quarta-feira, março 12, 2008

AS MANGAS



* * * * * * * * * * * * *
Sábado, fim de tarde, bebia em um bar que descobrira da primeira vez em que estivera naquela cidade. Encantara-se com o ambiente, ao ar livre, duas frondosas mangueiras na entrada, a área suficientemente espaçosa para quem desejasse isolar-se dos outros clientes. Não frequentara outro bar, durante os dias em que permanecera na cidade, e, ao voltar, após muito tempo, procurou-o e ficou feliz por ele ainda estar funcionando.
O ambiente (mas sobretudo a hora, quando diminuía bastante o número de frequentadores) estimulava a meditação a quem estivesse ali sozinho - e ele estava absorvido em pensamentos que se sucediam em uma intensa celeridade, como se o próprio cérebro se recusasse a reter cada um deles por mais de uns dois minutos. De repente, foi desviado dos pensamentos por um barulho de vozes. E o que lhe despertou a atenção é que o barulho não era igual ao de pessoas envolvidas em uma altercação, tão comum em mesa de bar. O tom das vozes era alegre, de animação, mais identificado com a bulha de crianças quando estão brincando. Percebeu que as vozes procediam do lugar onde se erguiam as mangueiras, e, impresssionado, além de curioso, deixou a mesa e caminhou para lá. Ao se aproximar, teve uma enorme surpresa: três marmanjos atiravam pedras nos frutos pendentes de uma das mangueiras, tentando derrubá-los. Três homens de meia-idade brincando feito crianças, em um lugar para adultos. Imaginou que eles, ainda há pouco, estivessem a ponto de se digladiar em uma estéril e desgastante discussão sobre os políticos, e, de repente, tinham-na abandonado, ao descobrirem aquelas mangas maduras oferecendo-se para serem colhidas.
A cena, insólita, era capaz de atiçar a zombaria, mas, ao mesmo tempo, havia nela um elemento de nostalgia da infância, que lhe calou fundo. Observando aqueles homens de idades batendo mais ou menos com a sua, que buscavam, talvez inconscientemente, recuperar um momento do tempo de meninos, ele se viu também menino, galgando muros proibidos para roubar mangas, subindo em árvores, atirando pedras nos frutos. E, então, veio-lhe intensa a vontade de reunir-se aos coroas, e, de posse de uma pedra, atirá-la contra as mangas. Depois de derrubá-las, as juntaria em um saco plástico, levando-as para chupá-las no quarto do hotel.
Mas, inesperada, alguma coisa o tolheu. Talvez o receio de não ser bem acolhido pelos homens; ou, quem sabe, parecer a si mesmo ridículo, ainda que não tivesse dos estranhos a mesma impressão. Certo é que, resignado, voltou para a mesa e os pensamentos.

quarta-feira, março 05, 2008

UM DEBATE SOBRE BOCCACCIO 70



Em 1966 Gilberto Stabili e eu, membros do Cineclube Tirol, de Natal (ele presidira a entidade no ano anterior) , escrevíamos uma coluna no jornal Correio do Povo. Eu escrevia num dia, ele no outro. Uma feita, Gilberto me propôs fazermos um debate sobre "Boccaccio 70", filme constituído de 3 episódios, dirigidos por Fellini ("As Tentações do Dr. Antônio), Visconti ("O Trabalho") e De Sica ("A Rifa"). Aceitei o desafio e uma noite fui à casa da irmã de Gilberto, onde ele residia. Ficamos no quarto dele. Ele passava para um papel tanto as suas opiniões sobre os 3 episódios, quanto as minhas. Depois datilografou. Foi um debate curto, devido às limitações do espaço de que díspunhamos no jornal. Achei que podia ser de interesse divulgar esse "confronto" entre dois jovens na casa dos vinte anos (ele mais velho um pouco do que eu, mas com uma vivência de cinema de já um veterano, comparada com a minha). Eis o que escrevemos naquela noite já distante, que saiu no jornal uns dois a três dias depois.
* * * * * * * * * * * * * * *
Sobreira - "Boccaccio 70" é um filme de finalidade comercial, apesar de assinado por três grandes nomes do cinema italiano. Em busca de lucro para os seus empreendimentos, os produtores parecem ter verificado que já não bastam um bom elenco e um bom enredo, mas também que o filme seja dirigido por um cineasta famoso.
- Stabili - Que a finalidade é comercial basta ver que o inspirador - Giovanni Boccaccio - foi um satírico popularesco, justamente famoso também pelo conteúdo erótico das suas narrativas. Mas não importa a intenção comercial se a idéia é boa e os diretores têm a liberdade de dizer.
Sobreira - E porque por trás de tudo está o dedo do homem que financiou, tais filmes em geral nunca são bem realizados, existindo sempre desarmonia entre as histórias tratadas por diferentes realizadores, alguns deles saindo-se bem da empreitada, outros decepcionando. Pessoalmente, prefiro a parte de Visconti. A meu ver, ele foi, dos três diretores, o único que resistiu à finalidade comercial do filme. Por isso conservou-se fiel a si mesmo, fazendo uma história séria, sem fugir à sua temática ou ao seu estilo.
Stabili - As diferenças são mais resultantes das peculiaridades de estilo, cabendo as dissonâncias em relação ao tom geral à responsabilidade de cada diretor. Salvo quanto ao nível de qualidade de cada episódio, que depende, naturalmente, da competência de cada autor. Na minha opinião, é Visconti o destoante do espírito de "Boccaccio 70", precisamente por adotar uma linguagem séria para tratar de um tema de ironia cruel, um "entreato cínico e depravado", na expressão de certo crítico. Não precisava Visconti fugir à sua temática e sim adaptar o seu estilo ao espírito do episódio.
Sobreira - "O Trabalho", na minha opinião, é um episódio inteiramente viscontiano, de maneira que o espectador familiarizado com o estilo do autor de "Rocco e Seus Irmãos" não tem dificuldades em identificá-lo. Nele estão presentes o plano bem elaborado, a preocupação pelo detalhe, o extremo bom gosto, o estilo fino e requintado, a elegância formal. Acresce a isso a classe ao tratar cenas mais ousadas (o strip-tease de Romy Schneider) e a expressividade dos grandes planos de rostos.
Stabili - Por ser "viscontiano", não impede também de ser destoante e meio-frustrado. Todos os valores e características que você mencionou estão em "O Trabalho" servindo insatisfatoriamente ao espírito e ao clima dramático do episódio. O tratamento teria de ser mais leve e isso só seria possível mediante uma forma menos elaborada, pesada e um tanto teatral como é.
Sobreira - Com relação a algum teatralismo, isso se vê em todos os filmes de Visconti (até em "Rocco") , e se explica pelo fato de ele pertencer tanto ao teatro quanto ao cinema, sentindo, por isso, a influência de um sobre o outro.
Stabili - Em "Rocco" o clima pesado era exigência da história. Em "O Trabalho", não.
Sobreira - A parte de Fellini é muito boa tecnicamente e está servida brilhantemente pelo desempenho de Peppino de Filippo, no papel do Dr. Antônio. O que a prejudica é o tom de certo exagero como Fellini assesta as suas baterias contra as pessoas que o criticaram pelo seu filme "A Doce Vida". A vingança da sua resposta atinge, algumas vezes, o delírio, o que diminui, em consequência, o efeito da sátira.
Stabili - Em "As Tentações do Dr. Antônio", Fellini usou seu talento prodigioso e a técnica cinematográfica, que domina como poucos, para expor ao ridículo os falsos moralistas que condenaram "A Doce Vida" e continuam a fazer a censura moral. Mas não somente para isso. O desabafo de Fellini atinge toda a hipocrisia - nos costumes, moral, instituições, até na arte - e é a favor da liberdade. Sua sátira caricaturesca é terrível, de uma crueldade muitas vezes injusta, e isso de fato diminui a validade da crítica, mas ela é, sem dúvida, a coisa mais inteligente (e mais cinematográfica) de "Boccaccio 70".
Sobreira - O último episódio, dirigido por De Sica, é muito inferior aos demais. Além de apresentar uma narrativa ultrapassada, "A Rifa" peca, sobretudo, pela grosseria e pelo extremo mau gosto, presentes tanto nas situações humorísticas de baixa categoria, como nos diálogos.
Stabili - Concordo inteiramente com você. Chamo a atenção para aquela comparação dos homens de Lugo com animais, quando a câmera passa sucessivamente de um grupo de porcos a um grupo de homens, no começo do episódio.
Sobreira - E como se isso não bastasse, houve a intenção de explorar Sophia Loren não como atriz, mas como mulher possuidora de inegáveis atributos físicos. É uma pena que De Sica e Zavattini tenham caído tanto. Salva-se a apresentação do problema social, que leva uma mulher a submeter-se à humilhante situação de oferecer-se como prêmio de uma rifa.
Stabili - A exploração dos atributos físicos de Sophia se faz dentro da anedota picaresca, e isso não contraria a empresa (inspirada em Boccaccio). A grosseria não é a erótica, e sim a ideológica, e pior do que isso, a da expressão.
* * * * * * * * * * * * * * *
NOTA - "Boccaccio 70" é constituído de 4 episódios. O quarto, de Mario Monicelli ("Renzo e Luciana") foi interditado pela censura da ditadura militar, quando o filme foi lançado neste pobre país. Mas está presente no DVD do filme, lançado já há algum tempo.




quarta-feira, fevereiro 27, 2008

O BEIJO DE UM JOVEM EM MACHADO DE ASSIS


Vale a pena relatar, no ano em que transcorre o centenário de falecimento de Machado, um episódio envolvendo o autor de "Dom Casmurro" e um jovem de quase dezoito anos. O rapaz, sabendo através do "Jornal do Commercio", que Machado estava à beira da morte e querendo conhecer o escritor que admirava, partiu às pressas para a casa dele. Lá chegando, encontrou alguns escritores que faziam vigília a Machado na sala de estar, entre os quais estava Euclides da Cunha. Apesar dos seus apelos, os presentes não lhe queriam satisfazer o desejo. Machado dormia no seu quarto, mas o barulho de vozes o despertou, e, tomando conhecimento do que ocorria, permitiu que o jovem fosse até a ele. O jovem chegou ao lado da cama em que Machado estava, e, sem dizer palavra, ajoelhou-se e lhe beijou a mão. Ainda em silêncio, levantou-se e foi embora. Sem se identificar também aos presentes, aos quais dissera, ao chegar, ser "um grande admirador do escritor".
Isso se deu em 28 de setembro de 1908. No dia seguinte Machado morreria. Em artigo no mesmo jornal, dois dias depois da morte do escritor, intitulado "A Última Visita", Euclides relatou o ocorrido e escreveu : "Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra", acrescentando que "qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida". Quatorze anos depois, "o menino", "a criança", seria um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro. Seu nome: Astrojildo Pereira.
Nascido em Rio Bonito (RJ) em 1890, Astrojildo conservou a admiração por Machado até morrer em 1965, chegando, inclusive, a escrever um livro sobre este, que o jornalista Sérgio Augusto chamou de "um precioso estudo sociológico" em artigo publicado no "Estadão". Também conservou-se comunista, apesar de ter sido expulso do Partidão, pela acusação de ser "um intelectual pequeno-burguês". (Aliás, por manter-se partidário da doutrina comunista, Astrogildo, já um homem enfartado, foi preso pela ditadura militar, em 1964. Solto três meses depois, graças ao empenho de jornalistas, escritores e artistas, no ano seguinte sofreria outro enfarte, dessa vez fatal.)
Ainda segundo Sérgio Augusto, por sua formação literária, apesar de ter abandonado os estudos formais em plena adolescência, Astrojildo atraiu a admiração de "intelectuais tão díspares quanto Otto Maria Carpeaux (que discursou no sepultamento dele) , Gilberto Freyre, Oswald de Andrade e Antonio Candido. Até o ferrenho anti-comunista Nelson Rodrigues reverenciava a figura e a opinião de Astrojildo" E era um homem de fino trato. Antonio Carlos Vilaça, que o conheceu já velho, descreve-o em "Os Saltimbancos da Porciúncula" (Record 1996) , como um homem extremamente doce, gentil, suave e muito discreto.
* * * * * * * * *
NOTA - O artigo de Sérgio Augusto ("O Comunista Que Beijou Machado", de 2001, salvo engano) , está no saite www.digestivocultural.com/, cedido gentilmente a este pelo autor.

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

A PANTERA



Conto já publicado neste blogue em novembro de 2006.
* * * * * * * * * *


Bonita. Muito bonita. Os olhos bem abertos, agateados, que davam ao rosto um ar de pantera, a boca parecendo ter o tamanho certo - nem grande, nem pequena. Os braços - e aí um pequeno senão na sua beleza - eram um pouco musculosos, assim formados, certamente, por exercícios em uma academia. Quando a viu pela primeira vez, ela surgindo de repente, com o olhar provocador, foi tomado por uma sensação estranha. Um impacto. Ou, antes, um susto pelo inesperado da presença da moça, como algo ameaçador, embora revestido de beleza. Ela estava colada à vitrine da parte lateral de uma perfumaria, localizada num centro comercial. O que sentiu, de tão forte, quase como se percebesse uma ameaça de agressão (e a beleza dela tinha um quê de agressivo), o fez olhar rapidamente para a moça e continuar a caminhada de todo final de tarde, dando várias voltas pelos dois longos quarteirões, no primeiro dos quais se situava aquele centro comercial. Seguiu com a imagem da moça na cabeça. Atingiu o fim do segundo quarteirão, dobrou à direita, passou em frente a um antigo colégio, depois pegou outra vez a direita e foi percorrendo os dois quarteirões do lado oposto, até alcançar outra vez o centro comercial. Era assim todas as tardes, quando começava a escurecer. Ao se aproximar da perfumaria, já se sentia preparado para não sofrer o mesmo efeito de minutos antes e foi até à vitrine, para examinar a moça. E, embora tocado pela agressividade de sua beleza, permaneceu uns dois a três minutos observando detalhadamente o rosto e a mão que segurava um frasco de perfume de nome inglês.
Ao voltar para o apartamento vazio, desfez-se da bermuda, do tênis, da camiseta, enxugou o suor do corpo, escolheu um cd, deitou-se na cama para ouvi-lo. Como fazia todas as tardes, antes de tomar banho e depois o jantar frugal. Mas daquela vez ocorreu uma quebra na rotina. Ouvia as músicas, mas sem a mesma concentração. Em algumas músicas até que a concentração era inteira (talvez porque fossem as de que gostasse mais) , já em outras a imagem da moça se sobrepunha e ele não tinha força para rejeitá-la. Quando mais tarde foi ler, em muitos momentos parecia "ver" a moça presente no relato. Houve uma vez que ao ler a descrição dos olhos de um personagem feminino, imaginou que eles fossem iguais aos dela. Interrompeu a leitura e, com o livro seguro na mão, pôs-se a pensar na moça. E pelo resto da noite não conseguiu livrar-se da sua imagem e teve a certeza, ao deitar-se, de que ela apareceria num sonho. Mas isso não ocorreu.
No dia seguinte, ao despertar o primeiro pensamento foi para ela. Rápido, veio a resolução de tomar a providência de evitá-la, alterando o itinerário da caminhada. Ficou cada vez mais distante da perfumaria, na certeza de que, não vendo a moça, ela sairia da sua cabeça.
A providência deu resultado, mas não imediato, por alguns dias a imagem da moça, o ar de pantera, o rosto de uma beleza perfeita surgiam, de repente, por entre as páginas de um livro, no meio de uma música, na tela da televisão.
Até que um dia ela desapareceu, afinal. Experimentou uma grande satisfação, como se tivesse ganho um prêmio. Com o passar do tempo, livre dela, chegou a pensar em vê-la outra vez, pois acreditava que não iria lhe acontecer mais nada, a não ser a indiferença. Saiu uma tarde disposto a retomar o antigo itinerário, mas, ao chegar a poucos metros da perfumaria, algo estranho o dominou, impedindo-o de seguir. Voltou, então, pela caminho que o levara até ali, continuando a caminhada no sentido das outras tardes. Enquanto andava, percebeu, num misto de decepção e raiva, que não estava de todo livre da presença dela.
Um dia foi ao centro da cidade. Fazia anos que não ia lá, para não ser incomodado pelo barulho dos carros de propagando e do número excessivo de pedintes e de pessoas oferecendo cartões de crédito, empréstimos, entregando papeizinhos de serviços diversos. Mas um amigo lhe dissera que tinha visto numa grande loja o cd que ele procurara, sem sucesso, em outros locais da cidade. Encontrou o cd, após uma busca que levou uns dez minutos, uma única unidade, escondido por outros discos, como se estivesse à sua espera. Pagou-o e, em vez de sair pela entrada, preferiu a porta dos fundos.
Ao passar pela seção de perfumaria, sem uma razão que justificasse o ato, como impelido por alguma coisa da qual não pudesse escapar, desviou a vista para a parede ao lado. E viu. No alto da parede, ela, os olhos parecendo mais agateados, a expressão no rosto parecendo ainda mais agressiva, olhando desafiadora para ele, como se quisesse saltar do pôster para cima dele. Virou-se com tanta rapidez que o corpo perdeu um pouco o equilíbrio e precisou apoiar-se numa prateleira para não cair. Logo em seguida, retomou a caminhada, apressado, esbarrando nas pessoas, sem se desculpar, ansioso para encontrar a saída. E mesmo depois de sair da loja, continuar a andar veloz, quase correndo, como se achasse que a moça tinha saltado do pôster e, tão rápida quanto ele, quisesse alcançá-lo. Nem quando entrou no carro, sentiu-se livre. Em disparada voltou para o apartamento.
E, à noite, sonhou com ela.
* * * * * * * * * *
- A mulher da foto é a atriz Simone Simon, no filme "Sangue de Pantera" (Jacques Tourneur/1942)
- O selinho acima, o segundo concedido ao "Luzes da Cidade"por ele, é mais um produto da generosidade do amigo Marco Santos, do blogue Antigas Ternuras

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

MEDOS PRIVADOS EM LUGARES PÚBLICOS (Coeurs/2006)


Aos 84 anos, quando parecia já acabado para o cinema, Alain Resnais consegue surpreender com um filme que perturba o espectador e ao mesmo tempo o estimula à reflexão. Adaptado de uma peça teatral que tem o mesmo título do filme em português, Resnais nos apresenta a seis pessoas (três homens e três mulheres) solitárias (mesmo quando envolvidas num relacionamento amoroso, como Dan/Lambert Wilson e Nicole/Laura Montale) , perdidas, em busca de algo que dê um valor significativo a suas vidas, sempre confinadas em ambientes fechados (não há em todo o filme uma única cena externa) , como isoladas do mundo lá fora. Mas não têm êxito na sua busca quase desesperada. Nem mesmo um apartamento que a satisfaça Nicole consegue. Ela vive com Dan, um ex-militar à cata de um emprego, num apartamento de hotel, em cujo bar ele se embebeda todas as noites.
E há a neve. Incessante, vista dos interiores, ela acentua o fardo que aquelas pessoas carregam. A neve funciona também como um elemento de ligação entre as cenas. E já perto do fim, na conversa entre Lionel (Pierre Arditi) e Charlotte (Sabine Azéma) , no apartamento de Lionel, a neve parece estar junto deles, como se ali tivesse penetrado, mercê de um notável efeito técnico, que ainda torna a cena visualmente bela.
É talvez o maior momento do filme, porque além da presença do elemento técnico-estético, naquela conversa Lionel revela um pouco do seu passado; aliás, o único personagem a fazê-lo, já que se se sabe que Dan deixara a carreira militar, o motivo não é explicitado. Além de sabermos que Lionel era dominado pela mãe, uma mulher de temperamento forte, que chegou a expulsar de casa o marido, ocorre algo mais sobre ele: ao falar de um amigo de juventude, com quem aparece numa foto emoldurada que a câmera focaliza rapidamente, deixa a impressão de ser um homossexual.
Esses "corações" , amargurados pela frustração dos desejos, se cruzam no desenrolar da história. Nicole tem mais de um contato com o corretor imobiliário Thierry (André Dussolier) , que trabalha com Charlotte, por quem se sente fortemente atraído. Debruçada sobre a Bíblia, quando não tem cliente para atender, mas alimentando desejos lascivos, Charlotte se chega a Lionel, que a leva para, à noite, tratar do pai enfermo, um velho rabugento e desbocado, do qual só se ouve a voz. E um pouco por causa do seu desejo, e um pouco para se vingar do velho, ela o faz ir parar no hospital. Dan, por sua vez, tem um rápido envolvimento com Gaelle (Isabelle Carré) , irmã de Thierry, mas com idade para ser sua filha. Ela sai à noite com a desculpa de que vai se reunir com amigas, mas, na verdade, vai se encontrar com algum homem, a quem atraiu por um anúncio de jornal.
Se não fica bem próximo dos maiores filmes de Resnais, "Medos Privados em Lugares Públicos" é muito bom, possivelmente o melhor do cineasta desde "Meu Tio da América" (1980) . Que bom seria que ele parasse agora, rematando de forma digna uma bela carreira. No entanto, já está preparando outro.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

CURIOSIDADES


Catedral de São Basílio, em Moscou, in Google.



- A Catedral de São Basílio foi construída entre 1555 e 1561. Depois de pronta, o Czar que governava a Rússia, na época, mandou furar os olhos do arquiteto que a projetou para que este não pudesse criar outra obra da mesma beleza. O nome do Czar era Ivan, cognominado O Terrível. Um építeto muito apropriado para quem cometeu monstruosidades como essa.


- Leio em "Antes do Fim", memórias do argentino Ernesto Sabato (Companhia das Letras/2000) , que o escritor espanhol Miguel de Unamuno preferia usar a palavra Mátria, ao invés de Pátria, "uma vez que é a mãe o verdadeiro fundamento da existência".


- Já o cineasta francês Robert Bresson ("Um Condenado à Morte Escapou") só chamava o cinema de "cinematógrafo". "Cinema", para ele, é o local onde os filmes são exibidos.


- Foi Millor Fernandes que chamou a atenção para esta particularidade no nome do compositor, ator e escritor Mario Lago: Mar, Rio, Lago. Um nome muito aquoso. Ou aquático?


- O cineasta russo Eisenstein, que fez um filme sobre Ivan, o Terrível, revela em seu livro "Reflexões de um Cineasta" (Zahar Editores/1969) , que Chaplin lhe confessou uma vez que detestava criança. Essa confissão ocorreu quando Eisenstein passou uma temporada em Hollywood e os dois se tornaram amigos. Não duvido da revelação do russo, mas da confidência de Chaplin, que o deixou chocado. Tenho pra mim que o criador de Carlitos queria justamente isso: chocar o genial amigo. Fazer uma brincadeira (de mau gosto) . Afinal, se Chaplin detestava criança, não teria tido tantos filhos.


- "JOSUEU". Era assim que Rachel de Queiroz chamava Josué Montello, em alusão ao ego do seu colega, o qual superava a quantidade (mais de 100) de livros que escreveu.


- O carnaval de 1941 foi marcado por um fato inusitado. Em meio a marchinhas, sambas e frevos (em Pernambuco) , foi composta uma valsa. Sim, uma valsa. E fez sucesso. Intitulava-se "Nós Queremos Uma Valsa", da autoria de Nássara e Frazão, na voz de Carlos Galhardo.
*************************
OBSERVAÇÃO - O amigo "Eremita", do blogue http://eremiterioblogspot.blogspot.com/, me deu o presente acima, escolhendo o "Luzes da Cidade" entre os seus 7 blogues preferidos, pelo que me sinto honrado e muito grato a ele.

quarta-feira, janeiro 30, 2008

2 POEMAS DE CARNAVAL DE CARLOS PENA FILHO (PE)

Pierrô, Arlequim e Colombina, óleo sobre
tela de Di Cavalcanti (1922)

A mesma rosa amarela (*)

Você tem quase tudo dela,

o mesmo perfume, a mesma cor,

a mesma rosa amarela,

só não tem o meu amor.

Mas nestes dias de carnaval

para mim, você vai ser ela.

O mesmo perfume, a mesma cor,

a mesma rosa amarela.

Mas não sei o que será

quando chegar a lembrança dela

e de você apenas restar

a mesma rosa amarela,

a mesma rosa amarela.

Soneto principalmente do carnaval

Do fogo à cinza fui por três escadas

e chegando aos limites dos desertos,

entre furnas e leões marquei incertos

encontros com mulheres mascaradas.

De pirata da Espanha disfarçado

adormeci panteras e medusas.

Mas, quando me lembrei das andaluzas,

pulei do azul, sentei-me no encarnado.

Respirei as ciganas inconstantes

e as profundas ausências do passado,

porém, retido fui pelos infantes

que me trouxeram vidros do estrangeiro

e me deixaram só, dependurado

nos cabelos azuis de fevereiro.

(*) - Segundo revela o crítico e pesquisador Ricardo Cravo Albim, "A mesma rosa amarela" foi escrito por Carlos Pena Filho (morto em acidente de carro em 1960, com apenas 31 anos de idade) para o carnaval daquele ano. Apresentado a Capiba para musicá-lo, o compositor de"Maria Betânia" gostou tanto do poema que achou que ele não deveria ser cantado apenas nos quatro dias de carnaval e fez um samba-canção. "A mesma rosa amarela" foi gravado pelo cantor Claudionor Germano (também pernambucano, como os autores, e intérprete preferido de Capiba), mas não obteve sucesso. O sucesso veio quando Maysa a gravou, uns 2 anos depois. Com o passar dos anos, vários outros cantores regravaram a música, inclusive Nelson Gonçalves.

NOTA - Os 2 poemas fazem parte do livro "POEMAS - Carlos Pena Filho" (Global Editora, 1983).


quarta-feira, janeiro 23, 2008

MACHADO DE ASSIS & WILLIAM WORDSWORTH


Quem leu "Memórias Póstumas de Brás Cubas" deve se lembrar de um capítulo intitulado "O menino é o pai do homem". Ali pela quinta ou sexta linha do primeiro parágrafo, Machado escreveu: "Um poeta dizia que o menino é o pai do homem". Quem era o poeta, o escritor não diz. É estranha a omissão do nome do autor da frase, principalmente por não ser um costume de Machado, que não deixava de informar a fonte de um uma frase, ou uma palavra. Às vezes, se não creditava o autor, o fazia com a obra, certamente por ser esta muito conhecida, como alguma peça famosa de Shakespeare, "A Divina Comédia", "Dom Quixote", etc. Mas nesse caso, o personagem-narrador menciona apenas e vagamente "um poeta". Nem a nacionalidade do poeta é dita. Qual o motivo? Machado não se lembrava do nome do poeta e entendeu que não era importante procurar o livro, que, provavelmente, ele possuía? Ou preguiça de procurá-lo? É possível.
Bem. Há uns dois meses, mais ou menos, lendo o blogue de Marcelo Coelho na Folha Online, há um texto do editor em que ele fala sobre a frase escrita em "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e revela o nome do poeta. Trata-se do romântico inglês William Wordsworth. Marcelo Coelho ainda faz mais. Informa o título do poema ("My Hearth Leaps up When I Behold") e publica no blogue. Não sei se de forma integral, ou apenas a parte do poema de que faz parte parte a frase do livro de Machado. Transcrevo-o a seguir.
My heart leaps up when I behold
A rainbow in the sky:
So was it when my life began;
So is it now I am a man;
So be it when I shall grow old,
Or let me die!
The Child is father of the Man;
I cloud wih my days to be
Bould each to each by natural piety.
De todo modo, Machado, cujo centenário de morte ocorre este ano, ainda que devesse ter citado Wordsworth, pelo menos não deu para si a autoria da frase. Já Guimarães Rosa não procedeu da mesma forma. Sabem a famosa frase "viver é muito perigoso", que aparece no seu "Grande Sertão:Veredas"? Ela pertence a Goethe. Já contei isso aqui, mas vou contar de novo. A revelação é de Rubem Braga numa pequena crônica (não me recordo de qual livro dele). Um escritor mineiro, que não é mencionado (talvez ele estivesse vivo, na época, e Rubem evitou uma possível polêmica), lendo Goethe, descobriu a frase. "Viver é muito perigoso". O nosso maior cronista não informa se o dito faz parte de um romance , ou de um poema do escritor alemão. E para não acusar Rosa de plágio, ele encerra a crônica dizendo mais ou menos assim (cito de memória e a minha memória já anda me pregando algumas peças) : que era próprio de Rosa, por exemplo, misturar Goethe com o sertão mineiro.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

OS MELHORES ANOS DAS NOSSAS VIDAS (The Best Years of Our Lives/1946)

Este artigo saiu num jornal de Natal, onde eu mantinha uma coluna semanal sobre cinema, na primeira metade dos anos 1990. Tendo revisto o filme há poucos dias, resolvi publicá-lo aqui, com algumas alterações em relação ao texto original.
* * * * * * * * * * * * * * * * *
Um dos mais graves problemas da guerra é que os seus malefícios continuam mesmo depois de ela chegar ao fim. Ou seja, os seus efeitos sobre a nação envolvida no conflito, sobre a população e sobre os homens que estiveram no campo de batalha. Sabe-se como ficou quase toda a Europa depois da Segunda Guerra e das grandes dificuldades que a sua população enfrentou. Por não senti-la dentro do seu território, o povo americano sofreu bem menos os efeitos sociais e econômicos da Segunda Guerra. Já os americanos que foram lutar, muitos deles, na volta, tiveram que enfrentar uma outra guerra.
É de três desses homens que trata "Os Melhores Anos de Nossas Vidas". De volta para casa e para as suas vidas de civis, Al Stephenson (Fredric March), Fred Derry (Dana Andrews) e Homer Parrish (Harold Russel) encontram sérias dificuldades para se readaptarem à sociedade. E como se pudessem prevê-las, Al e, principalmente Homer, são tomados por uma apreensão quando o táxi em que viajam se aproximam de suas casas. (A apreensão é acentuada pelo detalhe de os rostos dos três ex-combatentes serem vistos, em duas ocasiões, apequenados no espelho retrovisor.) A do segundo é ainda maior porque ele não tem idéia de como se comportarão os seus pais e a namorada Wilma (Cathy O'Donnel), ao reencontrarem-no usando ganchos em lugar das mãos. E, infelizmente, Homer estava certo em seus receios: desde o instante em que a mãe não consegue dominar um curto soluço de dor quando olha o filho acenando com um gancho para o táxi que parte, ele passa a viver um desconforto psicológico, como uma vítima da curiosidade de adultos e crianças, e objeto de constrangimento do pai, que, na presença do filho, evita fazer coisas que exijam o uso das mãos. Somente Wilma não parece nem um pouco afetada pela mutilação de Homer, demonstrando-lhe o mesmo amor que sentia antes de ele partir.
É exatamente aí que ele tem mais sorte do que Fred, que não terá motivos de satisfação ao reencontrar a frívola esposa Marie (Virginia Mayo). Ela que, praticamente, viu o marido sair da lua-de-mel para a guerra, e, por causa do temperamento volúvel, não pôde impedir que a longa separação comprometesse o casamento, crê, ingenuamente, que a volta de Fred, envergando o vistoso uniforme da Força Aérea, possa fazê-la recuperar o amor por ele. Mas, na verdade, o seu interesse é apenas no status de Fred como um herói de guerra, cujo símbolo é representado por aquele uniforme. Quando ele troca a farda pelos trajes civis, ela sente um travo de decepção com o marido, e a partir daí, começam os problemas para ele. Frustrado por voltar ao mesmo trabalho que fazia antes de ir para a guerra, e com um salário muito inferior ao que ganhava como capitão, Fred acaba se demitindo do emprego, ao tempo em que é abandonado por Marie. Por ironia, o seu próximo trabalho é numa empresa que constrói casas pré-fabricadas, com o aproveitamento de material de sucata de aviões.
Também Al não está totalmente confortável no seu trabalho no banco. Responsável pela carteira que financia empréstimos aos desmobilizados, Al gostaria de socorrer os ex-companheiros que recorrem ao banco, mas sem poder oferecerem garantia (como fez uma vez com um deles) , mas é obrigado a se curvar às normas da instituição.
"Os Melhores Anos das Nossas Vidas" atinge perfeitamente o objetivo de expor os obstáculos enfrentados pelos civis, que foram para a guerra, em se readaptarem à vida no tempo de paz. Entre os quais a hostilidade que sofrem de pessoas que não foram convocadas para lutar e têm medo de perder o emprego para aqueles que, eles julgam, voltaram cobertos de glória. A direção de William Wyler ("O Colecionador", "Ben-Hur") é muito boa, sabendo explorar os momentos tensos, dramáticos, românticos e até os (esporadicamente) humorísticos. Ele adota, em quase todo o filme, o método de usar a câmera muito próxima dos atores, como se pretendesse conquistar a cumplicidade, a adesão do espectador. A qualidade da sua direção faz-se sentir também no rendimento dos intérpretes, todos muito bem, a começar pelo tarimbado e excelente Fredric March, e até Harold Russel, que nunca havia representado. Os dois, aliás, ganharam o Oscar de Melhor Ator e Melhor Ator Coadjuvante.
Pena que o vigor e a firmeza do roteiro amoleçam no final. O casamento de Homer e Wilma parece implausível, depois de se ver que Homer, consciente de que o amor deles não poderia dar certo, tenta esquivar-se ao assédio da namorada. É uma solução que dá a impressão de ter sido arranjada para levar uma mensagem de esperança aos inúmeros mutilados de guerra, entre os quais se incluía o próprio Russel, que teve as mãos decepadas durante um treinamento de batalha. E a "concessão" do final não pára por aí. O ardente beijo trocado entre Fred e Peggy (Teresa Wright), a filha de Al, depois da cerimônia, prenuncia outro casamento.
Apesar desse deslize, o filme se mantém de pé por todas as qualidades já apontadas.

quarta-feira, janeiro 09, 2008

TRÊS VELAS


Foto extraída de www.studyoanasouza.com/


Pois é. Na próxima sexta, dia 11, o "Luzes da Cidade" estará com três velas. São três anos que edito este blogue, falando de cinema , de literatura, um ou outro assunto fora desses dois, e , vez por outra, contando minhas lembranças da infância. Três anos. E eu que, quando ingressei na blogosfera, duvidava de que este espaço chegasse a um ano de existência. É verdade que, durante esse período, pensei por várias vezes em parar. E continuo a pensar, vez por outra. De uns tempos pra cá já não tenho o mesmo entusiasmo dos primeiros meses. Até há uns dois meses tinha estabelecido uma data redonda para apagar estas luzes: justamente no aniversário dos seus três aninhos. Acabei mudando de idéia. E vou tocar o "Luzes" enquanto der. No dia em que achar que "já estou por aqui", paro. Paro e sem volta. Nem que me arrependa da decisão. Mas, por enquanto, vou editando o bichinho. Há outros motivos, além da falta de entusiasmo, mas prefiro não citá-lo.
Irei sentir saudades, porque gostei da experiência. Além de divulgar os meus livros, o que redundou no interesse de vários visitantes por adquiri-los (e para todos esses enviei, com o maior prazer, um livro da preferência deles), tive a oportunidade de conhecer muitas pessoas da melhor espécie humana. E talentosas, inteligentes, sensíveis. Com muitas delas aprendi muitas coisas. E lhes ganhei a amizade. É até possível que tenha sido elas o principal responsável por eu continuar aqui, três anos depois de estrear na blogosfera. Podem não ser muitas, mas o que me importa é o valor humano e intelectual que elas possuem. Agradeço do fundo do coração a essas pessoas pelas visitas gratificantes que têm feito ao "Luzes", umas com mais assiduidade, outras com menos assiduidade. Mas eu procuro entender as razões de algumas não virem aqui com muita frequência. E agradeço até aqueles que aqui vieram por um certo tempo e depois desapareram. Agradeço até a quem veio uma única vez.
Não poderia deixar, no entanto, de registrar uma queixa no final desse texto. Uma coisa me aborrece demais. É a atitude de certos(as) blogueiros(as) de, não sei por que razão, não retribuirem a visita que lhes faço pela primeira vez. Acho isso uma falta de educação. Mesmo que a pessoa não goste do meu blogue, deveria, pelo menos, me agradecer por ter aparecido por lá. Eu nunca deixei de retribuir uma visita que alguém me fez pela primeira vez. Já me deparei com alguns blogues desinteressantes, ao lhes retribuir a visita, mas não deixei de agradecer a vinda do editor ao meu. Felizmente, foram poucas pessoas. Mas ainda hoje me deixam até mesmo magoado.
Por fim, um grande abraço a todos , aos quais renovo os votos de um 2008 ainda melhor do que lhes possa ter sido 2007.

quarta-feira, janeiro 02, 2008

UMA VELHA FOTO



Futebol , quadro de Portinari.

No dia de Natal recebi um telefonema do Quinca. É aquele amigo de infância que em uma noite de 2005 me telefonou, depois de mais de quarenta anos sem termos contato, e não quis se identificar, esperando que eu lhe descobrisse a identidade com o lançamento de pistas, o que acabou acontecendo. (Relatei o fato neste espaço.) Desta vez ele me ligou mais para me desejar um feliz ano novo, mas, em meio à breve conversa, Quinca revelou que possuía uma foto em que ele está comigo e mais três meninos. Também tenho essa foto, disse a ele. E, rapidamente, falamos sobre os outros fotografados. A foto foi tirada antes de um jogo de futebol. Não foi uma pelada, mas uma partida "oficial", pois estamos de camisa. Se não estou enganado, foi um jogo no campo do convento dos frades franciscanos, contra os alunos internos. Curioso o fato de estarem ali apenas os atacantes. Eu estou agachado, as mãos pousadas na bola, ladeado pelo Nei e Tonico. De pé, o Quinca e o Boroca, este com uma mão apoiada no meu ombro. Ao fundo aparece uma árvore frondosa. Nei, dos quatro, o menino com quem tive menos contato, era filho de uma professora, dona Nilda, uma mulher alta e muito simpática e comunicativa. Tonico, filho de Raimundo Marreiro, proprietário de uma casa comercial no mercado de Canindé. Embora me desse com ele, era mais amigo de um dos seus irmãos, o Marreirinho. Tonico tinha mais dois irmãos e uma irmã. A mãe, dona Laura, sofria de uma doença mental e vivia enclausurada em casa. Boroca era um pretinho, de uma família de uma situação financeira razoavelmente boa, pois o pai (Zé de Lima) era dono de uma agência de passagens de ônibus. Zé de Lima tinha as unhas das mãos muito crescidas, quase do tamanho das do cineasta José Mojica Marins. Era um tanto pernóstico e, por causa disso, fazia parte do anedotário da cidade. Boroca era o melhor de nós cinco e, talvez, o melhor de todos os seus companheiros de peladas. Me lembro do seu domínio de bola, dos seus belos dribles, dos seus lançamentos. Tinha futuro como jogador. Mas deve ter optado por outra profissão, pois não ingressou num time da capital, como era de se esperar. Não sei que fim levou. Vou procurar saber notícias dele, quando me encontrar com o Quinca, provavelmente ainda este semestre em Fortaleza.

Esse foi um dos raros jogos "oficiais" que fizemos. Jogávamos mesmo era pelada, que, naquela época, não tinha esse nome. Todo "santo dia" eu jogava. E quase sempre saía com os pés feridos. E à noite, antes de dormir, a mamãe passava Asseptol nos pés, sempre reclamando do meu "vício" e ameaçando contar sobre ele ao papai. Mas acho que o papai sabia que eu jogava, mas fingia que não sabia. Por conta do futebol, levei umas duas surras da mamãe, uma delas de ficar na memória.

De tanto jogar, tive um dia um problema muito grave em um dos joelhos. Não sei em qual dos dois. É capaz de ter sido no esquerdo, onde sofro de uma artrose que me aporrinha há mais de 20 anos. Mas como dizia, foi um problema grave. O joelho doía e eu andava mancando. É possível que a mamãe tenha me levado ao doutor Aramis, o médico da cidade, que, como os médicos daquela época, tinham que entender de todo tipo de enfermidade. Ele chegou a se eleger prefeito. Sei que tomei remédio em cima de remédio e nada. Já estava preocupado e a mamãe também. A preocupação dela era ainda maior porque combinada com o medo de o papai descobrir a causa da doença. Ele deve ter me perguntado alguma vez por que eu andava mancando e eu, certamente instruído pela mamãe, inventei uma história. Até que um dia apareceu lá em casa uma mulher pobre, que morava um pouco longe da cidade. Parece que a mamãe era madrinha de um filho dela. Pois essa mulher humilde foi que acabou curando o meu mal. Ouvindo mamãe relatar, já aflita, o meu caso, recomendou o uso de um tipo de planta, cujo nome não me lembro. Fazia-se uma infusão dessa planta, que essa senhora trazia. E toda noite a mamãe aplicava a infusão no meu joelho. Não me lembro quantas vezes usei o "remédio". Só sei que, em poucos dias, ele começou a surtir efeito. Até desaparecerem a dor e a dificuldade de caminhar. E já não era sem tempo, tanta a falta que sentia do meu jogo diário. E apesar da advertência da minha mãe, que não queria que eu voltasse a jogar, logo que me vi curado, voltei aos campinhos de areia. E haja Asseptol!

quarta-feira, dezembro 26, 2007

MELHORES FILMES VISTOS E REVISTOS EM 2007

Cena de "A Dália Negra".

Eis os filmes que mais me agradaram no ano que está se findando, obedecendo àqueles critérios de todo aquele que faz uma lista, principalmente o do gosto pessoal. Os filmes estão relacionados em ordem alfabética, tal como em 2006. Mas este ano, seguindo o exemplo de Moacy Cirne, resolvi, em meio a essa ordem, dar para os filmes as cotações de Excelente (***), Ótimo (**) e Especialmente Bom (*). É que alguns filmes por uma, ou algumas razões , levam uma superioridade sobre outros. Ei-los.

- O Alucinado (Buñuel/1953) **

- Ama-me Esta Noite (Mamoulian/1932) ***

- Bom Dia, Noite (Bellocchi/2003) **

- Brutalidade (Dassin/1947) *

- Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes/2005) *

- A Dália Negra (De Palma/2006) ***

- Desde Que Otar Partiu (Julie Bertucelli/2003) **

- Estrela Solitária (Wenders/2006) *

- Flores do Amanhã (Zhang Yang/2005) ***

- Noites de Lua Cheia (Rohmer/1984) **

FILMES REVISTOS

- Chaga de Fogo (Wyler/1951) **

- Fahrenheit 451 (Truffaut/1966) **

- A Mulher do Tenente Francês (Karel Reisz/1981) *

- Nunca te Vi, Sempre te Amei (David Jones/1987) *

- Paixão dos Fortes (Ford/1946) ***

- Persona (Bergman/1966) ***

- Os Profissionais (Richard Brooks/1966) **

- A Regra do Jogo (Renoir/1939) ***

NOTA - Ontem, dia de Natal, fez 30 anos que morreu o gênio Charles Chaplin.

terça-feira, dezembro 18, 2007

TRAÍDOS PELO DESEJO (The Crying Game/1992)




Este texto foi publicado num jornal de Natal, na década de 1990. Republico-o aqui, após rever o filme em DVD, há poucos dias, pois continuo com a mesma impressão que tive dele quando o assisti no seu lançamento em vídeo.


* * * * * * * * *


É possível perceber um distintivo temático em pelo menos dois filmes de Neil Jordan, este "Traídos pelo Desejo" e "Mona Lisa", de 1986. É o caso de duas pessoas, em posições diferentes, até mesmo antagônicas, na sociedade, as quais as circunstâncias obrigam a conviver juntas, mas que acabam por descobrir uma afinidade entre elas, da qual irá florescer uma grande amizade. E a preservação desse sentimento, artigo raro no mundo egoístico e insensível em que se vive, por parte de uma dessas pessoas não será mantida sem a exigência de sacrifícios, que envolvem até a própria sobrevivência. Assim acontece tanto com o motorista da prostituta de luxo do gângster ("Mona Lisa"), quanto com o guerrilheiro do IRA em "Traídos pelo Desejo". E é preciso salientar que é uma amizade entre pessoas sem a mesma identidade de cor.


Mas em "Traídos pelo Desejo" surge a presença de um terceiro, que irá concorrer para que a amizade entre o branco Jimmy Fergus (Stephen Rea) e o negro Jody (Forest Whitaker) permaneça mesmo depois da estúpida morte do segundo. No princípio a lembrança que Dil (Jaye Davidson) guarda do seu relacionamento com o soldado morto, conservando roupas e fotografias dele, faz com que Jimmy vacile em manifestar a atração que sente por ela, como se sentisse estar cometendo uma traição ao amigo. O retrato deste, vestido com o uniforme de corredor, é como se ele estivesse fisicamente na casa, impedindo o outro de consumar o desejo. Uma "presença" que se faz sentir até nos sonhos de Jimmy.


Quando Jimmy descobre a verdade identidade sexual de Dil, é assaltado por uma sucessão de sentimentos e reações, que vão da aversão, do desapontamento, da sensação de esbulho, até culuminar na amizade, inspirada na que existia (existe) entre os dois homens. A última visão que ele tem de Dil, antes de se entregar à polícia, é a de Dil caminhando pelo gramado, quase a mesma com que o soldado aparecia em seus sonhos.

Esse é um belo e poético filme e de uma ousadia que, no entanto, em nenhum momento resvala na grosseria ou na vulgaridade, por causa da delicadeza da direção e do roteiro, também de Jordan. Ao travestimento de Dil, ignorado apenas por Jimmy, não se ouve a mínima alusão entre os que participam da sua convivência, como se ele fosse encarado com naturalidade e mesmo com respeito. Interessante é que a reação daquele amante de Dil, quando é repelido, não se manifesta com agressões verbais, mesmo quando Dil atira pela janela as roupas e outros pertences dele.

Mas qualquer resenha sobre o filme não pode omitir a interpretação de Jaye Davidson. Não dá pra entender por que o Oscar de ator coadjuvante foi parar nas mãos de Gene Hackman, um ótimo ator, mas cujo papel em "Os Imperdoáveis" exige parcos recursos interpretativos. Ao contrário do papel de Dil, de grande complexidade, cheio de nuanças, com o qual Jaye Davidson diz ao que veio em sua estréia no cinema.
* * * * * * * * *
NOTA ATUAL (1) - Ao que parece, Jaye Davidson desistiu da carreira de ator, pois fez apenas 2 filmes depois de "Traídos pelo Desejo", o último deles em 1995.
NOTA ATUAL (2) - A historinha do escorpião e da rã, narrada por Jody a Jimmy e por este a Dil (por coincidência, os narradores estão como prisioneiros) já tinha sido contada no filme "Grilhões do Passado", de Orson Welles (1955).

terça-feira, dezembro 11, 2007

PRAÇA DA BASÍLICA



Foto da Basílica de Canindé vista da praça, retirada de

http://www.paroquiadecaninde.com.br/

Eu me reunia todas as noites com os meus amigos na praça da Basílica, exceto quando ia à sessão do Cine Canindé, ou ficara em casa de "castigo" por alguma travessura que cometera. Sentados num banco, ou em mais de um, conforme o número de meninos, comentávamos, basicamente, sobre cinema e futebol. Falávamos dos nossos heróis da tela, o Durango Kid, Johnny Mac Brown (os irreverentes o chamavam de Johnny bate bronha), Roy Rogers e outros mais. Ríamos das palhaçadas dos "doidinhos", como eram conhecidos os atores cômicos daqueles faroestes. Cada mocinho tinha o seu "doidinho" e o mais popular era Smiley Burnette, que trabalhava com o Durango Kid. Era um pouco estrábico e usava o chapéu de uma maneira engraçada. Comentávamos os seriados e tentávamos descobrir como o mocinho iria se livrar do perigo no último episódio assistido. Ansiosos, roendo as unhas, aguardávamos a semana seguinte para saber como ele se safaria. No futebol torcíamos pelos quatro grandes do Rio, então capital do país. Os de maior torcida eram Flamengo e Vasco. Raros os que torciam pelo Botafogo e pelo Fluminense. Houve o caso do Francisco José, filho de Seu Edmundo, dentista da cidade. Conheci-o torcendo pelo Botafogo, mas de uma hora pra outra ele virou a casaca para o Vasco. As más linguas diziam que ele fora aliciado por um rapaz fanático pelo Vasco, em troca de uma bola. Não sei. Só sei que por um certo tempo ele se tornou uma persona non grata entre os torcedores do Bota e, principalmente, do Fla. Se quase nunca discutíamos quando o assunto era cinema, no futebol alguns chegavam quase às chamadas vias de fato em defesa do seu time. Muitas vezes deixávamos o banco e íamos apostar corrida ao redor da praça. Nem todos iam. Mas alguns, como eu, não dispensavam a corrida. E chegava em casa suado, cansado, mas satisfeito, porque quase sempre saía vencedor nas disputas.

Mas o tempo ia passando, fomos crescendo e começávamos a prestar atenção nas moças que circulavam pela praça, ou que ficavam num banco acompanhadas dos namorados. Uma noite estava com alguns amigos e perto do nosso banco um casal namorava. O rapaz era Luís Paiva, que morava numa fazenda perto da cidade, mas não me recordo da moça. Ficamos observando atentamente os dois. Os namoros daqueles tempos. Se bem me lembro, Luís estava com uma mão pousada no ombro da moça e a outra entrelaçada com uma mão dela. E um de nós disse algo assim: "quando eu começar a namorar, vou fazer igual ao Luís". Já nessa época tínhamos a companhia de adultos no banco, ou quando ficávamos em pé, numa das laterais da praça, vendo as moças darem voltas. E algum dos adultos soltava um galanteio para uma das moças ou comentava as formas anatômicas de algumas. Uma vez, estava num banco, veio à tona entre dois rapazes uma discussão sobre quem teria mais valor, o homem rico, ou o homem culto. Ah, foi uma discussão longa e nem um dos dois, como ocorre quando duas pessoas defendem uma questão, foi convencido pelo outro. Não satisfeitos com os próprios argumentos, recorriam a pessoas que passavam. Um deles foi um dos meus irmãos, que volteava com amigos. E o meu irmão ficou mais ou menos em cima do muro.

E havia as músicas do serviço de alto-falante. Eram sempre as mesmas, uma vez na vida , outra na morte, aparecia uma música nova. (Mas quando ouço qualquer daquelas músicas, tocadas toda noite, me vem a lembrança daqueles tempos, acompanhada de uma grande saudade.) E havia as mensagens musicais. "Alguém oferece a alguém"...

Não sei se já falei nisso, se falei, vou repetir. Meu pai estabelecia a hora de os filhos voltarem pra casa. Não podíamos passar das nove e meia. Já estudava em Fortaleza, usava o meu reloginho, quando uma noite participava de um animado papo na praça. Em dado momento, olhei o rosquofe: estava perto da hora fatal. Disse que ia embora, então o Pezim me perguntou por quê. Nunca soube o nome dele. Era chamado de Pezim, porque tinha um pé menor do que o outro e ainda com um defeito que o fazia andar mancando. Era mais velho do que eu, bem mais velho. E disse o motivo. Com a autoridade de uma pessoa mais velha, falou um pouco duro pra mim, que eu já era um rapaz, não podia mais me submeter a uma imposição daquela. Fiquei calado e ao mesmo tempo hesitante entre cumprir a exigência do meu pai ou desrespeitá-la. A conversa estava tão boa. E a hora se aproximava. Foi quando falou mais alto a autoridade paterna. Eu sabia que se passasse da hora, iria ser punido com a proibição de ficar uns dias sem ir para a praça da Basílica. E eu não podia passar sem a praça. Faltava pouco para as nove e meia, mas a minha casa não era longe. Deixei apressado os amigos, que devem ter me achado um babaca. Talvez, no entanto, os pais deles não fossem severos como o meu. Ao me aproximar de casa, avistei o "velho" encostado ao portãozinho, a mamãe na cadeira sobre a calçada, como fazia todas as noites. Ao me avistar, papai puxou o relógio do bolso do pijama. Olhei também o meu e vi que passava um pouquinho das nove e meia. Tive a certeza de que iria reclamar do atraso mínimo. Mas ele não disse nada, eu entrei, fui trocar de roupa e fiquei no meu quarto.

Praça da Basílica de Canindé. Uma "madeleine" da minha infância.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

DESDE QUE OTAR PARTIU... (Depuis Qu' Otar Est Parti.../2003)




A francesa Julie Bertucelli demonstra talento na sua estréia no cinema (já tinha dirigido um filme para a tevê) neste "Desde Que Otar Partiu"..., uma produção franco-belga. Antes ela fora assistente de alguns diretores, como Bertrand Tavernier ("Um Sonho de Domingo") e Kielowski ("A Dupla Vida de Veronique", entre outros grandes filmes). E o seu pai Jean-Louis Bertucelli também é diretor. É com firmeza, mas sobretudo com sensibilidade e delicadeza, os silêncios, os gestos, as expressões faciais substituindo as palavras em certos momentos, que Julie Bertucelli narra essa história de três mulheres de gerações diferentes, a avó, a filha viúva e a neta, que moram juntas num apartamento em Tbilisi, capital da Geórgia, um dos países que integravam a União Soviética.
O Otar do título é filho da velha Eka (Esther Gorintin), que vive em Paris, para onde fora com o objetivo de seguir a carreira de médico, porém lá só consegue se manter no ofício de pedreiro. Embora sem aparecer, e isso já ocorreu em outros filmes, ele é um personagem importante. A sua presença se faz sentir nas cartas que manda para a mãe (às quais junta um dinheirinho) e por um eventual telefonema. E pela rivalidade que desperta na irmã Marina (Nino Khomasuridze) na disputa (que só está na cabeça dela) pelo amor da mãe, que claramente o prefere à filha.
O roteiro, co-escrito pela diretora, privilegia a participação da jovem Ada (Dinara Drukarova). Ela intervém nas constantes discussões entre a avó e a mãe, que, às vezes, são originadas por diferenças políticas, pois a velha Eka conserva a sua admiração por Stalin. Sem este, na visão dela, o seu país não estaria passando por problemas, inclusive de administração. Lê para a avó as cartas enviadas pelo filho e livros de autores franceses e faz-lhe massagens nos pés. É Ada que está em casa quando chega de Paris o amigo de Otar, com a mala deste, que contém os seus pertences. Sem ser vista pela avó, guarda a mala e quando a avó surge para ver quem é o visitante, ela, através de gestos, o faz entender que a velha não sabe da morte do filho.
Aliás, a parte mais significativa do roteiro é a decisão tomada por Marina de esconder da mãe a morte de Otar. Para isso, ela se dispõe a escrever as cartas que o irmão continuaria escrevendo se estivesse vivo. Essa atitude de Marina, no entanto, faz aflorar um sentido de ambiguidade, pois pode ter sido determinada não apenas pelo desejo de poupar a velha mãe da dor da perda do filho querido. E é justamente por Ada que o espectador é alertado para isso, quando a jovem acompanha Marina e o amante à casa de campo da avó. Num momento de raiva (não se sabe exatamente por quê), acusa Marina de ter em mente um objetivo na sua atitude: ao iludir Eka de que Otar continua vivo, ela pretenderia, na verdade, lutar para um dia conquistar o coração da mãe. Para Ada, com Otar morto, isso seria impossível.
Já perto do final a ação do filme se transfere para Paris, com a ida da três mulheres àquela cidade, determinada por Eka que quer visitar o filho. E, lá, o roteiro, que já era bom, evolui na qualidade. É quando a velha, sozinha, vai procurar o apartamento onde morava Otar. E ao saber de um vizinho que o filho está morto e recebe dele uma carta que destinara a Otar, descobre, então, toda a trama armada pela filha. É, talvez, o grande momento de "Desde Que Otar Partiu"... A velha fica um pouco sentada no topo da escada do apartamento, observando a porta vermelha do apartamento de Otar. Depois vai a uma praça, onde senta num banco. Em certo momento, retira do bolso a carta e é aí, talvez, que toma a decisão de participar também do jogo. Ou seja, o filho está vivo. E ao voltar para o hotel, diz à filha e à neta (preocupadas com a sua ausência) que fora visitar Otar, mas não o encontrou, pois ele fora embora para os Estados Unidos, em busca de melhores oportunidades de trabalho.
O filme termina com Ada (e só poderia terminar mesmo com ela) deixando o aeroporto de Paris. Resolvera ficar na França. É uma resolução súbita, impulsiva e inesperada, tomada quando, afastada da mãe e da avó, está numa livraria e ouve o aviso de embarque. Bem realizada a cena em que ela, através do vidro da sala de embarque, por meio de gestos, comunica a Eka e Marina a sua decisão. Não há falas por parte de ambas e há um pequeno afago de Eka em Marina, que não resiste às lágrimas. Nesse ato de Eka fica a esperança de que Marina possa vir, no futuro, a conquistar o coração da mãe. Ambas perderam os filhos, e esse fato poderá uni-las na dor e na saudade e fazer cessarem os desentendimentos, as discussões entre elas.
* * * * * * * * * * * * * * *
Uma curiosidade. A atriz Esther Gorintin (georgiana, como os demais integrantes do elenco) estava com 89 anos durante as filmagens. E estreara no cinema há apenas 4 anos antes, portanto com 85 anos nas costas. E pelo que me informei, continua em atividade.

quarta-feira, novembro 28, 2007

A VELHA SENHORA E A FILHA


"Não sei porque você foi inventar de marcar essa consulta para hoje".

Pela terceira vez a velha senhora queixava-se à filha. A filha fez uma careta, franzindo os cantos da boca, e desviou os olhos para o televisor ligado. Ainda em casa a mãe começara a cantilena, como se não estivesse convencida de que a consulta fora marcada para aquele dia, graças à desistência de uma pessoa. Não fora isso, ela só seria atendida dali a quase um mês.

O televisor exibia a novela das seis e todos os presentes, à exceção da velha senhora e da filha (esta olharia com a mesma indiferença para um quadro que estivesse no lugar do aparelho), acompanhavam atentamente as cenas. A filha, às vezes, olhava para a recepcionista, que, quando não estava ocupada em atender a alguém, tinha o rosto inclinado para o televisor. Por alguns minutos ela conseguiu errar o olhar entre a telinha, a recepcionista e as pessoas sentadas a sua frente. Parecia acreditar que, evitando virar-se para a mãe, esta parasse de aborrecê-la com queixas e resmungos. Mas foi como se a velha senhora tivesse concedido uma pequena trégua, e, ao término dela, retomasse o ataque com uma mais decidida determinação.

"Você está cansada de saber que não gosto de sair de casa no dia dos meus anos". Dessa vez a filha deu um muxoxo, conservando-se calada. Um som de risadas chamou-lhe a atenção para o televisor e ela viu uma cena cômica, que, no entanto, não lhe arrancou sequer um sorriso. As risadas não tinham ainda cessado, quando ela voltou a ouvir a voz da mãe, e foi quase um alívio que sentiu ao perceber que a velha senhora escolhera outro alvo para onde apontar o seu azedume. "Seu pai continua ignorando o dia dos meus anos. Que custava dar um simples telefonema? Mas não. Ele só tem atenção para aquela sujeita". Era um assunto a que ela voltava a cada aniversário. A filha aprendera a não mais discuti-lo, porque a mãe achara desde a primeira vez que ela assumia a defesa do pai. Nesse ponto lhe dava razão, pois ficara ao lado do pai - o único dos filhos do casal - na questão daquela separação. No entanto, contava com uma arma poderosíssima para enfrentar o assédio da mãe, desde que há uns três anos um dos irmãos deixara de frequentar-lhes a casa, em consequência de uma briga violenta entre a sua mulher e a velha mãe. "E o queridinho da senhora? Nem no aniversário da senhora ele aparece lá em casa e a senhora não diz nada". Mas o Ronaldo nunca deixa de me telefonar no dia dos meus anos. Já hoje ele me deu os parabéns. Se não vem me visitar, é por causa daquela cascavel". "Ele não quer é contrariar a mulherzinha dele. O que ele é, é um barriga-branca".

Foram interrompidos pelos acordes da Marcha Nupcial, provindos da televisão. A velha senhora virou o rosto para o aparelho e por um instante concentrou-se na cena de um casamento. Já a filha permaneceu na mesma posição, como se não tivesse ouvido a música.

"Não sei o que o meu filho viu naquela sujeita. Desde a primeira vez que botei os olhos naquela sirigaita que percebi que não era a mulher certa para o Ronaldo. Muito metida, sem educação, a boca suja. E nem bonita é. Ninguém tira da minha cabeça que aquilo foi macumba". "Ô que bobagem, mamãe", interrompeu a filha, que dessa vez não pôde reprimir um sorriso". "Bobagem não senhora. Tenho certeza que foi macumba e macumba das boas. O meu filho estava quase noivo da Estelinha. Uma moça de ouro. Fina, educada, atenciosa (a nora talhada para a senhora dominar ,) e bonita ainda por cima. A Estelinha jamais iria afastar o meu filho de mim. Eu pedi tanto ao Ronaldo pra não casar, mostrei os defeitos daquela mulher, mas não houve jeito".

Uma gritaria no vídeo interrompeu mais uma vez a velha senhora e a fez voltar-se para o televisor. Agora acompanhada pela filha. Os recém-casados partiam para a lua-de-mel, saudados por uma pequena multidão. A cena talvez tenha despertado na filha a lembrança de um outro casamento, este na vida real, que não pôde ser concretizado. "A ele a senhora pediu e ele não atendeu. Mas comigo a senhora não teve essa consideração. Simplesmente me proibiu de casar". "E você ainda acha que teria futuro um casamento daquele? Um pé-rapado, que nem presença tinha". "A senhora não gostava dele, porque ele era pobre. Mas era um homem bom e me queria bem. E eu também gostava dele. Eu é que fui uma besta, não fugindo com ele. Tanto mais que o papai não era contra o casamento, até simpatizava com ele". "Seu pai? Essa é boa - a velha mãe soltou uma risada, que chamou a atenção de uma moça, sentada de frente para elas. Seu pai o que é, é a falsidade em figura de gente. Tratava bem o seu namorado, mas depois vinha falar mal dele pra mim".

A filha sentiu o impulso de insultar a mãe, revoltada por ela pretender dividir com o ex-marido a culpa pelo casamento irrealizado, mas foi contida pelo receio de causar um escândalo ali, o qual, parecia-lhe, aquela moça estava farejando, pois não tirava mais a atenção dela, desde aquela risada da velha senhora. E talvez essa sujeição às regras sociais, impedindo-a de desrespeitar a mãe, quando já não se sentia tão tolhida pelo despotismo dela, tenha lhe revelado, em toda a plenitude, a impotência que marcou a sua vida. Por ela jogara fora a chance de viver ao lado do homem que a amava e desperdiçara a vida ao lado de uma mulher tirânica.

A mãe não parara de falar, atraindo agora a atenção de outras pessoas além da moça, já que a novela terminara e ninguém se interessava pelo jornal. De súbito a filha sentiu uma vontade incontrolável de chorar. Disposta a não resistir às lágrimas, levantou-se para sair em busca de um lugar isolado. Vendo-a se afastar, a mãe perguntou com voz autoritária pra onde você vai? ela respondeu que ia tomar um pouco de ar. "Não demore, que nós já vamos entrar", disse, e aproveitou para cobrar da recepcionista a vez de ser atendida.

Com os olhos úmidos, a filha atravessava a porta que dava acesso ao corredor, quando sofreu um encontrão com um casal de crianças que, à dianteira dos pais, chegavam alegres e gritalhonas. Passou as mãos pelo corpo dolorido, em seguida foi refugiar-se no fundo do corredor. Despovoado, quase às escuras, aquele recanto favorecia a sua necessidade de desabafo.A sua frente erguia-se uma árvore frondosa. Ali se deixou ficar, chorando baixinho, até ser chamada pela recepcionista. Puxou o lenço e enxugou cuidadosamente as lágrimas. Na sala, a mãe a esperava, de pé. Estendeu o braço para a filha e as duas se afastaram a passos lentos.

- Conto do meu livro "Clarita" (1993).

- A foto acima é uma imagem de "Desde que Otar Partiu"... (2003), um sensível e delicado filme de Julie Bertuccelli, do qual deverei falar provavelmente na próxima postagem.

quarta-feira, novembro 21, 2007

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE GILDA


"Nunca houve uma mulher como Gilda". Essa frase correu o mundo, impressa no cartaz de Gilda. E o personagem-título é Rita Hayworth. Aos 28 anos, no auge da beleza, Rita personificava o ideal da mulher, fosse para os homens, fosse para as mulheres. A femme fatale que inferniza a vida de Johnny Farrell (Glenn Ford), principalmente quando, para enciumá-lo, se envolve com outros homens. E ainda por cima casada com o melhor amigo de Farrell: Ballin Mundson (George Macready).
Rita é, de longe, o atrativo de Gilda, no seu esplendor físico e na sensualidade, esta atingindo o ponto mais alto quando ela canta (dublada por Anita Ellis) "Put The Blame On Mame". Sobre esta cena, vale transcrever as palavras de Barbara Leaning, autora de "If This Was Happiness", sua biografia sobre a atriz. "Rita se despoja na realidade somente de suas longas luvas negras, todavia seus quadris oscilantes, seus olhares lúbricos e a entrega erótica que interpreta com sentido magistral tornaram a cena uma obra mestra da insinuação proibida".
Além de Rita, no entanto, o filme de Charles Vidor possui outros elementos positivos. O roteiro, por exemplo. Curioso é que foi rascunhado por Jo Eisinger e elaborado, na forma definitiva, por Marion Parsonnet; ou seja, duas mulheres, que, juntas a Virginia Van Upp, responsável pela produção, realçam a presença feminina de "Gilda", um fato de causar espanto na Hollywood da época. (É de se perguntar se não tenha sido pela intervenção delas que haja quem identifique um componente homossexual na amizade entre Farrell e Mundson, que, confesso, não chego a perceber. Mas...)
O roteiro joga com dois elementos básicos. Um é o de mostrar coisas e pessoas sob uma aparência que não é precisamente a delas, ou a única delas. Exemplos: a bengala usada por Mundson, que oculta uma afiada lâmina; o comportamento de Gilda quando na presença de Farrell, cuja verdadeira finalidade é a de provocá-lo. O outro elemento é a intensa relação de amor-ódio, atração-repulsão entre Gilda e Farrell.
É provável que "Gilda" se tivesse convertido numa obra-prima se, por trás da câmera, houvesse um diretor com o talento e a relativa independência (levando em conta o cinema hollywoodiano) que Charles Vidor não possuía. Apesar disso, ele conduz o filme com competência e, pela eficiência do roteiro, da interpretação do trio principal, e, sobretudo, do carisma de Rita Hayworth, é um filme que tem mantido o seu interesse ao longo de mais de 60 anos, valendo a pena ser visto ou revisto.
* * * * * * * * * * * *
NOTA - A opinião da biógrafa de Rita foi transcrita do livro "A Altura e a Largura do Nada", de Ignácio de Loyola Brandão (Ed. Jaboticaba/2006).

quarta-feira, novembro 14, 2007

UM CONTO DE BARTOLOMEU CORREIA DE MELO(RN)

CAVILAÇÃO
Todo causo cabe três estórias:
a tua, a minha e a verdadeira.
Dito de boa Sabença
* * * * * * * * * *
AH , Genival, que injúria me prega! Nada disso que está pensando, não!... Já lhe disse que não! Nego e renego! Ora, faz mesmo questão que lhe explique? Por mim, nem carecia... Pois bom, sem tirar nem botar, lhe conto.
Pois bom, todo dia, logo cedo, cheiroso e engomado, você corre a trabalhar de balconista. Muito que lhe bem. Toda noite fica ainda fora, fazendo biscate de garçom. Coisa que desgosto, mas me conformo, ainda que carecida. Se acha que, assim fazendo, nada me falta... Disso, faz tempo, deixei de reclamar. Preguiça não enche barriga. Tenho mesmo que agradecer, bem retribuindo seus cuidados de bom marido.
Hoje mesmo, larguei minhas costuras, lembrada de passar punhos e colarinhos de quantas camisas. Mas a goma tinha acabado e também faltava carvão pro ferro de engomar. Ora, essas faltinhas, você não perdoa mesmo, pois não? No menos das vezes, não diz, mas palpito que me pense mulher preguiçosa e relaxada. Não mereço, mas esqueço tais ninharias.
Adondo comprar goma e carvão, hora daquelas? Mesmo debaixo de quanta chuva, devia de cumprir essa obrigação De manhã cedinho, havera meu homem de estar todo lorde, arrumado e engomado, pra bem servir quem servido fosse.
Daí avante, tudo fiz mais que avexada. Enfiei o vestido assim mesmo, nadinha por debaixo, peguei a cesta e rumei pro mercado, sem avaliar se aberto ou fechado estaria. Com pressa, esqueci da sombrinha. Nas ruas, chuva muita e nen viv'alma; somente a devota aqui, zanzando atrás de goma e carvão. Ensopada e friorenta, vestido colado nas formas, como ainda estou. Passava na esquina da rua Esquerda, quando, sem ninguém à vista, escutei um chamado vindo do Beco Mirim. Sou mulher direita, você sabe que não atendo a qualquer psiuzinha à-toa! Mas, de novo, aquela vozinha me chamou. Nada de chamamento safadeza, não. Era gritinho rouco, fraquecido , embora aperreado, dizendo meu nome com todo respeito.
- Ei, dona Francleide!...
Fui virando o rosto devagar, olhando enviesado, pronta pruma honesta rabiçaça. Mas findei espiando direitamente e não tinha ninguém. Já seguia caminho, rindo do disparate, quando chamaram outra vez. A voz vinha de baixo, rente ao chão.
- Dona Francleide!...
Ora, ninguém caído estava, nem ao menos acocado, naquele bequinho sem esgotos nem porões. Somente um sapo, cururuzão avantajado, tamanho quase dum peba, ali parado num pé-de-parede. Dei um tunco e já passava adiante quando percebi que era justamente aquele sapo que chamava. Fiquei pasma com tal disparate. Sapo comum, agrandalhado, mas comum, cururu besta de beira-de-corgo. Se bem que algo emagrecido, sem aquele bucho inchado que todo sapo carrega. Avaliei ser leseira minha. Mas aí, pulando pra minha banda, o cujo falou, meio choroso.
- É com vosmicê mesmo, dona Francleide!
UFa, no tamanho susto, fiquei presa no chão, abismada naquilo.
- Somente pessoa de alma pura e justa, pode me valer nessa desventura! - o bicho seguiu dizendo, muito convencedor.
Eu queria correr e não podia, gritar e nem gemia. Quando alembro chega me arrupio! Não desfaleci por falta de acudimento, juro! Daí que o sapão chegou mais perto, olhou pros lados e...
- Não tenha medo, dona Francleide, não quero nem posso lhe fazer mal. Apenasmente imploro sua ajuda caridosa. Se digne de ouvir, com toda compaixão, a estória do meu penoso padecer!
Eu não disse que sim nem que não, olhando arregalada praquele bicharoco magrelo e nojento. Ele chegou pertinho e pulou pra dentro do meu cesto. Argh, que repunança; quase rebolo fora aquilo tudo! Entonce, com todo doce que pode a voz dum sapo, me propostou:
- Vambora pralgum lugar cômodo e seguro. Mode, em sossego e segredo, lhe contar minha triste sina.
A chuva seguia pesada, ensaiando trovejos e relampeios. Adonde, nesse atrapalho, havera uma mulher honrada de buscar arrego? Nem responda, Genival! Voltei pra casa sem trocar palavra com o dito, querendo que tudo findasse num sonho maluco. Aqui chegando, me pediu portas fechadas e coração aberto; pronto que obedeci. Aí ele saltou fora do cesto e pinotou pra nossa cama, desacanhado como todo cururu. E ficou de lá, muito sapamente, me olhando esbugalhado, o papo batendo vento. .. Eu, embora que ainda meio confusa, estava mais calma e demais curiosa naqueles aconteceres. Pelo sim, pelo não, somente encostei portas e janelas. Ainda sem fala, bebi água, respirei fundo e tornei ao quarto, rezando pra que fosse somente imaginação. Mas o danado ainda lá estava, mais sapo do que nunca, atento num rola-bosta que voejava rodeando o candeeiro. E me mandou, muito despachado:
- Sente na beira da cama e preste atenção!
Procurei o lado mais longe dele,pois ainda me metia medo, embora que misturado com troncho respeito. Então, assim me aclarou:
- Meu nome é Regivaldo e não nasci sapo, não. Na verdade,sou um príncipe, mancebo nobre e bem apessoado...
Nesse dito, debochei um riso que logo-logo murchou. Pois ele, toando honesta verdade, contava o que agora lhe conto.
- Sempre me encabulei pra banda de mulher - começou dizendo - tanto que nunca tive namorada, por pura vergonha de falar nessas coisas. E veio daí minha perdição. Acho que, no fundo no fundo, mais aprecio jogos de paz que artes de guerra. Fico contente junto aos meus pajens, rapaziada alegre e formosa. A rainha minha mãe botou reparo no meu fastio pelas moças. E, meio escabriada, me cobrou aclaramento. De pronto que lhe respostei: "Arre, mãinha, minha fina machice dasaguenta daquelas frescurinhas dela, viche!" Não se ria, não Genival, mode algum malembaraço no desfiar da estória.! Sinta quanto engasgo de tristeza na sina infeliz desse coitado! E o sapo seguia contando...
Até que, num malembrado dia, uma princesa bonitinha e poderosa, mas sem tico de simpatia, se arriou toda por mim. E botou-se me cercando, fazendo por onde noivar comigo. Eu, nisso muito enrolado, ficava desjeitoso pra mandá-la embora; adiando e atrasando resposta que nunca vinha. Até que , o reizinho pai dela veio falar com minha mãe rainha, pra ajuste de casório. Muito feliz com a proposta, sem ao menos me perguntar mãinha pronto que aceitou. Pobre de mim! Obrigado a juntar todas as forças, na hora e vez do noivado, pra dizer, perante os convidados, que não queria casar de jeito nenhum! Ah, naquilo chegou-me desgraça! No quando, desarvorado, gritei que nem morto casaria, a linda princesa, me acredite, se transformou numa bruxa horrorosa! Piedade de nós! E num só gesto mágico fez que a rainha minha mãe e toda sua corte virassem insetos de várias diversidades. Gafanhotos, besouros, baratas e mariposas, que logo se espalharam mundo afora. E pra mim, teso de medo, entre risadas de despeito, a escomungada me agourou pior maldição.
- De agora em diante, profetou, serás um sapo cururu ronceiro e feioso e, como todo sapo, comerás insetos de toda qualistria! Mas a dúvida será teu castigo. Nunca saberás se cada bicho que engoles seia teu pai, tua mãe ou teu pajem predileto. E nessa incerteza passarás fome, vagando pelo mundo em busca de mulher séria e bondosa que te redima os pesares. Pra quebrar o encanto e voltares a ser príncipe novamente, tua salvadora deverá banhar-te com sabonete de ervas e água-de-cheiro. Mas quando tornares a ser humano estarás nuzinho e ninguém, a não ser tal boa mulher, poderá ver-te assim.
Foi por isso, Genival, que alguém saiu correndo do banheiro, pulou a janela e se escafedeu. E deixe de sua maldade besta, se enciumando daquele unzinho trejeitoso... Ah, pobre príncipe, tão belo, tão delicado, esguio que nem Biliu de Ingrácia!... Capaz de virar sapo de novo, o bichinho!
Tudo por culpa sua, Genival, nesse jeito estabanado, entrando assim sem avisar! Tibes! Deus que lhe perdoe tão injustos malpensares!... E se quiser roupa aprontada, que arranje goma e carvão!
Natal/set/2006

quarta-feira, novembro 07, 2007

NOMES PRÓPRIOS TÃO IMPRÓPRIOS



Li na revista "Língua Portuguesa", última edição nas bancas, que um casal chinês quis dar ao filho recém-nascido o nome @. Sim, o sinal que aparece nos e-mails, chamado de arroba no Brasil. Segundo a revista, a justificativa dada pelo casal é que @ "quando traduzido para o chinês, tem o mesmo som dos ideogramas em mandarim para a expressão 'eu o amo'. O nome da criança, portanto, seria uma homenagem ao amor que os pais têm por ela". Fiquei imaginando se algum pai brasileiro, da espécie de internautas que chegam quase à idolatria ao computador, quisesse batizar uma filha com o nome de Arroba. Não queria estar na pele da coitada. As gozações que iria sofrer ao longo da vida, as piadas sobre o seu nome, proporcionadas pelo fato de que a palavra também significa uma unidade de peso, equivalente a 15 quilos, usada para produtos agropecuários.

Não consigo entender o que passa pela cabeça de certos pais na hora de escolherem um nome para o filho. Há nomes que ensejam a pensar que o pai não estava com o juízo perfeito na ocasião. E não seria também o caso de, por não desejar o nascimento do filho (ou filha), o sujeito quisesse lhe dar um nome que o ferisse por toda a vida, como uma chaga? Há alguma coisa que não sabemos qual (a não ser o péssimo gosto), que leva um pai a nomear uma filha de Merdolina. E por falar nesse nome, me lembro de quando trabalhava na seção de ordens de pagamento. Muitas vezes a orpag era transmitida por telefone. E um dia recebi uma mensagem de uma agência de Fortaleza. O nome da beneficiária era Medda. O colega até me advertiu, em tom de brincadeira: "Cuidado, Sobreira, pra não trocar o primeiro "d" por um "r" quando for escrever o nome da moça".

Em certos nomes não há um componente escatológico como o de Merdolina, por exemplo. O caso é apenas de mau gosto mesmo. Quando trabalhei no interior do Ceará tive uma namorada chamada Primitiva. Na mesma cidade encontrei um colega com o nome de Oceano Atlântico. Oceano Atlântico Linhares, que tratávamos apenas por Oceano. Outro exemplo, o nome do excelente ator Lima Duarte (foto acima, in Google) : Aryclenes Venâncio Duarte. Ele abomina o seu prenome, segundo soube pelo seu colega (já falecido) Paulo Gracindo, num espetáculo solo que este apresentou em Natal na década de 1980. Paulo, que também não gostava do seu verdadeiro nome (Pelópidas), revelou que quando alguém da Globo chamava Lima Duarte por Aryclenes (pra mexer com ele), levava como resposta uma expressão chula muito usada. "Um dos nomes é bem pequenininho", acrescentou. O sobrenome Vandré foi criado pelo próprio compositor, em parceria com Théo de Barros, da obra-prima "Disparada". Ele abreviou o segundo nome do pai, que era, vejam só, Vandregísilo.

Ainda nesse caso de apenas mau gosto estão aqueles nomes que encerram uma homenagem. Quando estudava no Liceu, de Fortaleza, havia um colega chamado Irapuan Índio do Piauí. Numa aula de Português, o professor, ao fazer a chamada, fez uma gozação com o nome dele, que arrancou risadas da classe. Ele carregou o fardo do nome enquanto o pai estava vivo. Com a morte deste, Irapuan (de quem sou amigo até hoje e, como eu, se tornou funcionário do Banco do Brasil), decidiu suprimir esse incômodo "Índio do Piauí". O filho de Oswald de Andrade, fruto do seu casamento com Patrícia Galvão (Pagu), tinha por nome completo Rudá Poronominare Galvão. Rudá não sei a razão. Já Poronominare é uma entidade indígena, cujo nome significa "dono da terra e do céu". É o que revela a matéria "Marcas de batismo" dessa ótima revista, que não conhecia, escrita por Luiz Costa Pereira Junior.