quarta-feira, julho 23, 2008

KAFKA






Este texto foi publicado em junho de 1993 em um jornal de Natal, onde eu escrevia semanalmente. Resolvi divulgá-lo aqui, por ter visto o filme recentemente na tevê e conservado a mesma impressão sobre ele quando o vi há 15 anos. Ei-lo.


* * * * * * * * * * * *


Há de se sentir logrado o leitor de Frank Kafka que alugar a fita, acreditando que irá ver a cinebiografia do autor de A Metamorfose. É verdade que este é personagem da história, sim, mas desvinculado do seu universo de escritor, bem como da sua condição de homem envolvido em problemas íntimos e familiares, com os quais, basicamente, alimentou a sua obra. É certo também que, ao longo da narrativa, esse leitor irá encontrar uma ou outra informação sobre Kafka. Como na cena em que alguém pergunta se ele está desenvolvendo algum projeto literário e Kafka responde, lacônico, que está escrevendo sobre um homem que um dia acorda transformado num inseto. Mas não fosse por essas esparsas referências a Kafka, ele nem precisava ser personagem da história, bastando que o roteirista criasse um outro de sua própria imaginação. É é de supor que dotasse esse personagem fictício da credibilidade improvável em um homem que, pelo temperamento tímido, e ainda mais tendo os pulmões arruinados pela tuberculose, jamais poderia meter-se numa aventura arriscada que exigiria a compleição quase de um atleta.

O artifício de se valer de um escritor real como personagem não é novidade no cinema. Só na década de 80 podem-se citar dois exemplos: Hammett, de Wim Wenders, onde Dashiel Hammett se mete numa trama policial em muitos pontos semelhante às que ele punha no papel; e A Ùltima Dança de Salomé, de Ken Russell, com Oscar Wilde aparecendo como espectador de sua peça Salomé, encenada num bordel. E se em ambos o resultado foi, no mínimo, satisfatório, o foi sobretudo por Hammett e Wilde se apresentarem de maneira verossímil.

Por sua vez, o espectador que viu Sexo, Mentiras e Videotape ficará desapontado com este segundo filme de Steven Soderbergh. Ele nem se sai bem no propósito de realizar algo diferente do que seria uma simples biografia (e é de lamentar a chance que jogou fora, com um material rico como a vida de Kafka) , nem cria nada em termos de narrativa. Ao invés de acender as próprias luzes, Soderbergh prefere tomá-las emprestadas do Expressionismo alemão, lançando mão de seus recursos estilísticos (câmera inclinada, sombras humanas, close de rostos exóticos ou grotescos). Ainda que possa se tratar de uma homenagem, como quer um crítico, o diretor deveria ter dado um pouco de si mesmo, como faz Brian Di Palma, que não se limita a copiar Hitchcock. E no fato de ele mesclar o preto-e-branco e o colorido, Soderbergh não só não foi original, como fez uma coisa para a qual não vejo explicação.

Mas, afinal, depois de tudo o que foi dito, sobra algo de positivo em Kafka ? Sim. Um ou outro momento inspirado, a fotografia, apesar do seu débito com o Expressionismo, e sobretudo o elenco, repleto de sotaques de várias nacionalidades. Jeremy Irons faz o que pode para parecer com o Kafka que conhecemos de informações, Alec Guiness exibe a classe habitual num pequeno papel, Ian Holm idem, como o sinistro Dr. Murnau (uma homenagem ao cineasta?). Mas a melhor atuação é de Joel Grey (o inesquecível mestre de cerimônias de Cabaret) , vivendo uma espécie de fiscal de funcionários de uma empresa de seguros, onde trabalha Kafka.

Nenhum comentário: