L&PM POCKET/2009, tradução de Eric Nepomuceno).


terça-feira, setembro 15, 2009

NOMES



Quando ela disse que se chamava Meiriely (com ípsilon no final, fez questão de frisar), um risinho de mofa, impossível de ser contido, assomou aos lábios dele. Essas donas nunca dizem o nome verdadeiro, pensou. Mas além de não acreditar que a mulher tinha esse nome, achou-o tão incomum, exótico até, que ficou curioso. Por que se chama assim? Hi, todo mundo pergunta isso. A mamãe diz que viu num livro. Sua mãe gosta de ler? Virgem Maria! Aquela ali parece que nasceu com um livro nas mãos. Ele ficou matutando em qual livro a mãe dela tinha visto aquele nome. Tinha a mania pelos nomes próprios inusitados, que só eram dados a uma pessoa. Não poderia existir outra mulher com o nome de Meiriely, ou que viesse a existir. E você, qual é o seu nome? Ah, o meu nome é tão usado, que é capaz de você adivinhar. Ela pensou um instante e disse José? Tá vendo como é fácil de saber? Mas como você é chamado? Zequinha. Mas podia ser Zezinho, Zeca, Zé, e até Juca (tem alguns Josés que são chamados de Juca). Mas nem a sua família lhe chama de José (ela estava ficando curiosa)? Só os meus pais. E você? Todo mundo lhe chama de Meiriely? Positivo. Ele sorriu, ela perguntou por quê. Não é nada com você. É que me lembrei de uma namorada que tive. Devia ser um nome muito engraçado. Ele voltou a sorrir. Sabe como ela se chamava? Sim? Primitiva. Primitiva? e soltou uma risada que chamou a atenção de algumas pessoas sentadas próximas à mesa deles. Primitiva, ela repetiu e riu, mas dessa vez com comedimento. Francamente! Era pelo menos bonita? O pior é que não era. E por que, Zequinha, você foi justo namorar essa Primitiva? Sei lá. Mas era boa gente. Até fiquei com pena quando terminei com ela, ela chorou. Bem, com um nome desse, o que você tinha mesmo era que terminar o namoro. Mas era boa gente, tão boa gente que ficou minha amiga. Ah, bom. E você? Nunca namorou um cara com um nome assim? Nunca. Ele interrompeu de repente a conversa, para pedir outra cerveja. Enquanto isso, ela ficou pensativa, como se estivesse querendo se lembrar de algum homem de nome estranho que passara pela sua vida. Mas não disse nada. Ele voltou à conversa e perguntou se podia chamá-la só de Meiri. Se você quer assim, que assim seja, mas não ia gostar. Ele sorriu, tá bem, que seja Meiriely. E eu fico lhe chamando de José, tá bem? Você que sabe. Se quiser pode ser Zequinha, como você me chamou há pouco, eu já não me importo mais, mas olhe, vamos virar o disco. Virar o disco? Mudar de assunto, esse papo já tá pra lá de Marrakesh, como diz aquela música do Caetano. Puxa, essa expressão deve ser do tempo da minha mãe. Eu sou do tempo da sua mãe.
Despertou com o ronco dela. Estava de costas para ele. O lençol não cobria todo o seu corpo e uma parte da bunda estava exposta. Uma bunda bonita, ele já a tinha visto inteira, antes mesmo de irem para a cama, quando ela se despira na frente dele. Ficou algum tempo olhando praquele lado, em certo momento tentou, com cuidados para não acordá-la, afastar mais o lençol, mas não conseguiu. Um pensamento lhe veio de repente. Levantou-se silenciosamente, com passos de lã foi até onde ela deixara a roupa e a bolsa. Remexeu na bosa, até encontrar a carteira. Achou o RG e pôs os olhos no nome dela. Tomou um susto: ela se chamava mesmo Meiriely. Não era, então, um nome de guerra, como as outras faziam. Foi para o banheiro.
Ela acordou, olhou para o lado e não o viu. Logo ouviu o ruído da água do chuveiro. Espreguiçou-se e, tão de repente como ocorrera com ele, veio-lhe o mesmo pensamento. Levantou-se, também nua, apesar da temperatura do ar condicionado. Foi também para o local onde ele depositara a roupa. Quando olhou a carteira de identidade dele, teve vontade de explodir numa gargalhada. Mas riu baixinho, para não ser ouvida. Voltou para a cama e ficou na mesma posição em que ele a vira. Mas não recuperou o sono. Ficou pensando no nome dele e rindo baixinho, enquanto repetia o nome Meirelaz.

terça-feira, setembro 08, 2009

DÚVIDA (Doubt/2008)


O mérito maior desse filme é não se posicionar a respeito do relacionamento entre o padre Brendan Flynn (Philip Seymour Hoffman) e o garoto negro Donald Miller (Joseph Foster), tendo por cenário uma escola católica no bairro Bronx, em Nova York, em 1964, pertencente a uma paróquia pela qual o padre é o responsável. Houve mesmo uma relação anormal entre eles, como suspeita a Jovem Irmã James (Amy Adams), professora do garoto, que transmite a suspeita à Irmã Aloysius (Meryl Streep), a diretora? Ou se tratou apenas de uma afeição natural do padre pelo garoto, originada pela intenção do padre de protegê-lo da discriminação dos seus colegas de cor branca? Fica a suspeita, que, no caso da despótica Irmã Aloysius, evolui para a quase certeza de que o padre Flynn seduziu o aluno, e se empenha, com sucesso, em fazer com que ele se transfira para outra paróquia.
Estamos diante de um filme em que ao espectador é dada a incumbência de decidir pela anormalidade, ou não, daquela relação. O que o filme faz é fornecer alguns elementos que deem ou não a certeza de que a conduta do pároco é a que ele defende, com veemência, no confronto com a diretora. Exemplos. Ele se mostra orgulhoso de ter as mãos sempre limpas, mostrando-as para os alunos e exigindo de um deles que lhe siga o exemplo - e nessa atitude não estaria simbolizada a intenção do padre de se limpar de uma "sujeira", que seria a relação com Donald? Sujeira que se encontra numa peça de vestuário de Donald, que o padre Flynn deposita no armário destinado ao garoto, cena testemunhada pela Irmã James. E na conversa que têm a diretora e a Senhora Miller, esta revela a homossexualidade do filho, que, por isso, é maltratado pelo pai.
Por outro lado, na única vez em que os dois são vistos sozinhos é num momento de brincadeira do padre. Ele faz funcionar um brinquedo que mostra uma dançarina seminua em frente a um espelho e que executa a dança ao se mexer o brinquedo, o qual é dado ao menino. Na outra vez em que eles aparecem é quando Donald leva um esbarrão proposital de um garoto, desaba no chão, juntamente com o material escolar que conduzia e o brinquedo. O padre é o único presente a prestar-lhe ajuda, que é rematada com um abraço comovido no garoto.
A questão da dúvida é o tema do filme. Ainda que a dúvida se concentre na natureza daquela relação, há a intenção de torná-la mais abrangente. É sobre a dúvida o sermão do padre Flynn nos primeiros minutos do filme. E a Irmã Aloysius, como qualquer outra pessoa, não se torna imune a ela. Não apenas em relação à culpa do padre, mas outras dúvidas que, no final, diz ter à Irmã James, mas sem revelá-las. E ao não conseguir conter as lágrimas, opera-se uma humanização naquela mulher autoritária, ríspida, sarcástica. Uma cena que me fez lembrar o final de "La Strada", de Fellini, quando aquele bruto Zampanó chora ao ficar sabendo da morte de Gelsomina, a quem tanto maltratara e humilhara.
"A Dúvida" é adaptado da peça homônima de John Patrick Shanley, que é quem dirige o filme e também escreveu o roteiro. É apenas seu segundo filmes como diretor, num intervalo de 18 anos entre um e outro (sua estreia foi em "Joe Contra o Vulcão"/1990, com Tom Hanks). Direção eficiente, hábil (veja-se como ele evita que a referida cena final descambe para o sentimentalismo) ,delicada em certos momentos, em outros, intensa, como , por exemplo, no confronto entre a diretora e o padre, no qual é exibido um duelo de interpretação entre essa extraordinária Meryl Streep (um detalhe na sua composição do personagem é o tique que aparece no lábio superior da boca) e esse ótimo Philip Seymour Hoffman, que já provara o seu talento em "Capote".
Finalizando, um filme americano de qualidade, algo não comum de se ver hoje em dia no cinema produzido nos Estados Unidos.

terça-feira, setembro 01, 2009

TÍTULOS

Capa da primeira edição (Livraria
José Olímpio Editora/1957 ) .
in Google.

* * * * * * * * * * * * * *
Na década de 1970, ou 80, foi lançada uma peça teatral com um título curioso: "Se Porém Fosse Portanto". Não sei se a peça era boa, nem quem é o autor, mas fiquei interessado em vê-la unicamente por causa desse título. Naqueles anos chegavam a Natal muitas peças produzidas no Rio, a grande maioria de cunho comercial, como me parece ser o caso dessa, mas "Se Porém Fosse Portanto" não baixou por aqui e eu fiquei sem saber o porquê desse título.
Há peças, livros, filmes, etc. que, antes da qualidade que possam ter, atraem pela natureza do título. Estes podem chamar a atenção do leitor pelos mais diversos motivos. Até pela beleza. Um dos mais belos que conheço é o do romance "A Insustentável Leveza do Ser", de Milan Kundera, que, ao ser adaptado para o cinema, conservou na nossa língua o título original.
Falando em títulos curiosos, insólitos, extravagantes, me vêm à lembrança os dos livros do escritor mineiro, já falecido, Campos de Carvalho. Dos seus romances só li "A Lua Vem da Ásia", um título bizarro e que, aliás, não tem nenhuma ligação com a história narrada. Pelo menos, não tem o mau gosto de "Vaca de Nariz Sutil". (De repente, me lembro que conheço outro romance dele, um bonito título, a que não falta um certo tom poético: "A Chuva Imóvel".)
O também mineiro, que se radicou no Rio, Aníbal Machado (pai da teatróloga Maria Clara Machado) escreveu "Cadernos de João". Embora comum, não é um título feio, mas pode enganar o leitor, que será levado a pensar em um romance, cujo personagem principal se chama João.
Trata-se da reunião de reflexões, conceitos, visões de Aníbal sobre a vida, as artes, as pessoas, etc., apresentando, ainda, poemas em prosa e em verso e uns poucos contos, ele que foi um excelente contista.
Essa questão de títulos é rica , é apaixonante, e a pessoa pode explorá-la sob muitos aspectos. Ocorrem casos, por exemplo, em que o autor escolhe o título a partir de uma frase de um outro; casos em que o título de um livro é uma apropriação do de um outro, famoso, mas fazendo uma variação, como fez Cortázar, com o seu "A Volta ao Dia em Oitenta Mundos". Às vezes se dá que dois livros tenham o mesmo título, sem que os autores tenham copiado um ao outro. Este blogueiro já passou por essa experiência. Quando em 1995 publiquei a coletânea de contos "Grandes Amizades", fiquei sabendo que havia um livro de Raissa Maritain também assim chamado, com uma minúscula diferença de que no dela havia o acréscimo do artigo. Eu, sequer, ouvira falar dessa obra, mas fiquei um pouco preocupado por sentir que as pessoas, que me deram a informação, achavam que eu havia bebido na fonte da mulher de Jacques Maritain. Fiquei mais aliviado quando contei o caso a uma escritora amiga, que me disse num tom brincalhão: "Não se preocupe, Sobreira. Ela tinha as amizades dela, você tem as suas".