quarta-feira, julho 02, 2008

BICICLETA



Foto tirada de www.fotosearch.com.br

Via os amigos pedalando as bicicletas, nos rostos a expressão de felicidade. E ainda sem poder discerni-la, a inveja instilava-se em seu coraçãozinho. A raiva, sim. A raiva de se ver privado daquele brinquedo que fazia parte também dos adultos. Ah, como desejava montar numa bicicleta e andar com ela pelas ruas, devagarinho, às vezes, como para fruir a conta-gotas o prazer de sabê-la sua, não precisando recorrer à de um amigo, que a emprestava por pouquinho tempo e sempre o advertindo cuidado, não vá arranhar a minha bicicleta; e em outras vezes, fazendo-a correr, apostando corrida com alguém, pra ver quem chegava antes a um determinado ponto.

Não tinha coragem para pedir ao pai. Sempre recomendando à esposa para economizar na administração dos encargos domésticos, os negócios não iam bem, a seca, outros motivos de queixa que ele ouvia e não entendia.

Sim, havia os dois padrinhos. Talvez com eles fosse menos difícil o pedido. Um era rico, dono de fazenda, de gado, tinha até carro, com motorista. Só que morava longe, aparecia raramente, mas quando vinha à cidade era certo almoçar em sua casa. Difícil era falar com ele, os dois compadres sempre juntos, acompanhados das esposas. Além disso, os raros e pequenos presentes que ganhara dele confirmavam os comentários ouvidos em casa que o padrinho era assim, ó (fechava bem a mão).

O outro padrinho, por coincidência, era também fazendeiro, mas um pequeno fazendeiro. Não tinha carro, ia de cavalo à cidade, e, não sabia a razão, nunca almoçava em sua casa, visitava o compadre na casa comercial. Estava por lá numa dessas visitas, a mando de sua mãe para pegar dinheiro para uma compra. Tomou a bênção ao padrinho, que lhe fez um afago e sacou do bolso uma pequena importância, pra você comprar de bombom. (E não é que ele seguiu ao pé da letra a recomendação?)

Não, daquelas duas tocas não sairia coelho algum.

Um dia em que estava no seu quarto ouviu o pai gritar por ele. Ao chegar, quase correndo, à presença do pai, encontrou-o com o rosto mais vermelho do que o natural, tão irado estava. Segurava numa mão o boletim escolar. A voz alterava o tom à medida que lhe passava uma descompostura, a mão chegava a tremer. Ele ali calado, cabisbaixo, já com medo de apanhar. Nem sabe quanto tempo durou a cena até a mãe chegar e pedir calma ao marido, os vizinhos já deviam estar de ouvidos colados naquela gritaria raivosa. O pai foi se acalmando, de repente calou-se e sentou na cadeira de balanço. Ele aproveitou para sair, mas o pai o chamou de novo, a voz ainda irada, mas baixa. E então lhe disse: "Escute bem o que vou lhe dizer. Se você passar de ano, vou lhe dar uma bicicleta; agora, se você não passar, vai levar uma surra que nunca vai esquecer. Ouviu bem"?

Reconheceu, já sozinho, que errara ao neglicenciar os estudos, como um ato de rebeldia por não ter a bicicleta de que se julgava merecedor. Agira sem avaliar a forma dessa rebeldia, que só teria como efeito a ira do pai podendo chegar ao limite. Fosse pelos percalços nos negócios, fosse por temperamento, ou as duas coisas, o pai perdia fácil o controle e isso repercutia no trato com a esposa e os filhos.

Mas espera aí, o pai não lhe prometera uma bicicleta, se ele passasse de ano? Estava mal em todas as matérias, poucos meses restavam para o final do ano letivo. Mas iria se empenhar - reduziria as brincadeiras, renunciando a algumas, queimaria as pestanas, para não ser reprovado. E surra é uma coisa muito dolorosa. Mais na alma, certas vezes, do que no corpo.

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