sexta-feira, setembro 28, 2007

FAHRENHEIT 451




Os créditos são lidos por uma voz em "off". É uma antecipação do tema do filme, que as duas sequências iniciais irão expor. Um rapaz recebe um telefonema anônimo, em que alguém lhe diz para deixar a casa imediatamente, sem nenhuma explicação. Em seguida, uma brigada de bombeiros sai da guarnição com destino à residência do rapaz. O motivo do telefonema e da invasão dos bombeiros é então justificado pela existência de livros no local. Encontrados, entre eles uma edição condensada de "Dom Quixote" (conforme foto acima), eles são levados para fora e ali queimados, sob a presença de cidadãos. Entre estes, um garoto folheia um dos livros, um dos bombeiros lhe lança um olhar de reprovação, o pai (supostamente) do menino, de imediato, tira-lhe o livro das mãos e o atira no meio dos outros. Está-se em um país, numa época de um futuro não determinado, em que a leitura de livros é proibida e a pessoa que os possuir é levada à prisão, enquanto os seus livros vão para a fogueira.

De 1966, este filme de François Truffaut ("Os Incompreendidos", "A Noite Americana") , antes de constituir-se em uma denúncia contra o totalitarismo, é uma declaração de amor ao livro, feita por um cineasta que foi um apaixonado leitor. Mostra a importância, a necessidade, até o prazer da leitura, ao mesmo tempo que investe contra o domínio da televisão sobre os habitantes daquele país. Por sinal que na invasão à residência do rapaz, os livros estão quase todos escondidos em um móvel simulando um aparelho de televisão.

Mas, como em todo regime totalitário, há os resistentes, os que, às escondidas, lutam contra a proibição da leitura. O líder desses combatentes é a jovem Clarisse (Julie Christie). Ela mora perto de um dos incendiários de livros, Montag (Oscar Werner) e, sentindo nele uma pessoa de bons princípios, apesar de sua dedicação àquele intolerante ofício, procura, com habilidade, torná-lo um dos seus. E consegue. Truffaut mostra o início do ingresso de Montag no universo que ele combate numa cena em que, tarde da noite, aproveitando-se do sono pesado da esposa, ele retira de um esconderijo um exemplar do "David Copperfield", de Charles Dickens, e começa a lê-lo. A câmera flagra com nitidez o capítulo inicial, cujo título é justamente "I am born"...

Em entrevista a uma jornalista, Truffaut revela que só aproveitou 60% do livro homônimo do escritor americano Ray Bradbury, lançado em 1953. Os restantes 40% foram criados por ele e Jean-Louis Richard, seu parceiro de roteiro. Uma dessas invenções é o fato de as duas mulheres na vida de Montag, Clarisse e a passiva esposa Linda, serem vividas por Julie Christie. Na sua visão, não funcionaria bem a escolha de outra atriz e com características físicas opostas à de Julie para o papel de Linda. A única diferença entre as duas, no filme, é quanto ao cabelo. Curto, parecido com o de um homem, em Clarisse, longo na esposa de Montag.

Truffaut não o revela, mas acredito que um dos elementos preservados do romance de Bradbury é a existência dos homens-livros. São homens que decoram livros, indo refugiar-se num local distante no país, a salvo das garras dos incendiários, e passam os dias "lendo". Um momento comovente mostra o velho avô, já agonizante, repassando as palavras de um livro para o neto, que as vai repetindo para retê-las na memória. A esse grupo de "leitores" vai se reunir Montag, de posse de uma obra de Edgar Allan Poe. Numa homenagem a Bradbury, um dos homens escolheu o seu "Crônicas Marcianas".

É um belo e emocionante final, cada uma das pessoas dizendo as palavras do livro de sua preferência. Pela memória dos amantes da leitura, as grandes obras da literatura não serão destruídas naquele país.

Rodado na Inglaterra, com atores britânicos, à exceção do austríaco Oskar Werner, que já trabalhara com Truffaut no belíssimo "Jules e Jim", "Fahrenheit 451" (o título refere-se ao grau de combustão ideal para a queima do papel de livro), parece ser um filme subestimado do diretor, e, no entanto, é um dos seus melhores trabalhos.

sábado, setembro 22, 2007

LEMBRANDO SIDNEY MILLER



Este trevo foi concedido a este blogue por uma gentileza do amigo "Eremita", como se assina o editor do blogue eremitério, pela qual sou muito grato.

pouco tempo remexendo em meus discos de vinil, para escolher alguns que queria passar para CD, me deparei com um de Sidney Miller, gravado na Elenco em 1967, cujo título era o próprio nome do compositor. De imediato o separei, para levar com outros ao técnico. Tantos e tantos anos não ouvia esse disco, que nem me lembrava que ele fazia parte do meu acervo. Bem recebido pela crítica, foi o primeiro dos apenas três elepês que ele gravou até morrer em 1980, com apenas 35 anos.

Nascido em 18 de abril de 1945, Sidney Miller foi mais um dos grandes talentos que surgiram na década de 1960, para revitalizar a MPB, após o esvaziamento da Bossa Nova. Como Chico, Caetano, Gil, Edu Lobo, Milton Nascimento, entre outros num nível um pouco abaixo.

Esse disco reúne músicas de grande qualidade, como O Circo, Passa, Passa, Gavião, Marré-De-Cy, Meu Violão, Pede Passagem, A Estrada e o Violeiro e Menina da Agulha. Todas as músicas são interpretadas pelo compositor, sendo que na duas últimas citadas há a participação de Nara Leão, formando um dueto com ele. Vale salientar que A Estrada e o Violeiro ganhou o prêmio de melhor letra no 3o. Festival da Record. (Era a época dos festivais de música popular, promovidos por aquela emissora de televisão, os quais, além de divulgarem o lançamento de autênticas pérolas musicais, serviram ainda como uma espécie de trincheira contra a ditadura militar.)

Num pequeno artigo sobre Sidney Miller no saite Revista Música Brasileira, os autores Fernando Toledo e Áurea Alves observam que "Sidney não era um iconoclasta como Caetano: em termos de música, estaria mais próximo de Chico, fazendo uma ponte entre um novo olhar e a herança musical e poética em seu sangue". De fato, há uma certa semelhança entre os dois, que é mais percebível nos sambas e choros de Sidney. Chico poderá ter mais talento, mas, pelo menos na qualidade da voz, é superado pelo colega e quase coetâneo (há apenas a diferença de um ano entre eles.)

Sidney também compôs para o teatro e o cinema. Suas músicas foram interpretadas por, entre outros, Nara Leão, Clara Nunes, Quarteto em Cy, Caetano, Paulinho da Viola e Dóris Monteiro. É lamentável que tenha morrido jovem, quando ainda tinha tanto a contribuir para a nossa música. E o mais lamentável é que tenha morrido por vontade própria. Por motivos que permanecem obscuros, Sidney Álvaro Miller Filho se matou em 16 de julho de 1980. Repetiu o gesto de Assis Valente, autor do clássico Boas Festas, e de Torquato Neto, seu contemporâneo daquele período de trevas em nosso páis.

A seguir, uma pequena amostra do seu talento: a letra de O Circo, a sua melhor música na minha opinião, pelo menos entre as que conheço dele.

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Vai, vai, vai começar a brincadeira

Tem charanga tocando a noite inteira

Vem, vem, vem ver o circo de verdade

Tem, tem, tem brincadeira e qualidade.

Corre, corre, minha gente

Que é preciso ser esperto

Vai melhor quem vai na frente

Vê melhor quem vê de perto

Mas no meio da folia

Noite alta, céu aberto

Sopra o vento que protesta

Cai no teto, rompe a lona

Pra que a lua de carona

Também possa ver a festa.

Vai, vai, vai, etc.

Bem me lembro o trapezista

Que mortal era o seu salto

Navegando lá no alto

Parecia de brinquedo

Mas fazia tanto medo

Que o Zezinho do trombone

De renome consagrado

Esquecia o próprio nome

E abraçava o microfone

Pra tocar o seu dobrado.

Vai, vai, vai, etc.

Faço versos pro palhaço

Que na vida já foi tudo

Foi soldado, seresteiro

Carpinteiro, vagabundo

Sem juiz e sem juízo

Fez feliz a todo mundo

Mas no fundo não sabia

Que em seu rosto coloria

Todo o encanto do sorriso

Que seu povo não sorria.

Vai, vai, vai, etc.

De chicote e cara feia

Domador fica mais forte

Meia-volta, volta e meia

Meia-vida, meia-morte

Terminado o seu batente

De repente a fera some

Domador que era valente

Noutras feras se consome

Seu amor indiferente

Sua vida e sua fome.

Vai, vai, vai, etc.

Fala o fole da sanfona

Fala a flauta pequenina

Que o melhor vai vir agora

Que desponta a bailarina

Que seu porte é de senhora

Que seu rosto é de menina

Quem chorava já não chora

Quem cantava desafina

Porque a dança só termina

Quando a noite for embora.

Vai, vai, vai terminar a brincadeira

Que a charanga tocou a noite inteira

Morre o circo, renasce na lembrança

Foi-se embora e eu ainda era criança.

sábado, setembro 15, 2007

COISAS DO CEARÁ





O primeiro selinho foi concedido a este blogue por gentileza de Marco Santos, editor do excelente "Antigas Ternuras". O segundo saiu por um equívoco meu. Peço desculpas a Marco pela "intrusão" do "thinking blogger AWARD" e aproveito para agradecer a Bené Chaves, de "O Apanhador de Sonhos", por me orientar a "colar" o selinho.








Composta por Guio de Moraes e interpretada por Luiz Gonzaga, dois pernambucanos, a música "No Ceará Não Tem Disso Não" fez sucesso no início dos anos 1950. A letra fala das queixas de um cearense estabelecido no Rio de Janeiro, então capital do país, de coisas que o incomodam naquele lugar e da sua intenção de voltar para a sua terra. Poque "no Ceará não tem disso não". Na forma de um refrão, essas palavras são repetidas ao longo da letra. Não me lembro de que coisas eram essas que aconteciam no Rio e não no Ceará, na visão do meu conterrâneo (tinha 8 anos quando a música foi lançada, tendo me ficado na memória apenas o refrão) e não me dei ao trabalho de pesquisar a composição, por achar desnecessário para o propósito deste texto. Porque lá no Ceará existem coisas que parecem ser exclusivas daquela terra. Como se diz, ao falar em futebol, que há coisas que só acontecem ao Botafogo.

Ora, imaginem um lugar onde o Sol foi vaiado numa manhã, me parece, da década de 1940. Não é uma invencionice, um produto do imaginário anedótico cearense, mas um fato real. Inspirou, inclusive, uma peça de um teatrólogo de lá. Durante três dias choveu sem parar em Fortaleza, inibindo a aparição do sol. No quarto dia, ao alvorecer, uma pequena multidão se reuniu na Praça do Ferreira, no centro da cidade, esperando que o sol, afinal, desse o ar da sua graça. E quando, depois de três dias, ele surgiu, foi recebido sob uma estrondosa vaia.

No feriado de 7 de setembro estava em Fortaleza. Perto do fim da tarde fui com um amigo à orla marítima, conhecida por Beira-Mar, talvez o point mais frequentado da cidade, repleto de restaurantes e bares, para conversarmos embalados por uma cerveja amiga. E foi no meio da conversa que ele me informou que ali perto de onde estávamos existe uma praça dos estressados e me convidou pra irmos até lá, depois que findássemos o bate-papo.

Pois é, em Fortaleza existe uma praça dos estressados. No duro, no duro, não é uma praça, mas um pequeno local, saindo um pouco do calçadão, com alguns bancos, de frente para um restaurante, a poucos metros da praia. Uma placa grande pendurada num poste indica que ali é a "Praça dos Stressados" (assim grafado), com um esboço de um desenho de uma boca sorrindo, uma frase "caminhe sorrindo" e a informação de que o local é mantido por um grupo de estressados. Conforme o meu amigo, os "stressados" , cujo número vem aumentando dia a dia, se reúnem todas as manhãs ali na "praça", depois de fazerem o Cooper. Chegam até a medir a pressão arterial, decerto com o aparelho respectivo levado por algum deles (provavelmente um médico).

É, tem dessas coisas o Ceará.


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UMA MISTURA QUE NÃO DEU CERTO


"O Labirinto do Fauno" (El Labirinto del Fauno/2006), recém-lançado em DVD, passa-se na Espanha de 1944, quando a Guerra Civil Espanhola já chegara ao fim com a vitória das forças franquistas. Um grupo de guerrilheiros ainda opõe resistência numa certa região do país e para combatê-lo encastela-se no local uma milícia comandada pelo endemoninhado capitão Vidal (Sergi López). O diretor mexicano Guillermo Del Toro, também autor do roteiro dessa co-produção entre a Espanha e seu país, achou por bem não abordar apenas esse foco temático. Talvez por entender que o tema já tivesse sido muito explorado, ou pela pretensão de fazer algo novo, diferente, introduziu no roteiro um conto de fadas, com a presença de um fauno, que mantém um, digamos, relacionamento com a menina Ofélia (Ivana Baquero), enteada do capitão. E o filme alterna cenas da vida real com cenas do conto de fadas vivido pela garota, com a pretensão de mostrar, igualando-os, os horrores da guerra (embora já encerrada) com os da fantasia. A mistura não deu certo. A questão não é a opção do diretor-roteirista, mas a forma por ele proposta. Não é crível a presença de personagens de um conto infantil (no caso do fauno, mitológico) fazendo parte da realidade, como se o fauno e um homem horrendo, sem olhos, fossem humanos tanto quanto os personagens do outro lado de labirinto. (Aliás, a presença de um labirinto naquela região já é uma forçação de barra.) Seria mais verossímil que as situações vividas por Ofélia fossem fruto de sua imaginação estimulada pela excessiva leitura de histórias infantis, ou de um sonho-pesadelo. Não é o que acontece, e o filme chega quase ao ridículo quando mostra o capitão no labirinto, presenciando o encontro entre Ofélia e o personagem sem olhos, que exige que ela lhe dê em sacrifício o irmãozinho recém-nascido que carrega nos braços e com ele quer fugir daquela região. Da forma concebida por del Toro, "O Labirinto do Fauno" está longe de ser o grande filme que ele está convencido de ter realizado, como afirma, jubiloso, nos "Extras" do disco.

domingo, setembro 09, 2007

O PRISIONEIRO

Este conto foi aqui publicado em 12.04.05. Faz parte do meu livro "Não Enterrarei Os Meus Mortos", editado pela Fundação José Augusto, de Natal, em 1980.
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Eu tinha dormido mal na noite anterior. Por sorte era um sábado, assim eu podia recuperar as horas de sono perdidas. Então, pedi à minha mulher, quando ela se levantou, que trancasse a porta e jogasse a chave pela fresta. Pedi também que depois que as crianças tomassem o café, fossem levadas para passear. Ela fazem muito barulho e não devia ser perturbado. Eu ainda não estava dormindo, ouvi nitidamente a chave ser passada e atirada para dentro do quarto. Ainda ouvi algum barulho das crianças e a advertência da minha mulher de que não deviam perturbar o sono de papai. Pouco depois não ouvi mais nada, então adormeci de vez. Já passava das onze quando acordei. Ainda permaneci deitado uns dez minutos, depois me levantei e me encaminhei para o banheiro. De volta ao quarto, troquei de roupa e calcei os sapatos. Eu cantarolava, estava de bom humor, com o sono em dia e um banho reparador. Estava em forma para a cervejada dos sábados, com um grupo de amigos. Já passava das doze, tinha que me apressar, eles já estariam me esperando. Corri para a porta, me abaixei para apanhar a chave e não a achei por ali. Podia ser a pressa, que nos cega os olhos nessas ocasiões. Sofreei a ansiedade e, lentamente, procurei a chave pelo quarto inteiro. Até debaixo dos móveis esquandrinhei. Babau. Pensei: talvez sonhasse que a chave fora atirada pela fresta da porta, como havia pedido à minha mulher. Quem sabe ela não a tivesse guardado, no caso de precisar retirar alguma coisa do quarto? Ia ser isso. Então, chamei minha mulher. Ela custou a me ouvir, mesmo que gritasse a ao mesmo tempo batesse na porta, pois as crianças faziam barulho e, ainda por cima, o televisor estava ligado. Eu lhe perguntei se havia ficado com a chave, porque não a encontrava. Ela respondeu que jogara a chave pela fresta, do jeito que lhe recomendara. Bem, aqui no quarto é que não está, disse um pouco nervoso. Já procurei embaixo da cama, do guarda-roupa e do penteador, já procurei pelo quarto todo e nada. Pois eu fiz do jeito que você mandou, ela tornou a dizer. A gente era capaz de passar o dia nesse puxa-encolhe, eu dizendo que a chave não estava no quarto, ela repetindo que a havia jogado pela fresta. O certo era providenciar para sair dali.
Então eu lhe pedi que experimentasse outra chave. Ela se afastou, com pouco voltou com outras chaves, que passou a meter na fechadura. Nenhuma serviu. Sugeri que tentasse com as chaves do vizinho. Enquanto isso, imaginava uma maneira de sair. Através das duas janelas - a do quarto e a do banheiro - era impossível, por serem cercadas por uma grade de ferro, externamente. A não ser que se derrubasse a grade de uma das janelas, mas isso resultaria numa solução apenas parcial, já que eu conseguiria sair, mas, com a porta fechada, continuaríamos sem manter ligação com o quarto. A minha mulher reapareceu com um molho de chaves, experimentando-as, sem êxito. Já começava a me enervar. Por desencargo de consciência, dei outra busca minuciosa. Em vão. A minha mulher também estava se enervando e ameaçou surrar as crianças, se continuassem a fazer zoada. Lhe pedi que procurasse manter a calma, para não complicar ainda mais a situação. Foi aí que me lembrei do revólver. Ora, por que não tinha pensado nele antes? Com um tiro ou dois, arrebentava a porta, como vi milhões de vezes no cinema. Eu guardava o revólver no meu escritório, numa das gavetas do birô, trancada, fora do alcance das crianças. Pedi à minha mulher que me desse ele através da janela, mas depressa ela apagou o meu fogo, me lembrando que o havia emprestado ao compadre Atílio. É mesmo. O compadre Atílio teve que fazer uma viagem inesperada e me pediu o revólver. Já nem me lembrava mais.
As horas voavam. Os amigos já estavam reunidos em nossa mesa cativa. Há muitos anos nos reuníamos naquele bar, frequentado por pessoas que gostavam de uma boa música. Cantávamos, batíamos belos papos, saíamos com disposição para enfrentar os cinco dias chocos que tínhamos pela frente. Não fosse por esses momentos felizes, aguardados ansiosamente, minha vida e a dos meus amigos (e de muita gente, creio) perderia toda a motivação. Por aí se vê que não devia estar gostando nem um pouquinho da condição de prisioneiro. A mulher e as crianças estavam almoçando. Não tinha um tico de fome, só queria sair dali e continuava a bolar planos de fuga. Não podia nunca supor que, além da minha mulher, a nossa empregada estava preocupada com a minha prisão e até chegara a ter uma idéia, que comunicou a sua patroa. A mocinha pensou logo no Homem de Aço. Esse tal era um tarzan que estava se exibindo na cidade, capaz, segundo a publicidade, de arrastar um jipe desses antigos e partir um bloco de pedra com as mãos, além de outros prodígios de força física. Para a nossa empregadinha, no homem estava a solução, e o pior é que a minha mulher aceitou a sugestão. Foi duro convencê-la do trabalho que seria localizar o Homem de Aço e que, depois de tudo, ele podia achar uma humilhação ser chamado para botar abaixo uma simples porta.
Pouco depois, o meu vizinho apareceu com uma faca e um martelo. Ao chegar em casa, a mulher lhe contara sobre mim. Um seu conhecido tinha ficado uma vez preso num quarto e alguém abrira a porta com o auxílio de uma faca e um martelo. Vamos ver se dá certo com você também, ele me disse. Apenas por polidez, eu lhe pedi que não se incomodasse, mas ele disse que não era incômodo nenhum me ajudar a sair da enrascada e que estávamos no mundo para nos ajudarmos mutuamente. Taí um cara raro hoje em dia. Fiquei envergonhado por não ter me esforçado para que nosso relacionamento nunca tivesse ido além de um bom dia. Talvez me achasse um grandessíssimo besta, enfurnado em casa ao voltar do trabalho, a cara colada nos livros, em vez de fazer amizade com os vizinhos. Tinha toda a razão de ficar lá na casa dele, se divertindo com a minha sorte, e, no entanto, estava ali suando para abrir aquela porta. O som do martele batendo no cabo da faca repercutia no quarto e eu pensava numa maneira de me penitenciar, por ter desprezado a amizade daquele vizinho. Dagora em diante ele seria um dos amigos que se sentariam à nossa mesa aos sábados, à qual só têm acesso as pessoas por nós escolhidas rigorosamente. E nem seria necessário que ele partilhasse de nossos gostos e de nossas idéias, ele só não participaria de nossos encontros se não quisesse.
Outros vizinhos tinham também deixado suas casas e estavam ajudando o homem, na base de sugestões e no revezamento das marteladas. O corredor devia estar cheio de gente. Pelo tom de voz das pessoas, dava para sentir que elas estavam tensas, tanto quanto eu. Quando finalmente a porta abriu-se, ouvi um grito uníssono de alegria, mais ou menos como acontece quando a energia elétrica retorna aos lares à noite. O meu vizinho escancarou a porta e uma rajada de vento invadiu o quarto, como a anunciar a chegada da liberdade. Minha mulher caiu nos meus braços, as crianças me fizeram festas, os vizinhos também me abraçaram. Eu não disse uma palavra, nem esbocei o menor gesto de retribuição àquelas efusões de carinho. Parecia uma estátua, de tão emocionado.
Natal, 1978.

sexta-feira, agosto 31, 2007

TRIO


1) Foi no lançamento do livro de um contista cearense, radicado em Mossoró, no interior do Estado. Depois de obter o autógrafo do autor, fui me reunir com Bené Chaves, Bartolomeu Correia de Melo e esposa. Conversa puxando conversa, em dado momento entrei no assunto desse chamado politicamente correto. Essa invenção de substituir o uso de certas palavras por outras, com a intenção de não ferir ou melindrar pessoas, ou até de eliminar, se é que isso é possível, preconceitos. Como no caso de chamar de negro alguém de cor. Sei que existe preconceito de cor (ou racial) neste país cada vez mais cheio de bandalheiras, mas muitas vezes se diz "nego", ou "neguinho", ou "nega", ou "neguinha" sem que haja o intuito de ofender. Bom. O certo é que cego passou a ser "deficiente visual", surdo, "deficiente auditivo" e por aí vai. Que me perdoem os que não pensam como eu, mas acho isso , além de bobo, pedante. E foi então que Bartolomeu, que além de excelente contista, (os amigos/amigas visitantes deste blogue já tiveram a chance de apreciar a sua prosa) , a maior revelação de ficcionista no RN nestes últimos anos, é muito brincalhão, divertido, uma pessoa com quem vale a pena conversar, saiu-se com esta: "E corno agora não é mais corno. É chamado de terceirizador de serviços conjugais". "Como é, Bartola", perguntei. Ele repetiu: "Terceirizador de serviços conjugais". Não pude controlar a risada.
2) Ao sairmos de casa, nos deparamos com coisas das mais variadas espécies. E não raro com a má educação daqueles que se sentem donos do mundo quando estão dirigindo. Esta semana presenciei uma cena curiosa. Próximo do final da tarde me dirigia para o centro da cidade, através da rua Trairi, quando fui obrigado a parar o carro em frente a uma escola. Um carro já estava parado à frente do meu. Um grupo de criancinhas, de 3 pra 4 anos, no máximo, iam saindo da escola para atravessarem a rua. Deviam ser umas quinze, dos dois sexos, por aí. Elas caminhavam em fila indiana, cercadas por uma corda, que era puxada por uma professora. De tão curioso vendo aquelas coisinhas (perdoem o "politicamente incorreto") caladas, levadas pela mulher, tive vontade de saltar do carro pra satisfazer a minha curiosidade. Mas era impossível, a rua é movimentada e já havia outros carros atrás. Mas até agora fiquei com aquela cena na cabeça e me perguntando o que ela significava.
3) Passam semanas, passam meses, e a programação dos cinemas dos shoppings Midway e Praia Shopping continua ruim. Já nem me lembro qual foi o último filme que vi na telona. E 99,99% constituída de filmes americanos. Só um ou outro filme brasileiro, quase sempre de uma qualidade que não nos anima a sair de casa. Filme europeu, ou asiático, nem pensar. Só se for um de Almodóvar. Até uns 3, 4 anos atrás, um dos 2 cinemas do Natal Shopping apresentava uma chamada sessão de arte, às terças, 21 horas. Nem sempre eram filmes "de arte", mas, de todo modo o filme ali exibido era uma opção para pessoas que não apreciam baboseiras. Mas resolveram fechar os dois cinemas. E, então, ficamos órfãos de filmes de qualidade. Como não há solução à vista, o jeito é recorrermos às vídeolocadoras ou adquirir DVDs. É uma lástima, como gostava de dizer o meu pai.

sábado, agosto 25, 2007

O ALUCINADO (El/1953)


É junto com "If"... (1968), de Lindsay Anderson, o título de filme mais diminuto da história do cinema, o mesmo, aliás, do livro da escritora espanhola Mercedes Pinto, do qual o filme é adaptado. E o mais bizarro. Como se sabe, "El" corresponde ao nosso "O". "O" o quê? No caso, refere-se ao personagem Francisco Galvan (Arturo de Córdova), e o fato de não haver nenhuma palavra que complete o artigo, como no título em português, oferece ao espectador a oportunidade de situar Francisco em algumas características próprias de um homem mental e psiquicamente enfermo. Não é apenas a questão do ciúme doentio. Na verdade, à medida em que a história se desenvolve, ele vai se desvendando ao espectador como um paranóico, um fetichista, e com uma frequente oscilação de humor no relacionamento com a esposa Gloria (a bonita e fina Delia Garcés), que num piscar de olho pode passar do afeto para a agressividade até física. Além disso, Francisco é vítima de uma idéia fixa, a de recuperar antigos terrenos da família desapropriados.
"O Alucinado" começa numa igreja. É a época da Semana Santa e está sendo realizada a cerimônia de lava-pés. Francisco está entre os homens que auxiliam o padre, colocando a água na bacia. A câmera flagra o olhar atento de Francisco para os pés que são lavados e, em seguida, desloca o seu olhar para os sapatos de Gloria, primeiramente juntos com os de outras mulheres e depois se detendo nos dela.
É bem de Buñuel que a paixão de Francisco por Gloria se inicie numa igreja e que ele seja um homem religioso. O seu anticlericalismo leva-o a criticar a outra face daqueles homens que têm a religião como uma fachada para merecerem o respeito e a admiração das pessoas, sobretudo as do clero. O padre jamais irá acreditar em Gloria quando ela vai lhe relatar a conduta cruel, perversa e violenta do marido. Nem a própria mãe dá credito às suas queixas. Somente Raul (Luís Beristáin), o ex-noivo, acredita nela. Aliás, o reencontro dos dois, a partir do qual, por meio de um flashback, Gloria conta o seu relacionameno com Francisco, me parece algo artificial, inclusive com um toque de melodrama (ela é quase atropelada pelo carro que ele dirige), um escorrego do roteiro escrito por Buñuel, em parceria com Luís Alcoriza.
É na mesma igreja que o estado psíquico e mental do personagem atinge o grau máximo. Em um casal que avista entrando na igreja ele acredita que são Gloria e Raul e vai atrás deles. Vendo que se enganara, deixa-se ficar num banco e, a partir de um dado momento, começar a "ouvir" e a "ver" dos fiéis risadas e gestos zombeteiros. Quando "percebe" que o velho padre, tão seu amigo, participa também da assuada, não se contém e parte para agredir o sacerdote. É quando este conclui que o seu amigo está muito enfermo.
"O Alucinado" é um filme na medida para os que se dedicam à psiquiatria e à psicanálise. Jacques Lacan, por exemplo, tinha um grande apreço por ele, conforme o demonstrou numa longa conversa com Buñuel. Lacan, inclusive, participou de uma sessão do filme, cujos espectadores eram todos seus colegas. É o que o diretor revela no seu livro "O Meu Último Suspiro".
Não podemos saber até que ponto a construção do personagem pertence à autora do romance e a parte que cabe a Buñuel, já que não conhecemos o livro. Mas pelo que conhecemos da filmografia do espanhol, que passou grande parte da sua vida no México e lá faleceu, ele certamente acrescentou ingredientes à composição desse doente Francisco Galvan. E a sua marca autoral é percebível, sobretudo, no propósito de, através do personagem, incomodar, perturbar, causar impacto no espectador, o que ele fez desde o seu primeiro filme, "Um Cão Andaluz", em 1928. Se isso é uma das funções da arte, Buñuel é um dos seus mais expoentes arautos.
Pode-se dizer, sem medo de errar, que a presença forte da religião no filme, que começa e termina num local religioso (no caso do final, num mosteiro, onde Francisco foi parar, depois de se tratar numa clínica), é da responsabilidade dele. E a cena que encerra "O Alucinado", com Francisco vestido de monge, com o capuz cobrindo a cabeça, caminhando em ziguezague, é buñueliana por excelência.

sábado, agosto 18, 2007

20 ANOS SEM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Completaram-se, ontem, 20 anos da morte de Drummond. Não vou falar do poeta, que grande parte da crítica considera o maior da literatura brasileira; não só porque tudo já foi dito sobre a sua poesia, mas também por me faltar a autoridade de inúmeros exegetas que sobre ela se debruçaram. Acho necessário falar alguma coisa do homem, que foi também extraordinário, do pouco que sei dele.
Há poucos dias li no saite do Estadão uma matéria que tratava da amizade de Drummond com o marido da sua filha Julieta, uma amizade que continuou mesmo depois da separação do casal. E que teve início quando o argentino Manuel Graña Etcheverry escreveu a Drummond comunicando a decisão de se casar com a filha dele. É uma carta em que o insólito, o inusitado, o imprevisível dão o tom. É que ao se dirigir ao já consagrado poeta, ao invés de assinalar as suas qualidades, Etcheverry optou por revelar ao futuro sogro todos os seus defeitos. Uma só das suas qualidades, que tivesse, foi omitida. Pois bem. A atitude daquele homem retratando apenas o seu lado negativo conquistou o coração do poeta e este o demonstrou na resposta imediata à carta. Ainda vivo, com 91 anos, Etcheverry fala comovido do amigo. Do respeito deste pela vida até de um inseto ("quando aparecia uma barata, ele a empurrava suavemente com um jornal, até que ela saísse para a rua") e do gesto com que Drummond o distringuiu, escolhendo-o para tradutor da sua poesia para o espanhol.
Drummond, o simples. Uma vez um colega, também mineiro, que viera transferido para Natal, me disse que quando trabalhava no Rio, viu muitas vezes o Poeta esperando pacientemente numa fila enorme para ser entendido. Aqui nesta cidade do Natal existe poeta que não tem condição de amarrar os cordões dos sapatos de Drummond que jamais passaria pelo desconforto de passar muito tempo numa fila. E ele há muito um nome consagrado, reverenciado até pela crítica estrangeira. Quando quiseram colocar uma placa com o seu nome na rua onde morava em Copacabana, não houve quem o fizesse aceitar essa pequena, mas justa, homenagem. Também recusou o prêmio de Intelectual do Ano que lhe outorgaram em certa ocasião. E convidado dezenas de vezes para ingressar na Academia Brasileira de Letras, manteve-se firme na sua decisão de não se tornar um "imortal".
Drummond, o corajoso. Em 1965, ou 66, Nara Leão, outra corajosa, criticou a ditadura militar e correu o risco de ser enquadrada na chamada Lei de Segurança Nacional. Ele, nas páginas do Jornal do Brasil, em que escrevia a sua crônica semanal, fez um longo poema defendendo Nara e prestando-lhe a sua valiosa solidariedade. Quando completou oitenta anos, recebeu um balaio de cartas parabenizando-o pela data e respondeu a todas. Um pouco antes este beradeiro de Canindé lhe enviou um livro e dele recebeu uma cartinha, pouco mais de um bilhete, agradecendo a remessa do livro e me estimulando com um generoso elogio.
Em meio a várias comemorações pelos vinte anos da morte de Drummond, será lançado, no próximo ano, um documentário sobre ele, concebido e realizado pelo neto Pedro e Maria de Andrade, filha do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, o mesmo que, inspirado num poema de Drummond, realizou o seu melhor filme, "O Padre e a Moça".
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Drummond e "A Aventura", de Antonioni.
O Poeta era um grande cinéfilo. Greta Garbo era o seu xodó entre as atrizes. Adorava Chaplin, sobre quem escreveu o belíssimo "Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin". A título de curiosidade, veja-se abaixo o que ele escreveu sobre o filme do cineasta recentemente falecido. O comentário faz parte do livro "O Observador no Escritório" (Editora Record/2006), uma publicação de um diário que ele manteve entre os anos de 1943 a 1977.
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"Outubro, 29 [1961] - L' Avventura, de Antonioni, no Art-Palácio. Sem dúvida um filme excepcional, mas que nos deixa insatisfeitos. A mestria técnica e a beleza das imagens servem a uma história que não chega a impressionar, como se faltasse um elemento de vida autêntica às personagens ou ao diretor que as movimenta. A busca de Ana, na ilha, não é uma busca, mas um e vir inconvincente. De resto, em nenhum momento do filme tive a sensação de busca. Antonioni descreve os movimentos do amor sem participar deles nem pretender, aparentemente, que os espectadores participem. Não obstante a extensão do filme e a monotonia de algumas cenas, mantive-me interessado - não sei como consegui. Talvez nos sintamos obrigados a admirar um criador de arte, mesmo quando ele não nos satisfaz plenamente".

sábado, agosto 11, 2007

A POESIA DE LI PO


O amigo Horácio Paiva, poeta, de quem já publiquei aqui diversos poemas, me enviou 4 poemas do poeta chines LI PO (701-762), com tradução de José Jorge de Carvalho. Ei-los.
O TEMPLO DO CUME
Passo esta noite no Templo do Cume.
Aqui eu poderia apanhar as estrelas com a minha mão.
Não ouso alçar a voz em meio ao silêncio,
com medo de perturbar os habitantes do céu.
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A MONTANHA CHING-TING
Bando de pássaros revoaram alto e distante;
um floco solitário de nuvens cruzou o azul.
Eu me sento sozinho com o Pico Ching-Ting,
imponente em seu cume.
Jamais nos cansamos um do outro,
a montanha e eu.
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OLHANDO AS CATARATAS NO MONTE LU
A luz do sol queima o Pico do Incenso
e faz surgir uma fumaça violeta.
De um ponto distante observo a catarata
mergulhar no rio imenso.
Vejo as águas em vôo descendo mil metros em linha reta
e me pergunto se não é a Via Láctea que se precipita
da nona esfera do céu.
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BEBENDO À LUZ DA LUA
Um jarro de vinho entre as flores,
bebo sozinho - nenhum amigo me acompanha.
Alço minha taça, convido a lua
e minha sombra - agora somos três.
A lua não bebe
e minha sombra apenas imita meus gestos.
Mesmo assim, são elas as minhas companhias.
É primavera, tempo de festa -
canto, a lua escuta e cintila;
danço, minha sombra se agita, animada.
Enquanto estou sóbrio, juntos estamos os três;
quando me embriago, cada um segue seu rumo.
Selamos uma amizade que nenhum mortal conhece.
E juramos nos encontrar no mundo além das nuvens.

sábado, agosto 04, 2007

BERGMAN E ANTONIONI


Conheci primeiro o cinema de Antonioni, com aquele que é considerado por muita gente o seu maior filme: "A Aventura". E não gostei. Por certo porque carecia do conhecimento estético e da visão crítica daquele tipo de filme, embora já tivesse o interesse voltado para filmes que não visassem apenas ao sucesso comercial. Isso ocorreu quando ainda morava no Ceará e só uns 40 anos depois fui revê-lo em DVD, e aí pude perceber a sua grandiosidade. A única restrição que faço a ele, nas duas vezes em que o revi, é quanto à extensão da sequência na ilha, que me parece um tanto longa. Com poucos dias da minha chegada a Natal, vi "A Noite", que foi debatido numa reunião dos sócios do Cineclube Tirol. Não fiquei tão entusiasmado quanto os meus colegas pelo filme, mas a impressão foi infinitamente mais favorável do que sobre "A Aventura", visto 2 ou 3 anos antes. E vieram "O Eclipse", "O Grito" (que coloco logo depois de "A Aventura"), "Blow-Up" (exibido na sessão do Cinema de Arte promovido pelo Cineclube Tirol, antes de ser lançado no circuito comercial), "O Dilema de Uma Vida" e outros.
Deve ter sido em 1966 que fui apresentado a Bergman. Era "A Fonte da Donzela", que, se não me decepcionou, não me entusiasmou. Esperava muito mais de um cineasta de quem ouvia as melhores referências. E quando o revi em vídeo, a impressão foi quase a mesma. Tenho a convicção, e acho que não é só minha, que é um dos filmes menores dele.
Bergman e Antonioni. Qual foi o maior? Difícil dizer. Aí é uma questão subjetiva, pessoal. A mim, por exemplo, agrada bem mais o cinema do sueco, mas gosto de alguns filmes do italiano, inclusive de sua estréia no longa, "Crimes d'Alma", que vi em vídeo. O que é inquestionável é que ambos fazem parte do Olimpo cinematográfico. Sem eles, o cinema-arte teria sido menos rico. Quais outros dos seus pares seriam capazes de criar obras como as já citadas de Antonioni, e, de Bergman, "Morangos Silvestres", "O Silêncio", "O Sétimo Selo", "Persona", "Gritos e Sussurros", "Noites de Circo", "Fanny e Alexandre", além de outras inferiores a estas, mas, ainda assim, de qualidade?
Um fato que chama a atenção em Bergman é que sendo também um artista de teatro, tendo dirigido, segundo consta, 125 peças, os seus filmes não tenham a influência da linguagem teatral, como acontecia com alguns filmes de Visconti, também ligado ao teatro, inclusive o operístico. E curioso: o Bergman de filmes que abordavam temas como a morte, a velhice, os conflitos familiares e amorosos, os sentimentos, foi capaz também de fazer rir quando tentou a comédia. Só conheço uma delas, mas é um belo exemplo daquele tipo de humor fino, inteligente. Estou me referindo a "Sorrisos de Uma Noite de Amor". Já Antonioni me parece improvável que se saísse bem numa obra de humor e acredito que essa experiência jamais lhe passou pela cabeça.
Por outro lado, uma certa parte da filmografia de Antonioni, a começar pelos curtas, revela uma preocupação social (em "O Grito", p ex, já perto do fim, há um movimento dos habitantes da cidadezinha contra a construção de uma pista para aviões, infiltrando-se no drama existencial do personagem principal), e até política, a qual não interessava a Bergman. (Só em "O Ovo da Serpente", rodado na Alemanha, ele se engajou num projeto político, ao mostrar o embrião da barbárie nazista. E se em "Vergonha" existe um posicionamento anti-belicista, este é assumido pelo efeito moral que uma guerra, nunca mostrada e sem local nem época identificados, causa a um casal de artistas, que é progressivamente envolvido pelo conflito.)
Qual o maior Bergman? Aí de novo a questão subjetiva. Pode ser "Persona", um exemplar confronto entre uma enfermeira que assiste uma atriz-paciente que abdica do uso da voz e do contato com o mundo, com interpretações das maiores já vistas no cinema de Bibi Andersson e Liv Ulmann, feito com um rigor formal e estilístico - um filme em que, inclusive, é exposto o processo da criação artística. Pode ser "Gritos e Sussurros", uma obra perturbadora que, em alguns momentos, chega a causar mal-estar, com um maravilhoso emprego da cor vermelha. Esta, como muito bem observou Moacy Cirne em seu livro "Luzes, Sombras e Magias - Os filmes que fazem a história do cinema" (Sebo Vermelho/2005), se converte em um personagem, revestido de uma "significação emblemática". Personagem, sim, por envolver a vida daquelas três irmãs, uma já condenada à morte. Uma cena de maior impacto da presença do vermelho é aquela em que Ingrid Thulin, na cama e fitando provocadoramente o marido à sua frente, lambuza o rosto com o sangue retirado da vagina que ela ferira com um pedaço de vidro. Uma cena que comporta mais de um tipo de interpretação.Pode ser "Morangos Silvestres", uma análise da velhice e da morte, concentradas na figura de um velho professor, talvez o seu filme mais lírico, e, certamente, o mais "popular". E podem ser outros. A cada um o seu. Para ele, segundo li num blogue, os seus preferidos eram "Persona" e "Gritos e Sussurros".
Esses dois grandes artistas, por um desses acasos da vida, faleceram no mesmo dia, na última segunda-feira; Bergman pela manhã, Antonioni à noite. Entrevistado por um jornal italiano, Woody Allen, tiete de Bergman, revelou que este não desejava morrer num dia ensolarado. Teria se realizado o seu desejo?

sábado, julho 21, 2007

O CÃO CHUPANDO MANGA

Esta é uma expressão usada aqui em Natal. Aliás, quase não mais usada. Há muito tempo que não ouço alguém dizê-la "O cão chupando manga" é a pessoa que faz coisas de que até Deus duvida, algumas que não são exatamente admiráveis. Um sujeito esperto, inteligente , entre outros talentos. Também uma expressão que já não ouço é "de rosca". Rosca, aquela parte de um parafuso. Diz-se de uma coisa que está demorando a ser executada. Me lembro que a ouvia, ainda nos anos 1960, quando estava numa lanchonete. O freguês pedia o seu sanduíche, o bicho demorava a chegar, aí o sujeito, com uma fome daquelas, reclamava do garçom. "Puxa, como tá demorando. É de rosca"?
Sou um apaixonado por essas expressões populares. E sempre que, lendo um livro, encontro alguma que não conheço, não só a sublinho, como a anoto. Porque os escritores gostam de usar palavras ou expressões que estão na rua, nos bares, nas conversas de pessoas, das menos letradas às cultas. E grandes escritores. Machado, o nosso maior deles, às vezes fazia um intervalo na sua linguagem elegante e colocava uma frase popular. Em mais de uma ocasião, parecia ser a sua preferida, ele citou esta: "vender azeite às canadas". Essa expressão diz-se de alguém furioso com algo que lhe aconteceu. Curioso é que ela é de origem pernambuca. Soube disso uma vez no balaiovermelho, (hoje chamado de Balaio Porreta 1986) de Moacy Cirne. Estranhei a menção a ela do carioca Machado, que, pelo que me consta, nunca esteve em Pernambuco. Acho que, a exemplo de Nelson Rodrigues, nunca saiu do Rio. Sou forçado a acreditar que ele a tenha ouvido do amigo Joaquim Nabuco, que era daquelas bandas. Outro grande escritor, o velho Graça, que não tinha a elegância de Machado, era mais afeito a palavras e expressões populares. Uma que ele usou com alguma frequência foi "ossos de minhoca". José J. Veiga, o fabuloso goiano que escreveu, entre outros, o belíssimo livro de contos "Os Cavalinhos de Platiplanto", também gostava de fazer isso.
Outro dia, lendo o último livro de Luiz Vilela, "Boris e Doris" (uma novela toda escrita em diálogos), deparei-me com esta pergunta que Boris faz a Doris: "Você está com a avó atrás do toco"? Sem nunca ter lido ou ouvido essa expressão, corri para o Aurélio e, por sorte, ela estava lá. "Amanhecer com a avó atrás do toco" refere-se a alguém que acordou de mau humor, irritado. É originária de Minas, terra de Vilela. E me lembrei de Claudinha, de transmimentosdepensações, que é também daquele Estado. Será que ela conhece esse dito popular? Como é uma expressão que parece ter caído em desuso (Doris ri com a pergunta , afirmando que há muitos anos não a ouvia), pode ser que não. Mas creio que os seus pais a conhecem.
Voltando a Natal, havia outra expressão popular que ouvia com certa frequência, mas, a exemplo das outras duas citadas, deixou de ser dita. "Casar Bebé com Memé", ou seja, quando há uma forte afinidade entre duas pessoas, ou, o mais apropriado, quando duas coisas combinam à perfeição.
É uma pena que essa fala do povo, principalmente do nordestino, esteja desaparecendo. Hoje a pessoa que mora na cidade mais atrasada fala a gíria, as expressões do Rio e de São Paulo (as deste em menor escala), que ela ouve nas novelas que a Globo anestesia cada vez mais o telespectador analfabeto ou semi-analfabeto. E o governo (não é só o atual) "nem tem ligo".
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Amigos e Amigas visitantes deste blogue. Na próxima segunda estarei fazendo uma cirurgia de catarata num dos olhos. Na segunda seguinte, será a vez do outro olho. Assim, o "Luzes da Cidade" ficará sem ser atualizado até a minha completa recuperação. Até a volta.

sábado, julho 14, 2007

UMA MULHER CHORANDO


Este conto foi aqui publicado em 7.11.05. Sai outra vez, não apenas por não ter um assunto novo, mas para uma avaliação ou reavaliação dele. Vamos lá.
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Três vezes perguntara por que ela estava tão calada. E ela sempre a responder que não era nada. Na terceira vez, quando perguntou se estava ressentida com algo que lhe fizera, Helena denotou, no tom ríspido de voz, um começo de irritação com a inquirição dele. Sentindo a reação dela, Ramiro achou prudente parar com aquelas perguntas. O certo seria buscar algum assunto, por mais trivial que fosse, para tirá-la daquele mutismo que o desconfortava. Como tinha sido o dia dela no trabalho? Bem, ela respondeu, lacônica. Afinal convencido de que não podia arrancar mais nenhuma palavra de Helena, ele resolveu também se calar. Assim mudos passaram o restante do jantar, um só abrindo a boca para pedir um prato que estivesse mais ao alcance do outro.
Ao deixarem a mesa, Helena foi escovar os dentes, enquanto ele foi ligar a televisão. Depois ela iria para junto dele. Era assim todas as noites, até mesmo quando iam sair. Mas naquela noite, quando voltou do banheiro, ela disse que tinha um "horror" de provas para corrigir e não podia perder tempo. "Mas não dá pra você ficar nem um pouco"? "Não dá. Eu tenho que devolver as provas amanhã". A atitude dela deixou-o ainda mais preocupado. Ela nunca procedera daquela maneira. Algum problema a estava perturbando, mas ela não queria revelá-lo. E enquanto as imagens do telejornal iam passando a sua frente, ele não se dava conta do que elas mostravam, nem ouvia direito as falas, pois o pensamento se concentrara na busca de um ato seu, um gesto, uma palavra áspera, que a tivessem magoado. Vasculhou a mente, tentando rememorar fatos do dia, da noite anterior, até mesmo quando estavam na cama nos momentos de amor. Em vão. Nada. O melhor é esperar até amanhã, talvez ela me diga o que está acontecendo. E continuou vendo, sem ver, o que se passava na televisão.
Ao entrar no quarto, Helena trancou a porta, mas não foi para o birô. Dirigiu-se para a janela. Mas, como o marido diante da tevê, ela não "via" a profusão de luzes iluminando aquela pequena parte da cidade. Meditava sobre a sua vida. A bem dizer, continuava uma meditação que começara já há algum tempo. E a cada dia que passava, mais tomava consciência da falta de sentido em que a sua vida se transformou com a irrealização de sonhos por tantos anos acalentados, a morte das ilusões, a perda da esperança. E o pior: sem vislumbrar um aceno sequer de mudança. E o casamento? Todos os conhecidos, amigas, os familiares colocavam Ramiro num altar, ela tirara a sorte grande ao encontrar um homem de muitas qualidades, trabalhador, bem-educado, excelente profissional e, por cima, sempre apaixonado pela esposa. Sim, Ramiro podia ser tudo isso, mas havia algo nele que Helena não sabia discernir (e nem eram os pequenos defeitos que toda pessoa, mesmo as melhores, tem), que a fazia não se sentir a mulher tão invejada. Quem sabe se a culpa não era dela? E das outras coisas era também culpada? Da profissão que já não a satisfazia, da falta de estúmulo para continuar lecionando? Do convívio com a maioria dos colegas e das amigas? Teria ela toda a culpa por não encontrar mais naquelas pessoas o que buscava para uma existência mais fácil de ser levada?
Tudo isso tinha se incrustado à vida de Helena, como uma dor persistente, e nesses últimos dias ela vinha se sentindo cada vez mais infeliz, embora procurasse disfarçar, sobretudo de Ramiro, todo o sofrimento. Mas naquela noite nem a ele conseguira enganar. Que assim seja, disse para si mesma.
E, de repente, enquanto olhava a parte da cidade inundada de luz, voltou-lhe à lembrança um fato que presencisara em sua adolescência. Um fato ocorrido há muitos anos na vida de uma pessoa, que nunca saíra de sua mente. Vez por outra se via a recordá-lo e não foram poucas as pessoas, através dos anos, às quais contou o sucedido. Até a Ramiro ela contou. Era uma mulher da sua cidade. Uma fina doceira. Seus doces, das mais variadas espécies, eram motivo de comentários não só naquela cidade, mas nas cidades vizinhas. Até à capital do estado a sua fama havia chegado. Solteira, devia ter, na época, quarenta e poucos anos. A família de Helena era, como as demais famílias da mesma classe social, freguesa de Amália. E uma tarde a mãe de Helena mandou-a à casa de Amália, para comprar o doce de leite de que o marido tanto gostava. Lá chegando, Helena bateu palmas três vezes, ninguém apareceu. Nem Amália, nem uma sobrinha que morava com ela, tampouco a empregada. A porta da frente estava só encostada. Helena, acostumada a frequentar a casa para visitar a sobrinha de Amália, foi entrando enquanto dizia sou eu Amália. Tão logo pôs os pés dentro da casa, deparou-se com uma cena que a deixou entre chocada e penalizada. À mesa das refeições estava Amália. A cabeça curvada, as mãos tapando quase todo o rosto (só os olhos descobertos), a doceira chorava. E o choro não era silencioso - a mulher chorava como uma criança quando apanha. De tão intenso o choro, os braços tremiam. "Amália, o que foi que houve"? Helena chegou para perto dela e repetiu a pergunta, mas Amália parecia não dar pela presença dela e continuava a chorar. "Aconteceu alguma coisa com Eliane"? E Amália sem responder. Helena pôs a mão sobre a cabeça dela e fez um afago. Durante um minuto ou mais manteve a mão sobre a cabeça de Amália, como se a leve pressão da mão pudesse aliviar a dor da mulher. Depois foi saindo devagarinho, olhando para a pobre mulher, a quem sempre vira alegre e tão disposta.
E ao recordar mais uma vez a cena lastimável, Helena pôde compreender, depois de tantos anos, o sofrimento daquela mulher numa tarde longínqua. E sentiu-se na pela de Amália, a fina doceira, a mulher tão elogiada e respeitada pela sua arte na culinária. Então, de repente, veio-lhe, incontrolável, a vontade de repetir o ato de Amália. E lágrimas lhe vieram ao rosto. Helena chorava. Mas, ao contrário do choro de Amália, o seu era silencioso. E assim ficou por muito tempo, deixando as lágrimas banharem-lhe o rosto.

sábado, julho 07, 2007

UM FILME-ROMANCE

Em seu livro "O Cinema" (Brasiliense/1991), escreveu André Bazin que "Paisá [Rosselini] é provavelmente o primeiro filme que equivale rigorosamente a uma antologia de contos". E acrescenta: "A duração de cada história, a estrutura, sua matéria, sua direção nos dão pela primeira vez a impressão exata de um conto". Já "Hannah e Suas Irmãs" ("Hannah and Her Sisters"/1986), de Woody Allen, passa a impressão de que foi concebido como um romance. A narrativa é constituída de partes bem delimitadas, cada uma delas contendo um título. E o fato de um "capítulo" ter por título um verso de um poema de e.e. Cummings e outro uma frase de Tolstoi reforça essa impressão. Acrescente-se que é possível que o roteiro tenha se inspirado na peça "As Três Irmãs", de Tchecov, que foi também um escritor de contos, alguns dos quais contendo as dimensões de uma novela (ou um romance curto).

Reafirmando o destaque no próprio título, Hannah (Mia Farrow) é o personagem central do filme. É a líder daquela família, ora apartando uma briga entre os velhos pais, ora servindo de confidente ou conselheira para as irmãs Lee (Barbara Hershey) e Holly (Dianne Wiest), mas uma pessoa doce, amável, que, apesar de amar o segundo marido Elliot (Michael Caine), mantém uma boa relação com Mickey, o primeiro marido (Allen). O seu personagem é importante até por uma tensão (involuntária de sua parte) no seu casamento com Michael, quando este tem uma paixão avassaladora pela cunhada Lee, que vive com o insociável pintor Frederick (Max Van Sidow). (Uma cena marcante, pelo toque de lirismo e ternura, mostra os dois dançando em um apartamento de um hotel no "capítulo" Tardes.)

Estamos diante de uma comédia romântica, como aquelas que o cinema americano fazia tão bem nas décadas de 1930 e 1940, inclusive com o final feliz. Mas há também aquele humor inerente aos filmes de Allen, principalmente naquela época em que os seus filmes tinham um vigor criativo que foi arrefecendo ali pela metade dos anos 1990. O personagem de Allen , então, é de nos levar às risadas, com a sua insuperável hipocondria. E não faltam as piadas inteligentes, sempre mirando no modo de viver e de se comportar do americano.

Allen ainda presta algumas homenagens. A Bergman, de quem é, sabidamente, uma tiete, na escolha do ator Max Von Sidow, que trabalhou em vários filmes do mestre sueco. Aos Irmãos Marx, exibindo uma parte de um dos seus filmes, ao qual Michey vai assistir depois de uma tentativa de suicídio (por achar que está sofrendo de uma doença incurável) e sai do cinema com a alma leve e achando que a vida merece ser vivida. (Aí também poder-se-ia aventar a hipótese de que a homenagem se estenderia ao próprio cinema.) E sobre o título? Seria uma homenagem ao Visconti de "Rocco e Seus Irmãos"? Embora me parece que seja Fellini o diretor italiano preferido de Allen, pode ser que ele tenha querido reverenciar o esteta Visconti, inclusive porque há, no filme, a apresentação de uma ópera de Puccini. E, como sabemos, Visconti, que empregou o seu gênio no teatro dramático, também o fez no operístico.


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CURIOSIDADES/INFORMAÇÕES SOBRE O FILME


1. Maureen O'Sullivan que interpreta a mãe de Hannah era mãe de Mia Farrow. Mia, cujo nome é Maria de Lourdes, é fruto do casamento de Maureen com o diretor John Farrow. Nos primeiros anos de sua carreira, Maureen trabalhou em filmes de Tarzan, fazendo o papel da Jane.

2. Este foi o derradeiro filme de Lloyd Nolan, que atua como pai de Hannah. Nolan foi um bom coadjuvante, que apareceu, com frequência, em filmes das décadas de 1940/50.

3. "Hannah e Suas Irmãs" ganhou os Oscars de Melhor Ator Coadjuvante (Michael Caine), Melhor Atriz Coadjuvante (Dianne Wiest) e Melhor Roteiro Original, escrito pelo próprio Woody Allen.

sexta-feira, junho 29, 2007

TRIO


1) Semana passada vendo o blogue do crítico de cinema Luiz Zanin, no Estadão, me deparei com uma matéria que revela o avassalador domínio do cinema americano no Brasil. Os dados são impressionantes. Segundo o crítico, o nosso país possui 2.050 salas de cinema. Pois bem. Naquela semana, dessas 2.050 salas, 582 exibiam "Piratas do Caribe 3", 320 salas exibiam "Homem Aranha 3" e 705 (setecentas e cinco!) "Shrek 3". Portanto, apenas 438 salas restavam para exibir outros filmes, dos quais a grande maioria se supõe era de origem da terra de Mister Bush. O título do texto do Sr. Zanin era "Será que ninguém reage"? Pois é. Será que ninguém reage contra essa enxurrada de filmes americanos em nosso país? E o pior é que, uns oitenta a noventa por cento dessas produções de Hollywood são de má a péssima qualidade.
2) Sou um apaixonado pela literatura policial. E entre os meus autores preferidos está o belga Georges Simenon. Simenon que, ao contrário dos seus pares (exceção, talvez, de Agatha Christie) escreveu obras fora do gênero policial. É um autor elogiado por, entre outros, André Gide e Henry Miller.
Há poucos dis terminei de ler um livro interessantíssimo de Simenon: "Memórias de Maigret". Maigret, como sabem os leitores do autor, é o personagem dos seus livros policiais. Uma grande criação, assim como o Poirot, de Agatha Christie, e o Sherlock Holmes, de Conan Doyle. É um livro interessantíssimo, curiosíssimo e, presumo, original na sua estrutura. Publicado em 1951, o livro mostra Maigret como se fosse, não o personagem de Simenon, mas uma figura real. O autor belga se põe na pele do seu personagem, que se dispõe a narrar fatos de sua vida pessoal e profissional. Entre as revelações mais interessantes estão o primeiro encontro de Maigret com Simenon na delegacia em que o primeiro trabalhava, o relato de como Maigret conheceu a moça que viria a se tornar sua esposa e os atores que intepretaram Maigret no cinema. Ele fala de Pierre Renoir, irmão de Jean, Harry Baur, Albert Préjean e o grande Charles Laughton. Pierre Renoir fez o papel de Maigret no filme do seu irmão , "La Nuit Du Carrefour". Há outras revelações atraentes. O livro é editado pela L & PM, em formato de bolso, de 2006.
3) Também no blogue de Luiz Zanin vi o resultado de uma consulta feita pelo American Film Institute a críticos e cinéfilos sobre quais seriam os 100 (cem) maiores filmes americanos de todos os tempos. Deu "Cidadão Kane" na cabeça, como já havia dado há 10 anos anos quando aquela entidade promoveu idêntica consulta. Impossível citar, aqui, todos eles. Vou listar apenas os 12 primeiros, mas, antes, quero fazer uma ressalva. Discordo da inclusão, entre os dez, de "Casablanca", ainda que goste muito desse filme, mas não ao ponto de colocá-lo nem entre os 50 ou 60 maiores filmes americanos já realizados, "E O Vento Levou" , "A Lista de Schindler" e "O Mágico de Oz". Eis os 12.
- Cidadão Kane
- O Poderoso Chefão 1
- Casablanca
- Touro Indomável
- Cantando na Chuva
- E O Vento Levou
- Lawrence da Arábia
- A Lista de Schindler
- Um Corpo Que Cai
- O Mágico de Oz
- Luzes da Cidade
- Rastros de Ódio.
EM TEMPO - Tinha me esquecido de "Lawrence da Arábia". Também não o incluiria, talvez nem entre os 100, em que pese a sua beleza visual/plástica, Enfim, lista é aquilo que todo mundo sabe. Questão de gosto y otras cositas más.

sábado, junho 23, 2007

E SE...

Este conto foi aqui publicado há mais de 2 anos. Sem alterações, sai de novo para avaliação daqueles que não o leram naquela ocasião e para reavaliação dos que já o conhecem.
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Há uns dez minutos ele está observando a mulher em seu sono intranquilo, a remexer-se, ora virando-se para o lado, ora voltando à posição de costas para a cama. A nudez da mulher é resguardada apenas pela calcinha branca, mas esta, transparente e bem ajustada ao corpo, deixa-lhe quase exposta a bunda, quando ela está de costas para ele. Enquanto a observa, ele procura precaver-se de qualquer sinal que o indique estar desperto, estático naquela posição, para que a mulher não acorde do sono inquieto e venha tirar-lhe a concentração nas palavras que ela disse há pouco, quando seus corpos estavam entrelaçados.
Pouco depois sentiu vontade de urinar. Levantou-se e, com cuidado para não fazer ruído, foi para o banheiro à sua esquerda, a três passos da cama. Ficou sentado no vaso, para continuar olhando para a mulher, cujo corpo conseguia distinguir graças a um pouco de iluminação vinda da rua através da porta aberta do pequeno terraço, à direita da cama. Quando terminou de urinar, decidiu deixar o quarto. Palmilhou-o silenciosamente, tendo a mesma cautela ao abrir a porta. Ao passar pela porta do quarto das crianças, ouviu o ressonar de uma delas. Na sala de visitas, dirigiu-se à janela e abriu-a. Uma aragem invadiu a sala, tocando-lhe o rosto, e ele sentiu um inesperado prazer, como se recebesse a carícia de uma mulher. Lá em baixo a rua estava silenciosa e deserta, tão diferente das horas do dia.
A pergunta da mulher voltou a assediá-lo. "E se eu gostasse de trepar com ele, o que é que você fazia?" Não entendia a razão de conferir um valor real àquelas palavras (ao ponto de lhe roubarem o sono), se fora ele que as criara para a mulher dizê-las. Como outras sem conta ao longo daquele casamento. (Desde os primeiros dias de casados, acostumara a mulher a falar certas coisas durante o ato sexual. Isso o deixava excitado.)
Mas, na verdade, fora o comportamento da mulher naquela noite que o perturbara. Ela fizera a pergunta, como ele ordenara, ele não disse nada, e foi aí que aconteceu o inesperado: ela repetiu a pergunta, com uma pequena variação: "Hem, e se eu gostasse da pinta dele, o que é que você fazia?" A pergunta era a mesma. Mas estranhou que ela a repetisse, parecendo-lhe demonstrar um interesse incomum, e ficou com a sensação de que o seu silêncio (também um fato inédito nos jogos entre eles) tenha-a levado à desconfiança de que ele não estava simulando naquele momento, e sendo assim, ela quisesse saber como ele reagiria a uma situação real e não apenas imaginada para tornar mais excitante o ato sexual. Pensou em perguntar, na hora e depois de terminarem, a razão daquela segunda pergunta, mas acabou desistindo.
E agora estava ali na madrugada insone, olhando a rua, pela qual passava um carro em marcha lenta, como se o motorista não quisesse ferir o silêncio. Quis consultar o relógio, esquecendo que o deixara no quarto. Sabia que não era muito tarde, mas que o sono já não viria sem a ação de um medicamento.
Ao ir pegar o remédio no armário do banheiro, encontrou a mulher saindo de lá. Tinha vestido uma blusa, talvez para se proteger do vento nas costas. "Perdeu o sono, bem?" Ele disse que sim e que ia tomar um sonífero e ver um pouco de televisão. Quando ainda estava no banheiro, ouviu-a soltar um longo bocejo.
Dia seguinte, como de praxe, ele saiu com a mulher e os dois filhos. Deixou primeiro os filhos na escola, depois a mulher no trabalho. Se beijaram, disseram tchau, a mulher saiu do carro, ele ficou observando-a retirar-se. Ao passar por um homem, este se virou e pôs-se a olhar para ela. Lá do carro ele não despregou os olhos do estranho, que só retomou a caminhada quando ela entrou num prédio. Ligou o carro e foi embora.

sexta-feira, junho 15, 2007

O PRIMEIRO FILME DE CADA UM


Na década de 1990 eu mantive por alguns meses uma coluna de cinema no "Diário de Natal". Era uma coluna semanal, que saía às sextas-feiras. Entre textos sobre filmes e diretores, realizei umas (poucas) entrevistas com amantes do cinema. Eram apenas sete perguntas feitas a cada pessoa, devido à limitaçao do espaço a mim reservado. Entre elas havia a curiosidade de saber se o entrevistado se lembrava do primeiro filme a que assistira - o seu primeiro contato com o cinema. Todos se lembravam, evidente que de uma maneira vaga, um fato normal na memória das pessoas, impossível de ser clara depois de tantos anos decorridos.
Fiquei surpreso, porque não me lembro do meu primeiro contato com esta arte que tanto amo. A minha memória, que é relativamente boa para fatos sucedidos na infância, não funciona nesse quesito - nem um tiquinho de idéia de qual tenha sido o primeiro filme que vi. A certeza que tenho é que foi no Cine Canindé. Isso está fora de questão. E deve ter sido um seriado, ou um faroeste daqueles que, nos Estados Unidos, são classificados de "Z" (estrelados por Charles Starrett, o Durango Kid, Roy Rogers, Johnny Mac Brown, entre outros) . Mas qual? Me socorre. memória. Confesso que senti uma certa inveja daqueles entrevistados. Como gostaria de me lembrar, uma cena que fosse, do meu primeiro filme.
Em seu livro "Escritos Sobre o Cinema", o diretor Jean Renoir relata o seu primeiro encontro com a arte da qual ele se tornou um dos nomes mais importantes. A arte que ele dignificou com filmes da estatura de "A Grande Ilusão" e "A Regra do Jogo". Ele era interno de uma escola e, num domingo remoto de sua infância, ali mesmo assistiu a um filme trazido por um desses exibidores ambulantes. Renoir nunca esqueceu a experiência que lhe foi maravilhosa. E, comovido, afirma que daria tudo pra rever aquele filme.
Eu me lembro, sim, do filme que vi no mesmo dia em que cheguei a Sobral, no interior do Ceará, para assumir o emprego no Banco do Brasil. Me lembro até do nome do cinema: Cine Alvorada, que ficava de frente para uma pracinha e tinha, ao lado, um bar chamado Crepúsculo. O filme? Ah, sim. Era "Os Caminhos Secretos", uma aventura de espionagem estrelada por Richard Widmark, ator ainda vivo com seus 92 anos. Como também me lembro do primeiro filme visto em Natal, quando aqui cheguei em 30 de julho de 1965. Não foi uma boa estréia, essa minha em Natal. O filme se intitulava "Pão de Açucar", com o canastrão Rossano Brazzi e Rhonda Fleming, uma bonita ruiva que teve um certo sucesso na década de 1950. O filme foi rodado no Rio e era falado em português. Brazzi e Fleming tiveram as suas vozes dubladas. E me lembro bem que, tal como o filme, a dublagem não era boa. Principalmente com a voz de Brazzi. Em certos momentos não havia uma sincronia entre a voz do ator com a do dublador. Sou obrigado a confessar que, mesmo sem nunca ter gostado de Brazzi, tive uma certa pena dele. Mas pouco depois de comer (sem gostar) esse pão, veio a compensação, quando vi "A Grande Ilusão". Foi num sábado, no Rex, numa sessão do Cinema de Arte promovida pelo Cineclube Tirol. E, mais ou menos, na mesma época, vi "O Professor Aloprado", de Jerry Lewis, que me impressionou muito, e "A Noite", de Antonioni.
E você, amigo (a) visitante deste blogue, se lembra do seu primeiro filme?

sábado, junho 09, 2007

CINEASTAS VERSUS CRÍTICOS


A relação entre cineastas e críticos foi sempre conflituosa. Não é impossível que um crítico e um cineasta se tornem amigos pela vida inteira, mas isso só pode se dar se o primeiro for um incondicional admirador do segundo e jamais deixe de regatear louvores aos seus filmes, até mesmo os menos bem realizados. E são casos isolados. A regra é que os dois convivam como cachorro e gato. E não só no cinema essa relação entre o criador de uma obra e o que a analisa é marcada por conflitos que chegam até à agressão física; nas demais artes o problema existe, principalmente na literatura.
Um programa a que assisti no EuroChannel nesta semana mostra perfeitamente a dificílima convivência entre diretores e críticos. O programa é bem realizado. Dividido em partes, cada uma apresentando um título, alterna depoimentos de integrantes das duas categorias. Entre os diretores, Almodóvar, Wim Wenders, Woody Allen, Ken Loach, Manoel de Oliveira, entre os mais conhecidos e prestigiados. Há opiniões e revelações muito interessantes de ambas as partes e vou reproduzir algumas.
Entre as alfinetadas de Almodóvar nos críticos, guardei especialmente esta: que quando se pergunta a uma criança o que ela deseja ser quando se tornar adulta, ela jamais responderá que deseja ser um crítico de cinema. O alemão Winders faz uma confissão de espantar. Ao dizer que o que mais lhe desagrada nas críticas desfavoráveis aos seus filmes é o fato de elas poderam atingir também os seus atores, revela que um ator de um filme dele quase chegou a cometer suicídio, tão deprimido ficou com os comentários do crítico. Já um cineasta da nova geração que não consegui identificar (o programa comete uma falha imperdoável: a a de não creditar o nome do depoente), menciona um comentário extremamente maldoso de um crítico sobre um filme de um colega. Escreveu o crítico que no tal filme a sequência inicial mostra um homem dormindo em uma cama: na sequência final aparece um casal dormindo também em uma cama. E arremata dizendo que, entre essas duas sequências, as cenas induzem ao sono...
Eu falei atrás em casos até de agressão física. Pois bem, dois críticos contam que foram vítimas de um diretor enfurecido. No caso de um crítico irlandês, a agressão não foi tão violenta. Num programa de televisão, provavelmente na Inglaterra, em pleno ar, a uma certa altura de uma discussão entre ele e o diretor Ken Russell, este o bateu em cada lado do rosto com um exemplar do jornal que continha o texto do crítico sobre um filme do realizador de "Mulheres Apaixonadas". Mas o crítico brasileiro Rubens Ewald Filho levou um tapa, em duas ocasiões, de um mesmo diretor, cujo nome não revelou. Seu compatriota, evidentemente.
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JEAN-CLAUDE BRIALY
Semana passada morreu o ator Jean-Claude Brialy. Nascido na Argélia, como Camus, em 1933, Brialy foi uma das presenças marcantes na Nouvelle Vague. Trabalhou com os principais diretores daquele Movimento, como Godard, Truffaut e Chabrol. De Chabrol atuou nos seus dois primeiros filmes, "Nas Garras do Vício" (1958) e "Os Primos" (1959), em ambos contracenando com Gérard Blain, já falecido.
Foi também diretor, tendo realizado 12 filmes, alguns para a tevê. Não conheço nenhum desses filmes, dos quais, salvo engano, apenas "Os Indiscretos Pingos da Chuva" (1974) foi exibido no Brasil, pelo menos no circuito comercial. Em seu "Dicionário de Cinema - Os Diretores", Jean Tulard elogia o realizador Brialy, chamando a atenção para a ênfase de um acentuado clima de nostalgia em sua obra. Em contrapartida, o já citado Rubens Ewald Filho, no seu "Dicionário de Cineastas", afirma que, a julgar pelo seu único filme visto no Brasil, Brialy não demonstrava um mínimo de talento para a direção. Sou tentado a pensar que se o crítico tivesse dito isso na França, talvez fosse estapeado pela terceira vez.

sábado, junho 02, 2007

UMA MÚSICA PARA DOIS

Este conto foi publicado aqui em 9.7.05. Sai de novo, especialmente para aqueles que não o leram naquela ocasião. Mas os que leram, não façam cerimônia (risos), podem fazer a sua reavaliação. Vamos lá.
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Ela imediatamente se virou para o piano, quando soaram os primeiros acordes da música. Por um minuoto, mais ou menos, permaneceu com o olhar enfocado no piano, depois voltou à posição inicial. Voltou também ao prato, que abandonara por aquele breve tempo. Ela também interrompera a conversa com o homem que a acompanhava. Parecia estar concentrada toda na música. E o homem, que devia ser o marido, pareceu respeitar o silêncio dela, pois não ousou lhe dizer uma só palavra até que a música parasse. E eu que não prestara atenção naquela mulher, que já começaa a comer quando eu me sentara à mesa, fui, de repente, tomado por uma junção de curiosidade e interesse por ela, a partir do momento em que a sua atenção foi despertada pelos primeiros acordes da música. E o meu olhar se deteve naquele rosto, na tentativa de nele descobrir, por trás dos óculos e em meio a algumas rugas, a jovem que conheci há anos sem conta.
E por que foi a música que, ao envolver a mulher daquela maneira, me fez sentir um interesse súbito por ela? Antes preciso fazer uma revelação. Frequentava diariamente aquele centenário restaurante, com exceção dos sábados e domingos, desde que retornara à minha cidade após uma prolongada ausência por força da minha profissão. Há uma explicação. Eu gostava daquela música e todos os dias ela era tocada, pouco tempo depois que me sentava à mesa, reservada para mim. Por um mês, talvez nem isso, solicitei-a ao pianista, mas, decorrido esse tempo, certamente percebendo que me tornara um cliente diário do restaurante, o pianista passou a executá-la com a dispensa do meu pedido.
E naquele dia, ao ouvi-la, e vendo aquela senhora partilhar da minha preferência pela música, me lembrei, de imediato, da jovem com quem tive um namoro mais ou menos duradouro. Ela, a garota, ela, a música, nunca saíram da minha mente em todos esses anos. Os dois ouvimos aquela música no mesmo dia em que iniciamos o namoro. Tínhamos ido ao Rex. na matinal de domingo, assistir "Suplício de Uma Saudade". Hoje não tenho mais saco pra encarar aquele melodrama, desde que o revi há uns dez anos, mas naquela tarde, ao lado de Loretta, emocionei-me com o romance entre William Holden e Jennifer Jones, tanto quanto a minha primeira namorada, embora, diferentemente dela, consegui resistir às lágrimas quando o filme terminou. Mas, talvez como uma lembrança do nosso amor, iniciado com o filme, se não tenho mais disposição para vê-lo, continuo a gostar da música.
Parece que agora estou ouvindo Loretta cantar, a boca chiusa, trechos de Love is a many splendored thing, quando ficávamos juntos num banco de uma pracinha, a mesma onde sempre nos encontrávamos, às vezes, assobiando-a. E depois cantando em português, quando foi lançada a versão em nosso idioma.
Mesmo depois de encerrada a execução de Love is a many splendored thing, ela permaneceu calada, só falando para responder a alguma pergunta do marido. Umas três ou quatro perguntas, que presumi que tinham a ver com a atitude da esposa. Eu começara a refeição e só desviava a atenção da mulher quando baixava os olhos para o prato. Em uma dada ocasião, uma só vez, ela, ao se virar, como que se deu conta da minha presença, mas o olhar que me endereçou teve a duração de um flash. Pouco depois o marido se levantou para ir ao banheiro. Passou bem perto de mim e pude verificar que era bem mais velho do que supunha ao vê-lo da minha mesa. Observei-o informar-se do garçom sobre o banheiro e me lembrei da primeira vez que precisei usá-lo. Em vez do usual "Homens" ou "Cavalheiros", o banheiro masculino daquele restauante exibe um retrato, numa pequena moldura oval, de um senhor de uma época antiga, vestido com um paletó e exibindo um grosso bigode. Já no das mulheres há um retrato de uma senhora também de outros tempos e com o mesmo tipo de moldura.
Continuei com os olhos atentos na mulher, à espera de que a qualquer momento ela virasse o rosto para mim e, dessa vez, me fitasse. E num breve momento acreditei nessa possibilidade. Foi quando um pequeno pássaro surgiu, de forma inesperada, sem ninguém atinar em como tinha entrado ali. A avezinha ficou passeando por aquele pequeno espaço do salão, chamando a atenção de todos que estavam ali por perto. Até que um garçom se dispôs a apanhá-la, só o conseguindo depois de algum tempo. Os movimentos do homem, a corridinha em perseguição ao pássaro, que fugia ao pressentir a proximidade do homem, provocaram risos nas pessoas. Inclusive nela. E o seu riso, a forma, me fizeram, de estalo, lembrar o de alguma pessoa. Não me era estranho aquele riso. Podia não ser o da jovem que namorei, mas de outra mulher que passara pela minha vida. Talvez até o de um amigo de um passado remoto. Impossível identificar. De todo modo, conhecera aquele riso. Foi quando acreditei que ela se virasse para mim, concedendo-me, além do olhar, um sorriso. Como alguns presentes o fizeram. Nada. A mulher não alterou a posição de todo o tempo enquanto permaneceu à mesa, com exceção da vez em que a música começou a tocar. Mas a esperança (não dizem?) é a última que morre, e me vali dela para que, ao se levantar, para ir embora, a mulher de novo me presenteasse com um olhar, ainda que rápido como uma piscadela. Nem isso. Ergueu-se e deixou a mesa pelo lado oposto ao que me encontrava. Ao se afastar, atrás do marido, pude notar que era um pouco corcunda.

sábado, maio 26, 2007

UM CAFÉ DA MANHÃ PARA MENDIGOS


Eu devia ter uns 8 pra 9 anos. Passados mais de 50 anos, é normal que a memória tenha retido pouquíssima lembrança daquele dia. A certeza que tenho é que foi num dia útil. Nem a hora exata posso lembrar. Deve ter sido entre oito e meia e nove da manhã. No máximo. Sei que a mesa de refeições da nossa casa estava posta, o bule de café com leite, pão e manteiga. E um a um eles foram chegando. Quantos eram? Não sei. Talvez uns dez, ou quinze, mas pode ter sido um pouco mais. Quem sabe doze? O número de apóstolos na última ceia de Cristo. E a mamãe bem poderia ter escolhido esse número, tão religiosa que era, assistindo missa diariamente, além de rezar em casa em frente ao "santuário". O que sei é que logo eles estavam à mesa. Aqueles homens que eu encontrava na rua pedindo uma esmola pelo amor de Deus, nas sextas indo bater à porta das casas. Agora eles (ou a maioria deles) estavam ali sentadinhos à mesa onde fazíamos as refeições. Os meus olhos infantis se arregalavam presenciando aquela cena.
A mamãe tinha pedido uma graça (provavelmente a São Francisco de Assis, o padroeiro da cidade) e se a alcançasse, ofereceria um café da manhã para alguns mendigos. Nunca soube qual foi a graça pedida e alcançada. Menino, não me interessei. E, adulto, nunca me lembrei de perguntar a ela. E será que ela diria? (Também não me lembro, embora a graça fosse para mim, de uma promessa que ela fez. Um certo ano eu tive que acompanhar as bandeiras da festa de São Francisco vestido com um hábito usado pelos frades franciscanos. Mas me lembro bem da minha vergonha de usar aquela vestimenta, com medo da mangação dos amigos. Felizmente o sacrifício foi apenas no decurso de uma festa Nas outras não se repetiu.)
Quero crer que eles estivessem vestidos com a roupa mais apresentável e estivessem limpos. Devia ter sido uma exigência da mamãe. E eu vendo aqueles homens (deveria ter alguém do sexo feminino) que sempre encontrava em andrajos. se refestelando com aquela refeição simples, mas que, para eles, representava uma banquete. (Segundo um irmão, já perto dos 20 anos, que ainda não saíra de casa, e comentou o assunto durante algum tempo, um deles não pôde conter a satisfação e revelou que nunca na sua vida tomara uma refeição como aquela. Coitado!)
Não posso me lembrar. Mas imagino que eles não estavam à vontade naquela casa que para eles era de uma família rica. Certamente, um pouco (ou um tanto?) envergonhados com a presença da minha mãe e de alguns de seus filhos. Mas iam tomando o café com leite e comendo o pão com manteiga. Terminada a refeição, foram saindo devagarinho. Como vou me lembrar se agradeceram à mamãe, se lhe desejaram muita saúde e à família? Essas palavras de agradecimento que os pedintes dizem quando recebem uma esmola Mas acredito que o tenham feito. E, talvez tanto quanto eles, minha mãe tenha ficado feliz por proporcionar um momento único na vida daqueles despossuídos, daqueles pobres de Deus.
Eu já residia em Natal quando assisti "Viridiana", de Buñuel. E na sequência do jantar oferecido aos mendigos pelo personagem-título, na mansão do tio, de imediato me veio à lembrança aquele café da manhã em minha casa.

sábado, maio 19, 2007

O DIRETOR MARLON BRANDO

"A Face Oculta" (One-Eyed Jacks/1961) representou a única experiência de Marlon Brando na direção. Ele substituiu Stanley Kubrich, que mal esquentou a cadeira de diretor, sendo demitido pelos produtores, dizem que por imposição do ator.
Lançado agora em DVD, depois de ter saído em vídeo, "A Face Oculta" insere-se na categoria do "western psicológico" ao enveredar pela análise dos dois personagens principais: Rio, vivido pelo diretor, e Dad Longworth (Karl Malden), o primeiro traído pelo segundo, após assaltarem um banco e serem perseguidos pelos policiais. Desde a sua permanência por cinco anos na prisão, Rio se torna um obcecado pelo acerto de contas com o ex-comparsa, que, nesse período, passara para o outro lado da lei, assumindo o cargo de xerife de uma cidadezinha. A partir do reencontro dos dois, eles conseguem, por algum tempo, estabelecer uma convivência que só aos olhos dos que desconhecem o que houvera entre eles pode parecer cordial e pacífica. Na verdade, uma relação tensa, como se fora de um pai (não deve ser por acaso que o nome do xerife, em inglês, significa pai) com o filho (a quem ele chama de Kid), o primeiro sempre em guarda contra o segundo, consciente de que ele voltou para lhe cobrar a dívida. Veja-se, por exemplo, o "close" do olhar assustado de Dad, ao ver do alpendre de sua casa a silhueta de Rio cavalgando em direção a sua casa. É uma boa cena. Há uma "grade" de madeira, e o enquadramento do rosto do xerife entre as barras sugere as de uma prisão onde esteve o visitante.´
É preciso chamar a atenção para a presença, no filme, de um elemento insólito na dramaturgia do "western": o mar. Próxima ao mar fica a residência de Dad. É para uma pousada litorânea que Rio vai se recuperar das chicotadas que lhe aplica o xerife (como um pai castigando o filho), que completa o suplício, fraturando-lhe a mão. É à beira do mar que ele tem o encontro amoroso com Louisa (Pina Pellicer), enteada de Dad. E ainda lá dela se despede no final do filme. E é uma presença marcante, pois a sua função não é apenas de servir de um cenário inusitado dentro do gênero, mas como a sublinhar, no torvelinho das ondas, a agitação interior de Rio.
Marlon Brando conduz "A Face Oculta" com firmeza, sensibilidade e até, em um ou outro momento, com brilho. Um exemplo é na cena em que Louisa confessa à mãe Maria (Katy Jurado) que está grávida. A reação da mãe é mostrada pela expressão do rosto, em que se revela um misto de pena e de compaixão pela sorte da filha. E após grudar o olhar numa abatida Louisa, Maria se afasta um pouco, ajoelha-se e põe-se a rezar. E sendo Brando o ator que era, ele soube transmitir a sua arte, principalmente nesse grande momento da atriz mexicana (talvez o maior do filme). Mas todos os outros atores, até os de pequena participação estão bem.
Por fim, a julgar por esse filme, só temos a lamentar que Brando não tenha prosseguido na carreira de diretor. Não seria, provavelmente, tão grande na direção quanto o foi na interpretação, mas, no mínimo, teria se convertido em um cineasta a ser observado com atenção e interesse.
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CURIOSIDADES
1.A atriz Pina Pellicer, nascida no México, que interpreta Louisa, cometeu suicídio três anos depois de trabalhar no filme. Tinha apenas 30 anos.
2. Consta que Sam Peckinpah (o diretor de "Meu Òdio Será Sua Herança") foi quem começou a escrever o roteiro, mas o abandonou depois da demissão de Kubrick Kubrick Brando e Peckinpah. Como se teriam desenrolado as filmagens com a particpação desses três homens de temperamentos tão fortes e de convivência tão problemática?