quarta-feira, julho 12, 2006

UM CONTISTA DO CEARÁ


Hoje abro este espaço para o contista cearense PEDRO RODRIGUES SALGUEIRO. Um dos valores mais expressivos do conto cearense, surgidos nos anos 1990, PRS publicou os livros "O Peso do Morto" (1995), "O Espantalho "1996), "Brincar com Armas" (2000) e "Dos Valores do Inimigo" (2005). Participou de antologias, e vários dos seus contos foram publicados em revistas do país. O conto aqui publicado foi extraído do livro "Brincar com Armas". prefaciado por Rachel de Queiroz, Manda ver, Pedrão
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AUSÊNCIA
Desde que a mulher morreu, ele pouco sai do quarto - tornando-se difícil até a limpeza feita às escondidas pela filha mais nova, que aproveita a hora das refeições para enfiar-se na penumbra do velho quarto do casal e espaná-lo rapidamente, tendo o cuidado de não retirar nada do lugar.
Quando a esposa era viva, eles pouco se falavam: um resmungo aqui, outro acolá. Fazia anos que não conversavam, como se houvessem esgotado todos os assuntos, e davam a impressão de um ligeiro rancor (mais presente nos olhos e no balançar de cabeça, usados no lugar das palavras).
Sempre dividiram a sombra larga do benjamim da calçada, sentados nas antigas cadeiras de balanço. Durante o dia entretinham-se com os afazeres de casa - ela catava o feijão na cozinha, depois terminava o almoço, aproveitando enquanto as panelas estavam no fogão para varrer de novo a casa; ele espantava os meninos que roubavam goiabas no quintal, aguava as roseiras novamente, resmungando sempre os mesmos insultos aos demônios que teimavam em pular o muro - e somente de tardezinha sentavam-se à calçada, obedecendo a um hábito antigo, de quando os filhos ainda não eram casados e moravam todos em casa.
Nem à noite, quando se recolhiam ao quarto no fundo do corredor, ouvia-se alguma conversa entre eles. Agora. porém, que ela morrera, ele adquiriu uma tristeza imensa - comportando-se como se houvesse morrido também. Não sai do cômodo escuro, nem quando a filha mais velha aparece depois de longa ausência. O tabuleiro de damas continua empoeirado em cima do armário, as pedras gastas minuciosamente arrumadas num saquinho ao lado; o almanaque velho, que ele sempre consultava para saber a posição da lua e o santo do dia, hoje permanece esquecido na sala de jantar; e até as cadeiras de balanço foram relegadas a um canto da sala.
A filha mais nova ainda aproveita a hora do almoço e do jantar para uma ligeira arrumação, e sai às pressas quando ouve o roçar leve da caneca de alumínio no beiço do pote, não sem antes repor o velho penico de ágata no seu canto certo, embaixo da cama. Depois ele então recolhe-se, para só aparecer depois de um novo chamado vindo da cozinha.
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