quarta-feira, agosto 02, 2006

O PRIMEIRO LEITOR


Deve acontecer também com algumas pessoas. É quando adquiro um livro num sebo. Ao ler o livro, e se ele está me agradando, começo a pensar se o primeiro leitor também gostou daquela obra, se foi tocado pelo prazer enquanto a lia, se sentiu a mesma emoção que estou sentindo diante da história criada pelo autor, de algumas passagens do livro, da linguagem, formando palavras e frases de grande beleza, se tudo isso o encantou tanto quanto a mim. Ontem terminei de ler As Três Marias . Não conhecia esse livro de Rachel de Queiroz, lançado em 1939, o quarto de sua bibliografia. Gostei. Rachel foi uma escritora de peso, um dos nossos melhores autores (não faço distinção entre livros escritos por homens ou por mulheres). Não vou falar do romance, até porque penso que alguns dos meus fiéis visitantes o conhecem. Prefiro falar da pessoa que o leu antes de mim.
Me chamou a atenção, principalmente, a forma que ela utiliza ao demonstrar o gosto, ou a admiração , ou até a estranheza, por uma palavra. Em vez de sublinhar por inteiro a palavra, ela põe um tracinho sob ela. E, curiosamente, até a umas certas páginas , o traço é marcado pela cor verde, sendo depois substituído pelo marrom. E a marca nas palavras termina na página 127. Depois daí, até à pagina 200, que encerra o livro, não há mais um único tracinho. Por quê? Taí uma coisa que me encucou. Será que esse primeiro leitor de As Três Marias abandonou aí a leitura? Ou será que não encontrou mais nenhuma palavra que a interessasse? Pode-se escolher a primeira alternativa, pelo fato de o livro ter ido parar num sebo. Mas muitas vezes é um familiar do leitor, com a morte deste, que vende o livro. (Os sebistas costumam dizer que, mal o corpo do marido baixa à sepultura, a viúva aparece oferecendo a biblioteca do extinto.) E há ainda aquele tipo de leitor, não muito comum, que, depois de ler um livro, por mais que tenha gostado dele, não deseja conservá-lo.
Uma última coisinha. Fiquei com a sensação de que o primeiro leitor do livro de Rachel seja uma mulher. A história se passa, até perto da metade, num internato de freiras. E uma curiosidade. Numa hora em que, de passagem, é mencionado o nome da aluna Maria do Carmo Silva, há um traço vertical, um pouco grande, sob o qual está escrito "Carminha". Uma amiga da provável leitora? E terá esta frequentado o mesmo internato de Fortaleza? Quem sabe?
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O CENTENÁRIO DE MÁRIO QUINTANA
Em 30 de julho, se ainda estivesse entre nós, Mário Quintana teria chegado aos cem anos. Em Porto Alegre já começaram as comemorações pela data. Que devem se estender por outras capitais do país. Porque parece que, afinal, Quintana é hoje reconhecido como um grande poeta. Isso não ocorria há até alguns anos, até mesmo entre seus pares. Apesar da admiração de sua poesia por Carlos Driummond de Andrade e Manoel Bandeira, além do cronista (e poeta bissexto) Rubem Braga. Este, aliás, na época em que foi editor (Editora do Autor, junto com Fernando Sabino e não sei se mais algum outro escritor) foi o primeiro, de fora do Rio Grande do Sul, a publicar um livro de Quintana. Vi num site, no mesmo dia do seu centenário, que João Cabral também o admirava. Francamente, sou cético quanto a isso. Não existem dois poetas tão diferentes, na temática, no estilo, até no temperamento, quanto o gaúcho e o pernambucano. Não sei. Pode ser, mas sou cético. Bom, o que importa é que a poesia de Quintana está aí, viva, reconhecida. Uma poesia simples, mas daquela simplicidade profunda, não simplória. E muitas vezes perpassada pelo humor, quase sempre de natureza irônica, sarcástica. Outro dia vi (ouvi) num canal por assinatura um menino de oito anos declamar aquele conhecidíssimo "Poema do Contra": "Todos esses que aí estão/Atravancando o meu caminho/Eles passarão/Eu passarinho"! Há quem assegure que esse poema foi feito depois de ele perder, pela terceira vez, a eleição para o ingresso na Academia Brasileira de Letras. Pior para a Academia.
Mário Quintana foi também um grande tradutor, tendo traduzido, entre outros, Marcel Proust, Virginia Woolf e Maupassant. Faleceu em 5 de maio de 1994.

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