domingo, janeiro 07, 2007

MANOEL VALE


Uma noite de sábado na sede do Cineclube Tirol um estranho se apresentou a mim se dizendo cunhado de um colega meu de trabalho. Apresentei-o aos demais cineclubistas, depois entreguei-lhe um documento para ser preenchido. Era um questionário ao qual devia responder toda pessoa que queria ingressar no Cineclube Tirol. Durante a reunião, em que sempre comentávamos um filme de destaque em exibição na cidade, ele não ficou calado, dando um ou outro pitaco, demonstando não se intimidar diante dos seus futuros companheiros, mais velhos e experientes. E foi assim que conheci Manoel Vale. Uns dois anos depois, ele tornou-se também meu colega de profissão. Não ficou em Natal, indo trabalhar na longínqua Macapá. Lá permaneceu algum tempo e voltou para Natal, mais por problemas de saúde (com pouco mais de vinte anos começou a ter problemas no coração), já que gostara muito de Macapá, sempre relembrando a sua passagem naquela cidade.
Manoel Vale era um personagem. Nascera com um problema visual, que o tornava feio. Baixo, de magro quando o conheci, ficou um tanto gordo, resultado de muita cerveja e muita comida gordurosa. E ainda fumava. Fazia tudo o que não era recomendável para a sua enfermidade. Não sei se era apenas uma opção de vida (vou aproveitar a vida, enquanto posso), ou se procurava a morte. Talvez uma coisa e outra. Não dava a mínima para a saúde. E tinha um cunhado cardiologista, o mesmo que fora meu colega, que deixou o banco para se dedicar à medicina.
Carregava uma mochila no ombro, contendo livros e, principalmente, elepês. Gostava muito de MPB. Quando recebia o salário, percorria as lojas de discos e comprava uma grande quantidade deles. O dinheiro ia embora em pouco tempo, por causa também das suas visitas ao cabaré de Maria Boa e aos bares, e ele, então, vendia os discos adquiridos, só conservando os dos compositores e cantores que mais amava. Um amigo comum, que o acompanhava a Maria Boa, contava que Manoel oferecia livros às raparigas e chegava a recitar para algumas delas os seus poemas. Aliás, ele sempre andava com poemas dentro da mochila, mostrando às pessoas. Não eram de boa feitura. Inteligente, sensível, Manoel, no entanto, tinha pouco talento poético. Sua preferência era pela poesia política (Neruda era um dos seus poetas preferidos) e sabe-se que esse tipo de poesia, tanto quanto a de cunho social, exige de quem a faz um equilíbrio e um controle emocionais que não deixem a poesia virar um panfleto. E Manoel era um passional. Mas chegou a publicar os seus poemas. Um livro magrinho, cujo título parece ser "Viver a Vida". Não tenho bem certeza. Entre inumeráveis amigos e conhecidos a quem dedicou o livro, sou um deles. Ainda o conservo. Só que não sei onde achá-lo, escondido no meio de tantos e tantos livros volumosos.
Naqueles anos sofríamos os horrores de uma ditadura. Manoel era um apaixonado contestador do regime vigente, seja através da maioria dos seus poemas, seja nas conversas. Expunha-se muito e talvez não tenha sentido os efeitos de sua contestação pelo fato de não ser levado muito a sério em tudo o que fazia. Não só no banco, mas fora dele, havia pessoas que riam do comportamento de Manoel, do seu hábito quase diário de mostrar um poema escrito na véspera, até a pessoas que não manjavam um mínimo de poesia, da sua maneira de vestir (como já se aposentara por invalidez, não precisava usar o vestuário exigido para trabalhar) e até do seu defeito visual. Ele não percebia a maldade dessas pessoas, ou, se percebia, não ligava a mínima. Um comentário maldoso e falso sobre Manoel era que tinha uma enorme frustração: não ter sido preso. Via amigos e conhecidos sofrendo nas prisões e ele livre. E pelo banco circulava uma anedota sobre o suposto desejo dele de seguir o infortúnio dos amigos. Contava-se que Manoel, já em desespero, resolveu um dia passar pela calçada de um quartel no centro da cidade (onde onde funciona o Memorial Luís da Câmara Cascudo). Ao passar em frente a um soldado, segurando um fuzil, Manoel disse bem alto, para ser ouvido também por outros milicos que estivessem por perto: "Viva o Comunismo"! Disse e parou, esperando a reação do soldado. Como este se manteve mudo, ele repetiu, com o mesmo tom de voz: "Viva o Comunismo"! E continuou parado, olhando desafiador para o homem. Foi então que o guarda olhou para um lado, olhou para o outro e disse "Viva"! Baixinho. A anedota era contada em meio a risadas.
1984 era um recém-nascido quando cheguei ao banco para mais um dia de trabalho. E logo soube que o coração de Manoel Vale tinha parado na noite anterior, enquanto ele dormia. Fazia pouco mais de um mês que completara trinta e três anos.

Nenhum comentário: