terça-feira, dezembro 18, 2007

TRAÍDOS PELO DESEJO (The Crying Game/1992)




Este texto foi publicado num jornal de Natal, na década de 1990. Republico-o aqui, após rever o filme em DVD, há poucos dias, pois continuo com a mesma impressão que tive dele quando o assisti no seu lançamento em vídeo.


* * * * * * * * *


É possível perceber um distintivo temático em pelo menos dois filmes de Neil Jordan, este "Traídos pelo Desejo" e "Mona Lisa", de 1986. É o caso de duas pessoas, em posições diferentes, até mesmo antagônicas, na sociedade, as quais as circunstâncias obrigam a conviver juntas, mas que acabam por descobrir uma afinidade entre elas, da qual irá florescer uma grande amizade. E a preservação desse sentimento, artigo raro no mundo egoístico e insensível em que se vive, por parte de uma dessas pessoas não será mantida sem a exigência de sacrifícios, que envolvem até a própria sobrevivência. Assim acontece tanto com o motorista da prostituta de luxo do gângster ("Mona Lisa"), quanto com o guerrilheiro do IRA em "Traídos pelo Desejo". E é preciso salientar que é uma amizade entre pessoas sem a mesma identidade de cor.


Mas em "Traídos pelo Desejo" surge a presença de um terceiro, que irá concorrer para que a amizade entre o branco Jimmy Fergus (Stephen Rea) e o negro Jody (Forest Whitaker) permaneça mesmo depois da estúpida morte do segundo. No princípio a lembrança que Dil (Jaye Davidson) guarda do seu relacionamento com o soldado morto, conservando roupas e fotografias dele, faz com que Jimmy vacile em manifestar a atração que sente por ela, como se sentisse estar cometendo uma traição ao amigo. O retrato deste, vestido com o uniforme de corredor, é como se ele estivesse fisicamente na casa, impedindo o outro de consumar o desejo. Uma "presença" que se faz sentir até nos sonhos de Jimmy.


Quando Jimmy descobre a verdade identidade sexual de Dil, é assaltado por uma sucessão de sentimentos e reações, que vão da aversão, do desapontamento, da sensação de esbulho, até culuminar na amizade, inspirada na que existia (existe) entre os dois homens. A última visão que ele tem de Dil, antes de se entregar à polícia, é a de Dil caminhando pelo gramado, quase a mesma com que o soldado aparecia em seus sonhos.

Esse é um belo e poético filme e de uma ousadia que, no entanto, em nenhum momento resvala na grosseria ou na vulgaridade, por causa da delicadeza da direção e do roteiro, também de Jordan. Ao travestimento de Dil, ignorado apenas por Jimmy, não se ouve a mínima alusão entre os que participam da sua convivência, como se ele fosse encarado com naturalidade e mesmo com respeito. Interessante é que a reação daquele amante de Dil, quando é repelido, não se manifesta com agressões verbais, mesmo quando Dil atira pela janela as roupas e outros pertences dele.

Mas qualquer resenha sobre o filme não pode omitir a interpretação de Jaye Davidson. Não dá pra entender por que o Oscar de ator coadjuvante foi parar nas mãos de Gene Hackman, um ótimo ator, mas cujo papel em "Os Imperdoáveis" exige parcos recursos interpretativos. Ao contrário do papel de Dil, de grande complexidade, cheio de nuanças, com o qual Jaye Davidson diz ao que veio em sua estréia no cinema.
* * * * * * * * *
NOTA ATUAL (1) - Ao que parece, Jaye Davidson desistiu da carreira de ator, pois fez apenas 2 filmes depois de "Traídos pelo Desejo", o último deles em 1995.
NOTA ATUAL (2) - A historinha do escorpião e da rã, narrada por Jody a Jimmy e por este a Dil (por coincidência, os narradores estão como prisioneiros) já tinha sido contada no filme "Grilhões do Passado", de Orson Welles (1955).

2 comentários:

Marco disse...

Grande Francisco,
Eu me lembro bem deste filme. Era um susto, uma surpresa quando o Jaye aparecia com aquela pemba de fora. É um bom filme, sem dúvida. De fato, a carreira do Jaye Davidson foi extremamente curta. Acredito que o agente dele não o conseguiu encaixá-lo em nenhum outro filme. Talvez pelas próprias características do ator não seja muito fácil encontrar filme para ele.
Carpe Diem. Aproveite o dia e a vida.

Anônimo disse...

Venho trazer de presente apenas o desejo de que tenhas um Natal de Sonhos, e agradecer por tudo o que escreves aqui, no meu blog, ou em outra parte. Jota Effe Esse.