domingo, julho 30, 2006

FORMIGA CRIANDO ASAS


O espelho reflete o rosto subitamente meditativo de Jussara. Ele é expressivo em sua beleza arranhada pelas marcas que, mais que o tempo, lhe gravaram as asperezas do cotidiano. E para disfarçá-las, ela estivera até há pouco fazendo aplicação de cosméticos. Estendido na cama, o vestido que irá usar. Os sapatos ao pé da cama. No espelho, os olhos gatescos se destacam entre a espessa maquilagem do rosto. Ouve o choro do cacula, mas não se preocupa. Coisas de criança. Mas há bem pouco tempo ela correria de onde estivesse para consolar o filho. Nas madrugadas, já não se levanta para verificar se os filhos estão agasalhados e se têm o pijama umedecido. Quando vai ao vaso, não mais consulta o relógio por ver o lugar do marido ainda vazio. Bem que ela se transformara com a entrada de Humberto em sua vida. Humberto-meteoro, e que a ajudou, sem querer, a lutar contra a antivida que levava.
O fracasso em que redundara o seu casamento: tinha consciência disso, muito antes de Humberto aparecer. Na verdade, Marcílio não demorou para se revelar que a queria como um objeto de inestimável valor utilitário, podendo servir inclusive ao seu apetite sexual, nas noites em que não encontrasse outra parceira. Sofria com essa relação de senhor-escrava que existia no seu casamento, mas preferira a resignação à revolta. A revolta era guardada no coração e apenas levemente comunicada a Vera, a amiga com quem às vezes se abria. A amiga compartiu do drama que viveu ao conhecer Humberto, indecisa entre cair-lhe nos braços, ou permanecer leal a um homem que não a honrava, nem aos filhos. Alívio de suas dores conugais, nâo pôde, no entanto, ajudá-la a se decidir. Tu tens que decidir por você mesma, repetia Vera todas as vezes em que lhe pedia uma opinião. E pensar muito, acrescentava.
E ela não fez outra coisa. Foram dias e dias de tensão, de noites insones, em que se sentiu mais só e mais frágil. Humberto ligando pra ela a toda hora, para cobrar uma resposta favorável a sua proposta, a apreensão em que a deixavam os telefonemas, o pavor de que Marcílio se inteirasse do caso. Uma noite o marido resolve ficar em casa (não deve ter conseguido uma nova parceira) e vai procurá-la. Filha, vamos fazer um amorzinho, diz como uma ordem, nunca um convite. A escrava se deixa penetrar pelo seu senhor. Saciado, ele lhe vira as costas e logo depois ouve-se o ronco de quem tem a consciência de uma criança. Violentada (uma vez mais) em sua sensibilidade, Jussara deita-se com a insônia. No dia seguinte, vai ao encontro de Humberto.
É bruscamente interrompida pela aparição do caçula, que vem se queixar do irmão. Ela lhe faz um leve afago e promete castigar o faltoso quando voltar. Agora ele deve se retirar para mãeinha trocar de roupa. "Eu quero ir com mãeinha". "Mãeinha vai pro médico. Não pode levar você". "Ah, eu quero ir. Eu quero ir, mãeinha". "Não pode, filhinho. Outro dia eu lhe levo. Olha, fica aqui quietinho, sem dar trabalho a Ismênia, que eu vou trazer um presente jóia pra você. Tá certo? Agora saia pra mãeinha mudar de roupa".
Jussara toca a nudez que o espelho lhe revela. Sente um certo prazer em tatear o corpo despido - território fértil que Humberto palmilhara com a sede de curiosidade do explorador. Humberto-descobridor. Humberto-meteoro. (Humberto-mágico.)
Jussara dirigiu-se para a sala de cima. Tomou uma poltrona da última fileira, que estava vazia. Podiam-se contar as pessoas que ocupavam as demais fileiras. Esperou pouco tempo para que a sessão começasse. Logo depois de as luzes apagarem, viu um vulto apontar. Veio em sua direção e sentou-se a seu lado. Pousou-lhe a mão no ombro. Em seguida os rostos se colaram. Beijaram-se. Daí a uma meia hora ele deixou o cinema. Jussara esperou quinze minutos e saiu.
Três quadras adiante a porta de um carro tragou-a.
*********************************************
Conto extraído do meu livro Um Dia... Os Mesmos Dias (1983).

Nenhum comentário: