terça-feira, março 31, 2009

TANTOS ANOS


Foto A Máscara, de Marco Ricca,
in 1000 imagens.

Este conto já saiu aqui em out/07. Republico-o
para avaliação daqueles que, na época, não visi-
tavam este blogue e reavaliação de quem o
leu.

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Fazia uns dois a três minutos que estavam calados. Aquele silêncio que num dado momento, assim de repente, baixa numa conversa entre duas pessoas. Como se os assuntos comecem a faltar, depois de um período longo e ininterrupto de conversa. O olhar do homem não se fixava em nenhum ponto, parecia não encontrar nada que o interessasse, enquanto a mulher curvara um pouco a cabeça. Até que um casal de jovens, num banco próximo, despertou a atenção dele. O rapaz, pernas estiradas, fazendo de cavalgadura para a namorada, os rostos e bocas colados. Olhou para a mulher, que também observava a cena. Ela disse, virando o rosto para ele: "Era tão diferente na nossa juventude". "Pois é"... E retornaram à mudez.
Estavam ali, vindos de uma loja próxima. Ela já ia saindo, com uma sacola, enquanto ele ia entrando, para ir à seção de dvd e cd. Passaram um pelo outro, como dois desconhecidos, até que ele a ouviu perguntar: "É o Carlinhos"? Ele se virou imediatamente, respondeu sim e aproximou-se da mulher de óculos escuros, um pouco gorda, o rosto moreno bem conservado. "Não está me reconhecendo"? Ele examinou o rosto atentamente, não disse palavra, nem precisava dizê-la. Ela levantou os óculos até o início dos cabelos e ali os pousou. Ele continuou o exame e, de repente, como se iluminado por uma luz vinda de um passado distante, a reconheceu. "Letícia, irmã de Leila, não"? Ela sorriu e repôs os óculos. "Tantos anos que não nos vemos". "Tantos". Ele estendeu a mão para ela, que foi recebida com um aperto e uma duração que lhe pareceram além do normal. Com as mãos livres, cada um perguntou como ia o outro e foi aí que ele se lembrou de que ouvira falar em Letícia não fazia muito tempo, ao encontrar um amigo à saíde de um banco. "Soube que perdeu o marido, aceite os meus pêsames". E logo se arrependeu do que dissera, pois, detrás dos óculos, vieram lágrimas de Letícia, e o tom de voz se alterou. Embaraçado, percebendo que as suas palavras foram inoportunas, pousou-lhe uma mão no braço e se sentiu na obrigação de se desculpar. "Tudo bem", ela disse ainda com a voz chorosa e, depressa, ele buscou um assunto.
Era um entra-e-sai de pessoas, sempre apressadas, algumas esbarrando neles, uma ou outra sem pedir desculpa. "Está com pressa, Letícia"? "Não, já fiz as compras". "Que tal ficarmos um pouco naquela pracinha"?
E ali estavam há bem uma hora. Letícia ficara sabendo que ele se separara da primeira esposa e vivendo com outra mulher. "Naturalmente uma mais nova do que a primeira". Ele deu um sorriso e achou por bem dizer um gracejo: "Cavalo velho, capim novo". "Vocês homens"... "Vocês também não estão ficando atrás. Não vê aquela atriz da televisão que está casada com um homem que tem idade pra ser filho dela"? "Direitos iguais, meu filho". "Ah, o velho feminismo". Surpreendeu-se com a risada de Letícia. Achava que ela iria replicar e iniciar a defesa da igualdade dos direitos do homem e os da mulher, mas ela se limitara a rir. Pensou que talvez tenha sido a maneira como falara. Houve esses momentos de descontração. Mas houve outro momento mais embaraçoso do que aquele em que Carlinhos tocara na morte do marido. Ele tinha
terminado de falar outra vez sobre Leila, quando Letícia falou um tanto ríspida. "Leila, Leila, Leila. Até parece que não foi você que terminou o noivado. Aliás, ainda hoje é um mistério por que você a largou às vésperas do casamento". Ele não soube o que dizer e, por um momento, ficaram mais uma vez calados. Foi ela que retomou a conversa. "Você nunca notou, não, Carlinhos"? Ele a olhou e de novo o olhar fixo por trás dos óculos. E ele percebeu o sentido da pergunta, sem a necessidade de uma única palavra.
"Eu era apaixonada por você. Sabe que quando você terminou com a Leila, eu fiquei feliz? Cheguei a pensar que você também estava apaixonado por mim e por isso tinha tomado aquela decisão. Meu Deus, como fui ingênua e burra. E fui a única pessoa da minha família a não recriminar você. E todos lá de casa ficaram possessos com a sua atitude. E, convenhamos, com razão. Um dos meus irmãos disse que se o encontrasse, lhe dava uma surra de você nunca esquecer".
Carlinhos ouvia calado e já sem olhar para Letícia. Às vezes olhava para o casal de jovens, que continuava na mesma posição. Alguns transeuntes sorriam, outros olhavam a cena com indiferença - um fato que se tornara rotineiro, banal. Depois da confissão de Letícia, não tinha coragem de olhar pra ela. Não sabia se ela estava virada para ele, ou se curvara um pouco a cabeça, como há pouco tempo. Uma olhadela rápida no relógio. "Já está ficando tarde. Acho que tenho que ir, Letícia". Desviou o rosto para ela. E foi ela que se levantou primeiro. Ele se levantou e então os seus olhos se encontraram. Aqueles óculos muito escuros o fitavam de uma maneira que o deixou perturbado. (Já na loja, eles tinham lhe provocado a mesma reação.) "Até logo, Letícia". Estendeu-lhe a mão (impossível lhe passar pela cabeça a ideia de dar-lhe um beijinho formal) e acrescentou prazer em rever você. "Igualmente", ela disse e não prendeu a sua mão, como ele chegou a pensar.
E os dois se afastaram em direções opostas.

terça-feira, março 24, 2009

A BILHETEIRA DO CINE MODERNO

Poster francês de A Mu-
lher do Rio, de Mario Soldati (1955).
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Naqueles meus primeiros meses em Fortaleza fui conhecendo os outros cinemas, além do Diogo. Conheci o Majestic e o Moderno, o primeiro no mesmo quarteirão onde ficava o Diogo, do lado oposto, o segundo na Major Facundo. Eram bem inferiores ao Diogo, sendo natural que a impressão que este me causara, ao entrar ali pela primeira vez, não tenha se repetido com aqueles dois em idêntica situação.
Eram, na verdade, considerados poeiras, onde as moças e as senhoras não entravam, para não se misturar com as raparigas que os frequentavam habitualmente. Os homens não tinham nada com isso, embora, por outro lado, o Majestic tivesse a fama de ser o preferido dos baitolas.
Esses três cinemas pertenciam à Empresa Luiz Severiano Ribeiro, assim como o Rex. Os outros cinemas faziam parte da Empresa Cinemar, assim denominada por uma curiosa particularidade: os nomes deles referiam-se a coisas ligadas ao mar. Havia o Samburá, na Major Facundo, o Jangada, na Floriano Peixoto, o Tuaçu, na Praça José de Alencar, e o Araçanga, na Barão do Rio Branco, dois quarteirões após a Praça do Carmo.
Quase dez cinemas à minha disposição! Bem, não se pode dizer exatamente à minha disposição. Eu não vivia socado dentro de um cinema, não apenas porque meus tios não deixavam (por recomendação do papai), mas também por não ter idade para ver os que eram proibidos para menores de dezoito anos. Eu ia duas vezes por semana ao cinema, ou três, esporadicamente.
De todo modo, ia sendo apresentado a filmes que jamais passariam em São Januário. E a belas atrizes que me atiçavam desejos, tanto quanto as mulheres com quem cruzava no dia-a-dia. Dessas me lembro especialmente de Sophia Loren em A Mulher do Rio. De short curto, a exibir uns coxaços, e ajustado de modo a modelar um traseiro do qual se podia imaginar só maravilhas, a italiana deixou perturbado aquele pobre adolescente. Aliás, preciso contar um fato ligado àquele filme, e assim poder fazer justiça à bilheteira do Moderno, pois, sem a generosidade dela, eu não teria recebido a dádiva de ver Sophia desfilar a cobiçada plástica.
Ela, a bilheteira, possuía um bonito corpo, apesar de ser um pouco magra. Morena, cabelos alourados que talvez não fossem naturais, e os olhos buliçosos, com um jeito de olhar para um homem que o fazia imaginar coisas. (Que bem podiam ser fundadas. Um colega certa vez comentou, durante o recreio, que ela queimava a periquita.)
Pois não é que essa dona dona começou a me olhar daquele jeito! Ela me atraía já há algum tempo. Por causa dela passei a frequentar mais o Moderno do que os outros cinemas, e a passar pela calçada, mesmo se não fosse assistir ao filme, esperando vê-la fora da bilheteria, batendo papo com o porteiro. Aquele comentário do colega ocorreu ocorreu na época em que ela começou a me botar aqueles olhos sedutores. E eu sonhava em acabar a donzelice com aquela bilheteira, mas, pobre de mim, ao mesmo tempo me convencia de que aquele era um sonho impossível de realizar-se.
Quando foi anunciado A Mulher do Rio para exibição em breve, sua classificação etária ficou estabelecida para maiores de 14 anos. Só iria completar 14 anos dali a mais de um mês e não podia perder a chance de ver Sophia na tela (já a tinha visto em revistas). Foi quando pensei na bilheteira. Quem sabe se ela não poderia me prestar aquele favor? Decidi que era melhor falar a ela com antecedência.
Escolhi um momento em que não havia ninguém para comprar ingresso. Quando apareci na bilheteria, ela deu aquele sorriso e já ia destacando o ingresso do borderô, eu disse que queria tratar um assunto com ela. Ela me olhou com um ar de supresa (talvez supondo que eu ia lhe passar uma cantada) e disse: "Estou trabalhando. Não posso ficar batendo papo com ninguém". Fiquei ainda mais nervoso, as mãos começaram a suar, devo ter mudado de cor. Não sabia se dissesse que não era aquilo que ela estava pensando, porque não tinha certeza do pensamento dela. "É uma coisa rápida", consegui dizer. "Mas você não está vendo que não é possível"? Cada vez mais nervoso, me virei rapidamente para ver se vinha alguém para comprar ingresso. Ninguém. Não podia perder mais tempo e então desembuchei o assunto. Só Deus sabe como. A sacaninha deu um sorriso irônico, depois de me ouvir, e falou: "Ah, então o meu amiguinho (ela gostava de me chamar por um diminutivo que variava a cada encontro) quer assistir filme sem ter idade. E quer que eu ajude ele a fazer isso. Não entende que eu posso perder o meu emprego"? "Se não pode me fazer o favor, não fique aí me dando lição de moral".
Disse isso e fui embora. Sabia que a minha reação tinha destruído o pouquinho de boa vontade que a bilheteira pudesse ter em me ajudar, mas não consegui conter a raiva por ter bancado o bobo.
Nos dias seguintes, ainda raivoso e também frustrado, evitei ir ao Moderno, sem sequer passar em frente. Estava disposto, inclusive, a nunca mais pôr os pés ali.
Mas numa tarde fui ao centro, pegar um relógio que tia Íris mandara consertar. A relojoaria era ali na Guilherme Rocha, já próximo à Major Facundo. Segui por esta rua, depois de receber o relógio, em direção à loja 4.400, onde iria fazer uma compra para Simone. Quando ia entrando, dei de cara com a bilheteira, que vinha portando um embrulho. Tomei um susto ao vê-la, naquele vestido preto que ela gostava de usar, pela primeira vez fora do cinema. Ela me fitou com um arremedo de sorriso, um sorrisinho encabulado. "Ainda tá com raiva de mim"? Fiquei calado, a cara fechada. "Homenzinho besta. Escuta aqui. Quando a fita tiver passando vai lá que te boto pra dentro. Viu"? Continuei mudo, olhando trombudo pra ela. "Bom, se não quiser, não vá". Ela disse e saiu a toda, procedendo quase como eu daquela vez. Parecíamos namorados.
Mas fui. Claro que fui, e logo na estreia do filme. Ela ainda tirou sarro de mim. "Pensei que não viesse". Mas me advertiu que nunca mais eu sequer pensasse em lhe pedir um favor idêntico. Prometi e cumpri a palavra.
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- Capítulo do meu romance Infância do Coração (2002).

terça-feira, março 17, 2009

VISITANTES INDESEJÁVEIS



O que mais me agrada na blogosfera é o contato com as pessoas. Se na blogosfera não pudesse existir a presença de visitantes, não haveria razão para se criar um blogue. Nos seus pouco mais de 4 anos de vida, o Luzes da Cidade abrigou visitantes que o enriqueceram com a sua inteligência, o talento, além da qualidade humana. Não foram em grande quantidade e houve os que deixaram de vir aqui, mas, se não com todos, entre mim e alguns estabeleceu-se um contato mais estreito que resultou numa amizade saudável, que seria melhor se não se cingisse apenas ao plano virtual. Mas a distância torna muito pouco provável que um dia venha a conhecer um ou outro desses amigos/amigas brasileiros e impossível os que residem em outro país. Uma pena.
Pois bem. A blogosfera proporciona-nos conhecer pessoas dessa qualidade, que nos faz tão bem. Infelizmente, por outro lado, temos que nos deparar com uma certa espécie de pessoas que se servem do nosso espaço para fins variados e, por vezes, desagradáveis.
Há poucos dias entrou no meu blogue um sujeito me oferecendo seus serviços de pintor de camisetas. O que mais me aborrece é que gente assim se dirige a mim sem um mínimo de boa educação, de gentileza. Eles não tocam, nem de passagem, no texto da postagem e vão logo dizendo a que vieram. Um outro apareceu com uma espécie de manifesto, mal escrito, mal articulado, pregando, imaginem só, o separatismo numa parte da Europa que não identifiquei bem, tão carente de boa escrita o sujeito é. Já houve quem se servisse do Luzes para divulgar um poema seu, por sinal, de má feitura.
Mas esses, no entanto, apenas causam algum aborrecimento, não ofendem, não agridem o blogueiro. Condenável sob todas as formas é a atitude daqueles que entram no blogue de uma mulher para exercitar os dotes de um Don Juan de quinta categoria. Uma amiga, cujo nome não vou revelar por não ter lhe pedido permissão, sofreu durante um certo tempo o assédio de um desses caras, para os quais, parece, a Internet só serve para eles conquistarem mulheres (e em alguns casos são bem sucedidos), muitas delas casadas, como é o caso da minha amiga. Ele mora na mesma cidade dela, isso ficou evidente logo nos seus primeiros comentários, ou melhor, nos primeiros galanteios. Ele falava que a vira em certo recanto da cidade, descrevia a roupa que ela estava usando, o penteado, e, invariavelmente, louvava-lhe a aparência e algum atributo físico. Por algum tempo, o sujeito infernizou a vida da minha amiga e, por tabela, a do seu marido. Chegou um dia em que ela não aguentou mais. Conhecedora dos caminhos de pedra da Internet e recorrendo à ajuda de alunos seus, ela caiu em campo para descobrir a identidade do galanteador e não é que o conseguiu? O marido, então, foi tomar satisfações com o indesejável visitante e este, afinal, deixou de perseguir a esposa.
Mas terá ele encerrado a "carreira" de conquistador de mulheres na blogosfera? E, no momento, não estará importunando outra mulher honesta, boa mãe e boa esposa?

terça-feira, março 10, 2009

OBRIGADO, TIA (Grazie, Zia/1967)


Este meu artigo foi publicado em agosto/1970, no Boletim do Cineclube Tirol, de Natal. Publico-o neste espaço em razão da morte do diretor Salvatore Samperi, ocorrida na semana passada. "Obrigado, Tia" foi o seu primeiro filme e impressionou a crítica (o crítico José Lino Grunewald, por exemplo, um dos maiores do Brasil, o colocou na sua lista dos 10 melhores filmes de 1969) que viu em Samperi uma promessa em potencial. Infelizmente, com o passar do tempo, o diretor não confirmou essa promessa e morreu praticamente esquecido, trabalhando na televisão. Eis o texto.

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Salvatore Samperi é mais um produto da novíssima geração de cineastas italianos, da qual fazem parte Bertolucci e Bellochio, entre outros. O inconformismo é o elo que une esses jovens que estrearam na direção com pouco mais de vinte anos (Bellochio, 26; Samperi, 23) - uma estreia que os colocou em elevada posição perante a crítica especializada, capacitando-os a manter a fulgurosa tradição de um cinema que já produziu personalidades marcantes do porte de um Visconti, de um Rosselini, de um De Sica, de um Fellini e de um Antonioni, sem falar em valores pertencentes ao segundo time.
A atitude contestatória dos filmes iniciais de Bellochio e Samperi - em ambos utilizada a presença do mesmo ator Lou Castel - deu ensejo a que fosse formulado um conceito de estreito parentesco entre os dois, que retiraria ao filme do segundo a condição de originalidade, o que, bem observado, não chega a ser isso. O Alvise de "Obrigado, Tia" é tão revoltado quanto o Alessandro de "De Punhos Cerrados", mas é preciso notar a diferença de classe entre os dois. Alvise é um integrante da sociedade burguesa (filho de riquíssimo industrial), porém, não se adapta a ela; já Alessandro é um marginalizado que deseja ascender à sociedade em que vive o personagem de Samperi. Ainda existe um outro detalhe, de grande importância: a doença de Alessandro é real (epilepsia), ao contrário da de Alvise, que se finge de paralítico, usando esse recurso como um meio de defesa contra o mundo que ele hostiliza (tal a Elizabeth Vogler, de "Persona", esta abdicando do uso da voz).
E que mundo é esse? É o de que faz parte Stefano, amante de Lea há 15 anos, e ex-militante do PC, convertido num bom burguês, apresentando uma caduca perspectiva dos problemas da atualidade; é o mundo da jovem candidata a cantora de TV, do jovem industrial e do entertainer. É uma hostilidade mútua. E em se tratando de Stefano, agravada por um sentimento de rivalidade, a qual tem Lea como elemento motivador. Ela é a única pessoa que pode compreender Alvise e será por meio da convivência com o sobrinho que as suas relações com Stefano, já um tanto estremecidas, atingirão a ruptura. Então, ela decide participar do jogo inventado pelo sobrinho, que se projeta na figura de Diabolik - personagem dos quadrinhos, possuidor de grande força e enorme poder, com quem pretende se identificar, mas compreende ser impossível - e termina por preferir a morte sem sofrimento, como o cachorrinho de estimação da tia.
No relacionamento tia-sobrinho, consumado pelo jogo infanto-sado-erótico, percebe-se o pulso do diretor, que explora, à perfeição, os recursos interpretativos de seus principais atores: Lou Castel e Lisa Gastoni (uma gratíssima surpresa, inclusive em termos de beleza física).
A cena em que é feita a alusão ao Vietnam é a mais bem realizada de todo o filme, tendo considerável participação dramática a canção de Sergio Endrigo. Nessa cena, é evidente a intenção em Samperi de contrapor a ação participatória de Alvise ao alheamento de Stefano, que conduz Lea ao quarto dela, para praticarem um ato sexual apressado e sem interesse dela. Ressalte-se, para mérito do jovem cineasta, que ele evita alternar planos da cena no quarto e na cena fora deste - um recurso, a meu ver, desnecessário, e que já foi utilizado por grandes autores (Buñuel/Viridiana) ou realizadores talentosos (Lumet/O Homem do Prego).

terça-feira, março 03, 2009

O NONSENSE NUM SAMBA DE ASSIS VALENTE


Na foto, Assis Valente à esquerda de Carmen Mi-
randa e Dorival Caymmi à direita.
In Google.
O baiano José Assis Valente (1911-1958) foi um dos grandes compositores da nossa música popular. É o autor do clássico "Boas Festas", que se tornou uma espécie de hino do Natal brasileiro; contudo, é uma música triste, que não celebra o Natal, contendo uma crítica ao mito do Papai Noel, com versos inspirados, como "eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel", "felicidade eu pensei que fosse uma brincadeira de papel", entre outros. Mas fez músicas alegres, a que não faltava a crítica de costumes, como "Good bye, boy", em que ele investe contra o começo da influência do inglês no Brasil, como consequência do cinema americano. Outra composição sua, ..."E o Mundo Não se Acabou", satiriza o pavor que tomou conta de parte da população provocado por boatos sobre o iminente fim do mundo ("falava-se num misterioso eclipse, colisão de cometas com a Terra, tudo isso reforçado pelo medo de uma segunda guerra mundial, prestes a explodir na Europa", conforme se lê no fascículo dedicado a Assis Valente sobre a História da Música Popular Brasileira, Abril S/A Cultural e Industrial/1970). Composta em 1937 e gravada por Carmen Miranda em 9.3.38, transformou-se num dos grandes sucessos da cantora. Carmen, aliás, deve a Assis Valente muitos dos seus sucessos, antes de ir para os States; entre outros não se pode esquecer de "Camisa Listada", que se tornou também um clássico da MPB.
Em 2 de abril de 1939, ela gravou "Uva de Caminhão", que Assis compusera no ano anterior. É uma música que se não se diferencia das outras do compositor pela verve, a ironia, possui um componente inédito: a letra coloca num balaio só palavras e expressões da época, Branca de Neve e Os Sete Anões, Caramuru, a pensão de uma Dona Estela, uma Florisbela e "as cadeiras dela", dois locais do Rio, resultando numa salada em que pontifica o "nonsense". O ponto inicial de tudo isso recorria a um costume no Rio, naqueles tempos, de se vender uva em caminhão, segundo informa o mencionado fascículo. Curiosamente, Assis classificava a música de samba-revista.
Eis a letra.
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Já me disseram que você andou pintando o sete
andou chupando muita uva
e até de caminhão.
Agora anda dizendo que está de apendicite
vai entrar no canivete, vai fazer operação.
Oi que tem a Florisbela nas cadeiras dela
andou dizendo que ganhou a flauta de bambu
abandonou a batucada lá da Praça Onze
e foi dançar o pirolito lá no Grajaú.
Caiu o pano da cuíca em boas condições
apareceu Branca de Neve com os sete anões
e na pensão da dona Estela foram farrear.
Quebra, quebra gabiroba
quero ver quebrar.
Você no baile dos quarenta
deu o que falar cantando o seu Caramuru.
Bota o pajé pra brincar
tira, não tira o pajé
deixa o pajé farrear.
Eu não te dou a chupeta
não adianta chorar.

terça-feira, fevereiro 24, 2009

UM TELEFONEMA PARA A INFÂNCIA


Este texto já saiu aqui em 4.10.06. Estou republicando-o como uma homenagem ao companheiro de infância Quinca (Joaquim Magalhães Neto), que, segundo soube há poucos dias, faleceu no dia quatro deste mês, aos 64 anos.
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Não eram 8 horas da noite da sexta passada quando o telefone tocou. Só no apartamento, fui atender a chamada. Uma voz masculina queria falar com o Francisco. É ele, eu disse. Sem perguntar como eu ia, o homem foi iniciando uma espécie de divertido jogo para que eu o identificasse. A primeira pista: fôramos amigos, mas há exatos 50 anos perdêramos o contato. Não sei por que supus, de imediato, termos nos conhecido no Liceu, onde ingressei em 1956. Ele disse não, não estudei no Liceu (e eu depressa reconheci o meu erro, pois estudara naquele colégio até 1960, o que reduzia para 46 anos o nosso último contato), nós nos conhecemos de Canindé. E o jogo continuou. Ele disse que morava na praça da Basílica, argumentei que na praça moravam outros amigos meus. E ele, você se lembra do bar do Maciel? Disse que sim e deduzi que ele fosse o Antônio, filho do Maciel. Segundo erro meu. Aí ele deu a pista definitiva, que morava vizinho ao bar. Então, como um estalo, eu me lembrei do Quinca, filho de Antônio Magalhães e de Dona Mirtes (uma bonita mulher): então, você é o Quinca. Do outro lado da linha veio a risada jubilosa, por eu, afinal, ter identificado o dono daquela voz, e, acoplada a ela, a diversão, como se aqueles dois homens, já na casa dos 60, estivesessem participando de uma brincadeira de quando eram meninos. Aí voltamos ao presente, cada um querendo saber como o outro estava vivendo. Mas foi por um breve tempo, porque ele queria relembrar um episódio que ocorrera comigo e do qual não me lembrava. Ei-lo.
Um solteirão da nossa cidade gostava de promover na praça, à noite, uma corrida de garotos. Quinca não disse, nem me recordo, se aquele homem dava algum prêmio ao vencedor. Bom, a corrida se dava assim. Era uma disputa entre dois meninos, mas eles não corriam emparelhados. Um menino ficava no início do lado direito da praça e o outro se postava do lado esquerdo. Ao dar-se a largada, o vencedor seria o que chegasse primeiro ao final de um dos lados. Morava ali na praça o Tirso Rabelo, que corria como o diabo, e sempre ganhava. E se gabava de não ter concorrente à sua altura. Pois um dia eu resolvi enfrentar o Tirso. O Quinca não disse se por iniciativa própria, ou se fui estimulado por alguns amigos. O certo é que disputei com a fera e ganhei dele. Ainda segundo Quinca, fui ovacionado e o Tirso gozado pelos outros garotos, mas ele não me disse se houve revanche. Esse episódio tem a intromissão do insólito, porque continuo não me lembrando dele, mesmo depois de relatado por Quinca. O que lembro é que gostava de apostar corrida na praça, mas com outros meninos e as corridas eram promovidas por nós mesmos. Se a memória é seletiva, como dizem, eu não devia tê-lo esquecido. Estranho, não?
Mas o Quinca tinha outra coisa pra me contar. Você talvez não saiba que fui apaixonado por uma parenta sua. Paixão de criança, eu tinha 11 anos. A paixão dele se chamava Salete, um pouco mais nova do que ele, filha de um irmão do papai. Uma menina bonitinha, com um leve estrabismo. Na década de 1970 ela morou em Natal durante cerca de um ano, por causa da remoção do marido, da Polícia Federal, para esta cidade. Ficara mais bonita, mas evitei dizer isso ao Quinca, que, cinquenta anos depois, parece ainda estar interessado nela. Revelou que conservava uma fotografia de Salete participando de um pastoril e quis saber onde ela estava residindo. Eu não sei, mas prometi que iria cair em campo para saber o paradeiro dela e o informaria no próximo contato que tívessemos. Porque ele disse que iria me ligar outras vezes, agora que conseguira o meu telefone.
Não é necessário dizer o quanto aquele telefonema me fez bem. Por alguns minutos pude voltar aos tempos bons da infância e retomar o contato com um amigo. E depois de falar com ele, fui rever uma foto colada num álbum, em que estamos com mais 3 garotos, antes do início de uma pelada. Quinca e Boroca (um negrinho muito bom de bola) em pé, enquanto eu, Nei e Tonico estamos agachados. Eu estou ladeado pelos dois, segurando a bola, como centro-avante.
Bons tempos. Velhos tempos. E quantas saudades.
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NOTA DE HOJE - No e-mail que recebi, informando o falecimento de Quinca, é dito que o negrinho Boroca também já se foi, sem estar precisada a data da sua morte.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

TEXTO DE CECÍLIA MEIRELES SOBRE O CARNAVAL

Pierrô, Arlequim e Colombina, óleo obre
tela de Di Cavalcanti (1922)
Depois do Carnaval
Terminado o carnaval, eis que nos encontramos com os seus melancólicos despojos: pelas ruas desertas, os pavilhões, arquibancadas e passarelas são uns tristes esqueletos de madeira; oscilam no ar farrapos de ornamentos sem sentido, magros, amarelos e encarnados, batidos pelo vento, enrodilhados em suas cordas; torres coloridas, como desmesurados brinquedos, sustentam-se de pé, intrusas, anômalas, entre as árvores e os postes. Acabou-se o artifício, desmanchou-se a mágica, volta-se à realidade.
À chamada realidade. Pois, por detrás disto que aparentamos ser, leva cada um de nós a preocupação de um desejo oculto, de uma vocação ou de um capricho que apenas o Carnaval permite que se manifestem com toda a sua força, por um ano inteiro contida.
Somos um povo muito variado e mesmo contraditório; o que para alguns parecerá defeito é, para outros, encanto. Quem diria que tantas pessoas bem comportadas, e aparentemente elegantes e finas, alimentam, durante trezentos dias do ano, o modesto sonho de serem ursos, macacos, onças, gatos e outros bichos? Quem diria que há tantas vocações para índios e escravas gregas, neste país de letrados e de liberdade?
Por outro lado, neste chamado país subdesenvolvido, quem poderia imaginar que tantos reis e imperadores, princesas de Mil e Uma Noites, soberanos fantásticos, banhados em esplendores que, se não são propriamente das minas de Golconda, resultam, afinal, mais caros: pois se as gemas verdadeiras têm valor por toda a vida, estas, de preço não desprezível, se destinam a durar somente algumas horas.
Neste país tão avançado e liberal - segundo dizem - há milhares de corações imperiais, milhares de sonhos profundamente comprimidos mas que explodem, no Carnaval, com suas anquinhas e casacas, cartolas e coroas, mantos roçagantes (espanejemos o adjetivo), cetros, luvas e outros acessórios.
Aliás, em matéria de reinados, vamos do Rei do Chumbo ao da Voz, passando pelo dos Cabritos e dos Parafusos: como se pode ver no catálogo telefônico. Temos impérios vários, príncipes, imperatrizes, princesas, em etiquetas de roupa e em rótulos de bebidas. É o nosso sonho de grandeza, a nossa compensação, a valorização que damos aos nossos próprios méritos...
Mas agora que o Carnaval passou, que vamos fazer de tantos quilos de miçangas, de tantos olhos faraônicos, de tantas coroas superpostas, de tantas plumas, leques, sombrinhas...?
"Ved de quán poco valor
Son las cosas tras que andamos
Y corremos..."
dizia Jorge Manrique. E no século XV! E falamos de coisas de verdade! Mas os homens gostam da ilusão. E já vão preparar o próximo Carnaval...
- Texto do livro "Quatro Vozes", Editora Record - Rio de Janeiro, 1998.

terça-feira, fevereiro 10, 2009

MISCELÂNEA (2)

Imagens de "Os Incompreendidos".





1) Em cada ano ocorre o centenário de nascimento de pessoas que se notabilizaram nas atividades a que se dedicaram. Enriqueceram as artes, a cultura, a ciência, etc, e muitas dessas pessoas foram idolatradas por multidões. O ano de 2009 assinala o centenário de nascimento de Carmen Miranda, de quem não preciso dizer nada, tão conhecida se tornou, até, presumo, pelas gerações mais novas. Também ocorre o centenário do ator James Mason. Este, acredito, só é conhecido pelos cinéfilos e críticos da minha geração e anteriores. Foi um grande ator inglês, que fez carreira no cinema americano. Talvez os mais novos se lembrem dele em "Lolita", de Kubrick, a primeira versão adaptada para o cinema do romance de Nabokov, em que interpretava o professor de meia-idade que se apaixona por uma garota. Outro filme seu mais conhecido é "Intriga Internacional", de Hitchcock, em que trabalhava com Cary Grant. James Mason é o meu ator preferido, como já revelei mais de uma vez.
Ao longo do ano haverá centenários de mais gente ilustre (como, me ocorre agora, o de Dom Helder Câmara), que será noticiado pela mídia. Mas o centenário mais importante para mim é de uma mulher anônima, que não escreveu um único poema, uma única crônica, nunca pisou num palco, não apareceu na tela, ficou fora dos jornais, mas teve um significado muito grande na minha vida. Quero me referir a Antônia, ou, melhor, a Neném, como era chamada desde a infância. Quero me referir à minha mãe, que nasceu em 20 de abril de 1909. No momento oportuno estarei aqui lhe prestando uma pequena homenagem



2) Já a "Nouvelle Vague" está completando 50 anos. Lançado em 1959, o filme "Os Incompreendidos" ("Les 400 Coups"), de François Truffaut, é unanimemente reconhecido pelos críticos e historiadores como o iniciador da "Nouvelle Vague". Foi Truffaut, aliás, quem liderou o movimento, ao qual aderiram Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Eric Rohmer e Jacques Rivette. Críticos atuantes da mitológica revista "Cahiers du Cinéma", os cinco jovens tinham em mente insurgir-se contra o cinema francês feito por cineastas de gerações passadas, com a exceção de Renoir e talvez um ou outro. "O cinema de papai", como eles rotulavam os filmes daqueles veteranos; veteranos, vamos reconhecer, que tiveram a sua importância, como René Clair, Marcel Carné e René Clément, para ficar só com esses nomes.
Mas partindo dessa premissa, a "Nouvelle Vague" promoveu uma renovação na narrativa, na linguagem, levando as filmagens para as ruas (embora o Neo-Realismo já tivesse feito isso), utilizando a luz natural e a câmera na mão, revelando diretores importantes e atores, enriquecendo mais o cinema com grandes obras. Sua busca de renovação é também considerável na influência que exerceu em jovens cineastas de outros países, como os brasileiros que fundaram o Cinema Novo. Dos cinco, apenas o seu líder já não está entre nós, enquanto os demais continuam atuantes. Truffaut faleceu em 1984, aos 52 anos.



3) Peço permissão à minha cara Lili para falar de um assunto que ela relatou no seu blogue http://retinasurbanas.blogspot.com/. É o seguinte. No cargo desde 1997, quando aceitou o convite do então governador Mário Covas, John Neschling (apesar do nome, é brasileiro nascido no Rio), regente titular da OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) foi demitido pelo presidente do Conselho de Administração da Fundação OSESP, Fernando Henrique Cardoso. E por e-mail. Mas falam que a demissão partiu do governador José Serra. Segundo Lili, "Neschling foi gravado num ensaio falando que Serra é um 'menino mimado'".
Não dá para acreditar que a demissão do maestro foi motivada por essa frase sobre o governador. Chamar este de menino mimado, se não deixa de ser um desrespeito em termos de relação entre superior e subordinado, não é uma ofensa grave, como tachar Serra de corrupto, mesmo que ele o fosse, ou falar algo de sua vida pessoal. Penso cá comigo que Neschling devia estar incomodando o governador com coisas referentes à orquestra. O governador e, talvez, o presidente da Fundação OSESP não deviam estar satisfeitos com suas possíveis queixas, reclamações, ou reivindicações. O fato de um funcionário dedicado, para não usar uma palavra pesada, ir para um ensaio da orquestra munido de um gravador, dá indícios de que o homem estava sendo "vigiado".
A demissão de Neschling, seja por qual motivo for, é, antes de tudo, uma injustiça e uma desconsideração contra um homem que assumiu a OSESP numa situação difícil e, com afinco e dedicação, levou-a ao estado atual. Enquanto isso, muitos servidores do primeiro escalão e dos abaixo deste nas administrações federal (principalmente), estaduais e municipais saqueiam os cofres da Nação e, na maioria dos casos, só recebem o bilhete azul se eles mesmos quiserem. Mas assim é o Brasil e assim continuará.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

PICKPOCKET E O CINEMA DE ROBERT BRESSON




O cinema, que ele chamava de cinematógrafo, idealizado por Bresson transformou-o num solitário no universo da arte que ele adotou, tão solitário quanto o ladrão de "Pickpocket" (1959), filme que sucedeu a "Um Condenado à Morte Escapou" (1956). Um cinema, pelo menos, a partir de "Diário de um Pároco de Aldeia", 1950, despojado, seco, antipsicológico, desdramatizado. Esse último aspecto denotava a intenção de Bresson de desvincular o cinema da influência do teatro. E para alcançar esse fim, ele tinha que contar com a disposição, o empenho e, principalmente, a submissão dos atores, dos quais queria que não expressassem "a imitação de diferentes rostos, gestos e vozes", buscando "levá-los ao automatismo que acho que ocupa uma grande parte na nossa vida", conforme afirma em entrevista a um casal de jornalistas, reproduzida nos Extras do DVD de "Pickpocket". Daí a sua decisão, tomada já a partir de "Diário de um Pároco de Aldeia", de só trabalhar com atores não profissionais, já que estes, ao contrário dos profissionais, eram mais receptivos às suas exigências.
Na mesma entrevista, Bresson diz que prefere que, antes de entender um filme seu, o espectador o sinta, que acha mais importante que "os sentidos antecedam a inteligência". Ou seja, a emoção em lugar da razão. No caso específico de "Pickpocket", pretendia dos espectadores que "sentissem essa atmosfera que envolve o ladrão, essa atmosfera que faz as pessoas se sentirem angustiadas e perturbadas". E, de fato, sem ser necessário recorrer a gestos e expressões característicos da dramatização, o "modelo" (assim ele chamava os atores e atrizes de seus filmes, e me pergunto se essa denominação não traía, consciente, ou inconscientemente, o pintor que ele pretendia ser, antes de optar pelo cinema) Martin Lasalle passa-nos a sensação de um perturbado, de um amedrontado, sentindo o assédio do policial, essa situação desconfortável que envolve o seu personagem Michel, um batedor de carteiras.
De um modo geral, o cineasta francês é associado ao jansenismo. Esse movimento católico que leva o nome do seu criador, o teólogo e bispo holandês Cornélio Jansênio (1585-1638) pregava a ideia da predestinação quanto ao destino do homem, que não tinha como mudar esse destino. O homem não teria livre-arbítrio, liberdade, estando destinado a fazer o que lhe acontecia na vida. É o que ocorre com Michel. Um jovem que se vê impelido a se tornar um assaltante, sem ter a vocação e o talento para tal, tanto que é apanhado pela polícia no primeiro roubo que pratica. É apenas interrogado, mas, a partir daí, inicia-se o assédio do policial chefe. Mesmo quando lhe aparece um verdadeiro profissional que lhe ensina os truques para o bom desempenho da "profissão" (e com quem, além de um conhecido deste, passa a agir), percebe-se que ele não nasceu para ladrão. E, no entanto, prossegue nessa "aventura", segundo a definição de Bresson numa espécie de "nota" antes de se iniciarem os créditos. Até ser de novo apanhado e dessa vez fica preso.
Ao filme não interessa revelar o destino do personagem daí pra frente, até por não se tratar de um filme policial, como esclarece Bresson no início da "nota". E, sim, mostrar que, na cadeia, recebendo visitas de Jeanne (Marika Green), a jovem vizinha da sua mãe (presumivelmente viúva, esta vive sozinha, pois o filho mora em um pequeno e modestíssimo apartamento), Michel desperta para o fato de que existe um amor entre eles. Um sentimento que o faz chegar até ela só depois de ele ter percorrido um "estranho caminho". Tarde demais. Os planos da cena final pertencem à antologia do cinema. Michel e Jeanne separados pela grade buscam se beijar e se tocar, em vão. E a derradeira imagem (Michel de frente, Jeanne de perfil, um pouco inclinada, unidos e ao mesmo tempo separados pela barreira da prisão) contém uma beleza e uma funcionalidade pictóricas, dando razão a Truffaut quando disse que o cinema de Bresson se aproxima mais da pintura do que da fotografia.

terça-feira, janeiro 27, 2009

MARTA



Você não faz ideia com quem sonhei na noite passada. Se lembra de uma noite em que você chegou no "Fascinação" e foi para a minha mesa, onde estava com uma dona? Sei, sei que umas duas ou três vezes aconteceu a mesma coisa e era outra a mulher. Mas puxe pela memória, a sua não deve tar lá essas coisas, igual à minha, mas faça um esforço, vá. Você tinha vindo do circo, que gostava muito, e começou a falar do espetáculo. E quando terminou de falar, a mulher disse que já fora ver, que ia ver de novo porque gostava também muito de circo e que até trabalhara num. A função dela era modesta (nem me lembro qual), mas contou, os olhos brilhando de encantamento, esse período da sua vida. Ah, se lembrou. Tem razão, você não pode se lembrar de como ela era, faz tanto tempo que isso aconteceu. Era morena, altura mediana, mas, sentada, parecia ser mais alta pelo corpo esbelto. Esbelto e bem feito. Tinha um rosto comum, mas não exatamente feio. E era simpática e educada.
Como se chamava? Marta (talvez fosse o seu nome de guerra, isso era comum nas raparigas, e eu nunca lhe perguntei se era o seu nome verdadeiro). Pois é, cara, depois de tantos anos (bote aí uns quarenta), sonhei pela primeira vez com Marta. Não, não. Não estávamos trepando. Era como se Marta fosse outra mulher. Quer dizer, como se ela não fosse uma mulher da vida. Mas não quero falar do sonho, que, aliás, foi curto. Quero falar daquela Marta, daquela mulher que me proporcionou um dos melhores momentos da minha vida.
E quando digo momentos nem estou pensando naqueles passados na cama, quando os nossos corpos tão colados, como se formássemos um único corpo, se entregavam ao prazer, que, no meu caso, atingia o êxtase. Mas pera aí. Eu posso falar nos nossos momentos na cama, sim. Mas no que acontecia entre uma foda e outra. É, porque quando íamos para o quarto, não era essa de dar uma rapidinha, pagar e ir embora. Depois da primeira, ficávamos conversando. Os assuntos variavam. Depois de muito tempo, retomávamos as carícias, os estímulos para o ato (o segundo ato? Seu gozador). Entre as trepadas e as conversas eu passava mais de uma hora com ela. E já tínhamos conversado muito, bebendo cerveja, antes de irmos para o quarto. Passamos a ficar naquela área do "Fascinação", isolada do salão principal. Você se lembra bem. Era uma área pequena, não cabia muita gente, meio escura, não tinha aquela zoada de vozes, risadas e música barata e ali ficávamos muito tempo. De mãos dadas, um beijo nas pausas entre um assunto e outro.
Uma noite na cama ela disse que gostaria de conversarmos por telefone. Topei na hora. Apenas estabeleci o horário. Você sabe que naquela época eu trabalhava num escritório de advocacia. Ficava sozinho entre as onze e o meio dia, o doutor Moacir saía quase diariamente ali pela dez, dez e pouco, para tratar de assuntos profissionais e , às vezes, particulares, só voltava perto das três. A secretária saía pontualmente às onze para almoçar. E pouco depois que ela saía, Marta me ligava. Tinha saído do banho. Conversávamos uns dez minutos, tinha vez que um pouco mais. Não não, acontecia um dia por semana, raramente dois, porque também eu aparecia no "Fascinação" toda semana. Ah, como eram agradáveis aqueles telefonemas. Parecíamos namorados.
Mas você não pode imaginar o que ela me disse uma vez na cama. Sabe o que ela disse? Que o seu maior desejo era passar uma noite inteira comigo, acordarmos, darmos uma, ela se levantava, ia preparar o café e o tomávamos à mesa, batendo papo. Feito marido e esposa. Ah, como teria sido bom. Não só uma noite, mas muitas, dependendo da conveniência dela. Mas não podia ser, eu morava com os meus pais. Até disse a ela que, se ganhasse bem, deixava os meus pais, alugava um apartamentozinho. Mas cadê dinheiro?
Esse seu sorrisinho eu sei o que ele significa, seu sacana. Sei, ela podia fazer a mesma coisa com outro homem, até com mais de um. Não tenho a pretensão de achar que ela me amava. Não importa. O que importa é que Marta, Martinha, fez tudo isso comigo e, torno a dizer, me proporcionou os melhores momentos que já tive nessa vida que tá ficando muito chata.
Mas recolha o seu sorriso e preste atenção no que vou dizer. Teve um lance que fez ela ter uma impressão muito boa de mim. Foi num sábado de manhã. Eu estava reunido com amigos na frente da farmácia de Vavá (o nosso amigo Vavá, que morreu novo), jogando conversa fora. De repente vejo Marta vindo na nossa direção. Eu tinha estado com ela na noite anterior. Era a segunda ou terceira vez que tínhamos ficado. Quando ela chegou junto a nós, eu continuava virado para ela, ela me olhou, sorriu (eu notei) encabulada, eu disse tudo bem?, ela respondeu tudo bem e seguiu a caminhada. Ninguém do grupo perguntou quem era. Marta tinha atributos físicos, mas não o suficiente para chamar a atenção ao sair à rua. E estava vestida discretamente, diria mesmo modestamente, que também não dava bandeira de ser uma puta. Pois bem. Dias depois fui ao "Fascinação". Já nessa vez demoramos no quarto, conversando. E no meio da conversa ela confessou que se surpreendera agradavelmente por eu ter falado com ela na rua e na presença de amigos. Não tinha virado o rosto, como os outros homens faziam quando a encontravam na rua. Tenho certeza que tocando fundo em Marta, o meu gesto aflorou nela um sentimento por mim, que, se não era amor, era afeto, era carinho.
Por que só agora tou lhe contando tudo isso? Se somos amigos antes mesmo de eu conhecer Marta. E eu sei? Talvez porque tenha sonhado com ela. Ou, quem sabe, por esta lua, este conhaque. Já vai? Fica mais um pouco. Não pode? Então, até uma outra vez.

terça-feira, janeiro 20, 2009

PENA LITERÁRIA


Foto de Fernando Pessoa
in www.revista.agulha.nom.br/



Já perto do final do ano passado o juiz Mário Azevedo Jambo, da 2a. Vara Federal do Estado do Rio Grande do Norte, cominou duas penas alternativas à portuguesa Íris (o sobrenome não foi divulgado pelos jornais), acusada por tráfico de drogas. A primeira obriga a ré a prestar serviços a uma entidade pública especializada no tratamento e recuperação de dependentes de drogas em um período de 4 anos, por uma hora a cada dia. A segunda pena chamou a atenção da opinião pública pelo inusitado do seu teor. (Aliás, a natureza da pena já fora aplicada pelo mesmo juiz, em abril de 2008, a três jovens que, através da Internet, roubavam senhas de correntistas de bancos e clonavam cartões de créditos, e obtivera uma repercussão ainda maior por ser a primeira vez que isso ocorria, pelo menos, no Brasil.) No caso da mulher, talvez por ser de Portugal, ela foi condenada a ler vários poemas do seu compatriota Fernando Pessoa e proceder a uma análise deles. Transcrevo, a seguir, o que li num jornal de Natal: (a acusada fica obrigada) "a comparecer e permanecer diariamente nos dias úteis, entre 14 e 17 horas, na biblioteca da Justiça Federal do Rio Grande do Norte para realizar trabalho de próprio punho sobre o poeta português Fernando Pessoa, especificamente sobre as obras 'O Guardador de Rebanhos', 'Poema em Linha Recta', 'A Liberdade, Sim, a Liberdade', 'Saí do Comboio', 'Depus a Máscara e Vi-me ao Espelho' e 'Eu, Eu Mesmo', apresentando, do próprio punho, impressões e sentimentos pessoais que forem aflorando da leitura dos livros".
Ah, ja ia me esquecendo. Os textos impostos aos "hackers" foram "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, e "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", conto de Guimarães Rosa, do seu livro "Sagarana."
Boa, Meritíssimo!

terça-feira, janeiro 13, 2009

FREI EDUARDO

Um belo dia apareceu na nossa cidade aquele frade baixinho, um pouco gordinho, usando óculos, com idade regulando pelos trinta anos, no máximo. Chamou logo a atenção pelo jeito comunicativo, falando com todos, até mesmo com as crianças, exibindo uma simpatia e uma descontração que não pareciam postiças. O andar era apressado e bamboleante. Essa última particularidade originou uma piada contada à mamãe por uma amiga, e pela mamãe para outras pessoas. Segundo a amiga da mamãe, o filho dela, que era coroinha, ao voltar para casa depois de uma missa celebrada por Frei Eduardo, disse a ela: "mamãe, agora chegou um frade que celebra missa dançando."
A minha casa ficava no caminho para o convento dos frades. Era raro o dia em que não via Frei Eduardo passar pela nossa rua, pois ele ia à igreja pela manhã e à tarde, como acontecia com a maior parte daqueles frades. Teve uma manhã em que ele estava retornando ao convento no momento em que eu jogava bola com um amigo, na calçada lá de casa. Ele vinha pelo meio da rua, no seu passo característico, quando a bola chutada por um de nós foi em sua direção. Pois não é que aquele frade amorteceu a bola, que, na verdade, não fora arremessada com muita força, e em seguida fez uma série de embaixadas com o pé, de nos deixar de boca aberta? Quando terminou a exibição, Frei Eduardo devolveu a bola para mim com o pé e, sorrindo, disse: "Qualquer dia desses vou bater bola com vocês."
Esse dia, para nossa decepção, nunca aconteceu, e hoje acredito que Frei Eduardo tenha dito aquilo apenas por gentileza. Em todo caso, tive um contato bem próximo com ele, os dois separados somente pela peneira do confessionário. É que por ser Frei Eduardo capaz de atos como o da exibição futebolística, inconcebível em qualquer um dos outros frades, ele foi escolhido entre os meninos para confessor. Era como se cada um de nós o tivesse na conta de um amigo mais velho, que nos deixasse à vontade para confessar os pecados, sem sentirmos vergonha ou temor. Só que comigo (não me recordo se os outros meninos tiveram mais sucesso), o desejo de ter Frei Eduardo por confessor só se realizou uma única vez.
Foi numa tarde, com a igreja quase deserta e Frei Eduardo era o único frade disponível para atender a algum esporádico pecador. Fui desfiando os pecadilhos com desembaraço e a sensação de estar à vontade, como esperava me sentir na presença de Frei Eduardo, exceto quando ele me perguntou se praticava o onanismo. Esse era sempre pra mim o momento mais difícil da confissão, o embaraço, a vergonha refletiam-se na minha voz e na minha pele e não foi diferente com Frei Eduardo.
Houve um breve silêncio depois de confessar o último pecadilho, rompido por Frei Eduardo, que perguntou se ainda tinha algo a revelar. Respondi que não, ele pôs-se a me dar conselhos, a me fazer recomendações, poucos, é verdade, consumindo menos tempo do que os outros frades. Quando fiz menção de me levantar, depois de ouvir a penitência e de receber a absolvição, Frei Eduardo me pediu para esperar e fez aquela pergunta:
"Escuta. Você é irmão da Lúcia?"
"Sou".
"Está bem. Pode ir, meu filho."
Saí da igreja com aquela pergunta me rodando na cabeça. Por que Frei Eduardo quisera saber se eu era irmão da Lúcia? Não tinha como discernir o que sentia, exceto uma sensação de estranheza, que aumentou quando cheguei em casa. Ao responder à pergunta da mamãe se me confessara, acrescentei que me confessara com Frei Eduardo e disse o que acontecera. Percebi algo diferente na expressão do rosto dela, além de um leve rubor.
Frei Eduardo foi embora, Lúcia morreu, eu cresci, arranjei emprego, casei, vieram os filhos, e mesmo com a passagem dos anos não esqueci aquele episódio da minha infância e continuei intrigado com a pergunta do frade. Já morava há muito tempo na capital quando um dia hospedei um irmão bem mais velho, residente noutra cidade, que viera de férias. Na véspera do seu retorno, fomos à noite a um bar na praia. As cervejas já se acumulavam na mesa, estávamos relembrando a nossa cidade do passado (ele a visitara depois de muitos anos ausente), de repente lhe perguntei se se lembrava de Frei Eduardo.
"Me lembro demais. Não só dele, mas de muitos daqueles frades."
O meu irmão ia começar a falar de um vigário que se tornou famoso na cidade por várias de suas atitudes, quando o interrompi:
"Você sabe o que houve uma vez em que me confessei com Frei Eduardo?"
Me lançou um olhar de vivo interesse e falei da pergunta do fradinho, do efeito que ela causara em mim até aquele momento e da reação da nossa mãe. Ele me ouvia atentamente relatar o fato e só falou quando o encerrei.
"Pois eu lhe digo que a atitude da mamãe foi perfeitamente compreensível. Você era ainda um menino que mijava na rede (sorriso do meu irmão), portanto, não sabia dos rumores que se diziam sobre Frei Eduardo com algumas mulheres da nossa cidade. Falavam até da mulher do Hercílio Campos. (Se lembra de Dona Erandir, que vivia na igreja?) Não sei se aqueles rumores tinham algo de verdade; se as pessoas interpretavam maldosamente aquele jeito de ser daquele fradinho. Não sei. Então, a mamãe, que não desconhecia aquele falatório envolvendo Frei Eduardo e algumas mulheres, ao ouvir você contar que Frei Eduardo tinha falado na filha dela, pensou logo que a Lúcia estava dando motivo para andar na boca do povo."
"E ela deu motivo para o falatório das pessoas?"
"Isso eu não sei. E é claro que as pessoas não iam falar na minha frente."
Ficamos repentinamente calados, mas por alguns segundos. O meu irmão voltou a falar.
"A Lúcia também, você deve se lembrar, era uma moça muito comunicativa. Era por isso muito popular em nossa cidade. Talvez aquele fradinho, também muito comunicativo, gostasse da nossa irmã como uma alma gêmea. Talvez não tenha havido nenhuma maldade naquela pergunta. Quê que você acha?"
Disse que não sabia o que dizer. E o meu irmão logo puxou outro assunto.

terça-feira, janeiro 06, 2009

MEUS DOIS AVÔS



Cícero era o nome do meu avô paterno. Os netos não o chamavam de vovô, mas de Pai Cícero. Estive com ele apenas duas vezes, já que morávamos em cidades muito distantes uma da outra. (Meu outro avô também morava numa cidade longínqua, aliás, vizinha à de Pai Cícero.) Mas nunca me saiu da lembrança a visão de Pai Cícero trabalhando, com paciência e habilidade, na feitura de palitos. Fazia aquilo como "hobby", não como ofício, que este era exercido num cartório. Os palitos eram usados na sua própria casa e eram dados aos parentes. Quando voltávamos para a nossa cidade, os levávamos em uma quantidade razoável.
Gostava de ler. Não tenho ideia dos autores que lia, mas tenho quase certeza, por sua pouca instrução, que não eram dos maiores da literatura. E gostava de que os netos lessem para ele. Fazia-o, disso tenho certeza, para avaliar a capacidade do neto. Fui "testado" uma vez. Eu tinha uns nove para dez anos. Um tanto amedrontado diante daquele homem mirrado, mas que impunha autoridade, mesmo involuntariamente, que na cabeça daquele menino devia ter uns duzentos anos, peguei o livro e comecei a ler o trecho que ele indicou. Não me lembro se o trecho era longo, mas não devo ter lido menos que dez minutos. A uma certa altura ele me mandou parar, pediu o livro e disse que podia me retirar. Me afastei sem saber o que o Pai Cícero tinha achado da minha leitura. Só quando já estávamos de novo em casa é que ouvi do papai como tinha me saído no "teste." Pai Cícero tinha gostado, sim. Segundo ele, de todos os seus netos da minha idade, eu era o que lia melhor. Foi o primeiro elogio que recebi na vida. E dos mais sinceros, creio.
Já no físico - alto, magro, mas não muito, espigado - o meu avô materno era muito diferente de Pai Cícero. Um traço marcante de vovô Pirajá era a sua extremada religiosidade. Ao rezar o terço de todas as noites, o fazia ajoelhado sobre caroços de milho (ou de feijão, não me lembro com precisão). Se ouvisse alguém dizer, por exemplo, "ô vento danado," a advertência vinha em cima da bucha: "não diga isso, que o vento é de Deus." Já o conheci muito pobre, vivendo de uma modestíssima venda de gêneros alimentícios, mas possuíra bens imóveis, que foram lhe escapando por uma falta de tino para negócios e, também diziam, pela doação de parte deles à Igreja. Um homem bom, honesto, às vezes, doce, mas que, fácil, perdia as estribeiras. E, zangado, era outro homem, embora mantivesse o controle do uso de palavras chulas.
Em uma de suas visitas à nossa casa, ele soube que uma das minhas irmãs, que fizera um casamento desastroso, levara uma surra do cafajeste do marido. Ah, pra que foram dizer a ele! Indignado ao último grau, vovô Pirajá queria, por fina força, ir à casa da neta tomar satisfações com o marido dela. Foi um custo para o papai demovê-lo da ideia. E, na época, já estava aí pelos setenta.
Mas se o papai conseguiu dissuadi-lo daquela vez, de outra vez foi por ele dissuadido, numa ocorrência em que o envolvido era eu. Foi no mesmo dia da chegada do vovô. Eu tinha feito uma traquinagem qualquer e o papai ia me bater, e foi aí que o vovô se meteu. Primeiro, ele pediu ao papai que dispensasse a punição. Depois, como o genro se mostrasse inflexível, mudou de atitude e disse que não o deixaria fazer aquilo comigo. O papai recuou, atendeu ao sogro, e, se bem me lembro, me disse que agradecesse ao meu avô por não levar uma pisa.
À noite, no meu quarto, antes de dormirmos, vovô me aconselhou a não contrariar mais o meu pai, para não apanhar. Quando ele foi embora, fiquei com medo de que a surra tivesse sido apenas adiada. Mas a raiva do meu pai já tinha passado e a travessura ficou por isso mesmo. Obrigado, vovô Pirajá!

terça-feira, dezembro 30, 2008

POEMA DE FIM DE ANO DE MÁRIO QUINTANA

Quadro Esperança, do pintor inglês George
Frederick Watts (1817-1904)
* * * * * * * * * * * * * * *
Esperança
Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
- Ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
- Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
- O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...
* * * * * * * * * * * * * * *
Extraído de "Literatura Comentada - Mário Quintana
Abril Educação, 1982.

terça-feira, dezembro 23, 2008

OS MELHORES FILMES DE 2008

Cena de "Contos de Tóquio".

A exemplo dos anos anteriores, estou divulgando aqueles que considero os melhores filmes do ano que está se findando, segundo os princípios que regem uma lista individual, sujeita, portanto, a questionamentos naturais. Na verdade, são duas listas: uma para filmes inéditos, outra para filmes revistos, num total de 16 títulos. E, ao contrário dos anos anteriores, os filmes de ambas as listas estão relacionados em ordem preferencial. Ei-los.

INÉDITOS

1 - Contos de Tóquio (Yasujiro Ozu/1953)

2 - Arca Russa (Alexandr Sokurov/2002)

3 - Pai e Filha (Ozu/1949)

4 - A Carruagem de Ouro (Jean Renoir/1952)

5 - Amor à Flor da Pele (Wong Kar-Wai/2000)

6 - Medos Privados em Lugares Públicos (Alain Resnais/2006)

7 - A Comédia do Poder (Claude Chabrol/2006)

8 - Homem Mau Dorme Bem (Akira Kurosawa/1960)

9 - Consciências Mortas (William Wellman/1944)

10 - Estranha Compulsão (Richard Fleischer/1959)

REVISTOS

1 - A Dupla Vida de Véronique (Kieslowski/1991)

2 - Laura (Otto Preminger/1944)

3 - Contos da Lua Vaga (Kenji Mizoguchi/1953)

4 - Os Duelistas (Rydley Scott/1977)

5 - Minha Vontade È Lei (Edward Dmytryk/1959)

6 - Uma Rua Chamada Pecado (Elia Kazan/1951)

terça-feira, dezembro 16, 2008

A MALDADE HUMANA

Cena de "A Queda - As Últimas Horas de Hitler" (Oliver Hirschbiegel/2004)




Segundo o teólogo francês João Calvino, que rompeu com a Igreja Católica e criou a seita protestante que leva o seu nome, "o homem é de todo incapaz de salvar a si mesmo, pois ele é totalmente mau." Não concordo que uma pessoa seja totalmente má, assim como não existe alguém totalmente bom. É impossível penetrar nos escaninhos da natureza humana, onde se guarda o incognoscível de um homem, e, por isso, é comum nos surpreendermos com um ato indigno de uma pessoa por todos reputada como boa, e com um exemplo de bondade de alguém tido e havido como mau.

Há alguns anos li no caderno "Idéias" do Jornal do Brasil uma matéria sobre Hitler, melhor dizendo, um ato de Hitler que surpreenderia qualquer um que sabe do ódio que ele tinha aos judeus, ódio esse que custou a vida de milhões deles. Pois, conforme essa matéria, uma determinada família judia foi poupada por Hitler dessa sua insana perseguição. Tanto tempo já que li o texto que não me lembro mais nada sobre ele, a não ser que a família nunca foi molestada pelos nazistas. Não me lembro, por exemplo, se foi revelado o motivo que levou Hitler a preservá-la da perseguição (é possível que sim, ou, se não, pelo menos a proposição de hipóteses para o ato).

Ainda sobre Hitler. O filme alemão "A Queda - As Últimas Horas de Hitler" promove uma certa humanização da sua figura. Embora em nenhuma ocasião o filme nos induza a esquecer, um tantinho que seja, as inomináveis atrocidades por ele cometidas, há momentos em que chegamos até a sentir um pouco de pena daquele homem (admiravelmente interpretado por Bruno Ganz), tão cheio de poder até pouco tempo antes, sentindo a derrocada do seu império e afetado gravemente pelo Mal de Parkinson.

Em seu livro de memórias "Infância", Graciliano Ramos fala de um homem de sua cidade chamado Fernando. Um tipo que, já no aspecto físico, dava medo nas pessoas, com o "olho duro", a "voz áspera", grosseirão, "o ar de insuficiência e impostura", os modos, e tantas outras coisas negativas que deixaram uma das recordações mais desagradáveis em Graciliano. Sim, não sorria. Mas além do aspecto físico, Fernando era um homem mau. Valendo-se do parentesco com o manda-chuva do lugar, fazia as piores maldades, entre elas a de desvirginar moças humildes que depois se prostituíam. Na percepção do menino Graciliano, não havia mais ninguém tão mau no mundo. E quando leu em um "dicionário encarnado" que Nero tinha sido o maior dos monstros, duvidou: maior do que Fernando? Mas Nero nunca lhe havia feito mal, ao contrário de Fernando, que o atormentava. E a leitura o deixou embaraçado. O seu conterrâneo "talvez não fosse o pior monstro da terra, mas era safadíssimo."

Pois um dia Graciliano assistia na loja do pai ao trabalho dos dois empregados abrindo caixões de mercadorias. Fernando também estava presente, cochilando num banco. Depois de concluída a tarefa, com as mercadorias distribuídas, uma tábua com pregos fora esquecida no chão. Já desperto, Fernando viu a tábua, apanhou-a, pegou dum martelo e pôs-se a entortar os bicos dos pregos. Enquanto isso reclamava do desleixo dos empregados. "Se uma criança descalça pisasse naquilo?" Diz Graciliano que não acreditava no que via e ouvia, chegando a pensar que um milagre acontecera. E julgou-se injusto por considerar um monstro quem se preocupava com que as crianças pudessem cortar os pés. E conclui o capítulo" "Talvez Nero, o pior dos seres, envergasse os pregos que poderiam furar os pés das crianças."








terça-feira, dezembro 09, 2008

UM EMBLEMA DA MINHA INFÂNCIA


Não havia trem em Canindé. Fui conhecer o trem em Itapiúna, cidade próxima. Ele saía de lá com destino a Juazeiro do Norte, terra da minha mãe. Eu viajava na companhia dos meus pais. Era um dia ou pouco mais de viagem, pois tínhamos que pernoitar em Senador Pompeu. Aí chegávamos no começo da noite, dormíamos e tomávamos de novo o trem perto do amanhecer.
Uma viagem longa, mas que ainda hoje lembro com saudade. E a memória guardou algumas lembranças daquelas viagens. O vagão lotado, o ruído de pessoas conversando, o condutor uniformizado, de boné, que pedia ao papai as passagens para marcá-las com um objeto parecido com um alicate - o mesmo homem, acho, que atravessava os vagões anunciando o nome da próxima estação. Alguns daqueles nomes ficaram para sempre nos meus ouvidos: Acopiara (o de que mais gostava), Missão Velha, Cedro, Iguatu. Quando o trem parava em uma estação, apareciam os vendedores de guloseimas, anunciando-as em vozes altas que se misturavam, causando uma enorme zoada.
Em Juazeiro nos hospedávamos na casa dos meus avós maternos. Eles moravam longe do centro, em um lugar pouco habitado. À frente da casa passava um trem mais de uma vez por dia. Era ouvir aquele apito e correr para assistir, os olhos atentos e brilhantes, à passagem do trem.
Acho que foram somente duas viagens. Vamos botar três. De uma delas me recordo especialmente de um fato engraçado. O meu irmão abaixo de mim, nos seus quatro/cinco anos, às vezes ao avistar uma casinha solitária, dizia pro meu pai, fazendo-nos rir: "papai, a gente podia ir morar naquela casa."
Já adolescente fiz uma viagem, sozinho, de trem. Estava de férias escolares e fui passar uns dias com um irmão solteiro que trabalhava, por coincidência, em Senador Pompeu, a cidade onde o trem da minha infância parava para o pernoite. Não sei por que, não me lembro nada dessa viagem.
Foi a penúltima vez que andei de trem. A última aconteceu quando já morava em Natal. Dessa vez peguei o trem em Fortaleza, acompanhando minha mãe que ia visitar Juazeiro. Achei longo e cansativo o percurso. E, no entanto, era-o muito menos do que quando saíamos de Itapiúna para o mesmo destino. Devo isso, creio, à conta dos meus vinte e tantos anos, quando já tinham ficado para trás a infância e tudo aquilo que fazia parte dela e me dava uma sensação de felicidade que nunca mais pude experimentar. Por isso sempre que vejo um trem, hoje apenas e de raro em raro na televisão, ou num filme, remeto-me à infância. Foi ele um dos emblemas daqueles tempos. Assim como o circo, a praça da Basílica, o Cine Canindé, os gibis, as peladas.

terça-feira, dezembro 02, 2008

MISCELÂNEA





- A FM Universitária é uma exceção entre as rádios de Natal. Tem uma programação musical de qualidade (embora a repetição das músicas), divulga a poesia, apresentando trechos de poemas de poetas do RN e de outros estados, dá dicas sobre o comportamento dos motoristas no trânsito, informa os eventos culturais na cidade, tem um noticiário curto de hora em hora, além de outros atrativos. Mas há uma coisa que me irrita sempre que o locutor fala de um compositor ou cantor da terra (em geral, os dois são o mesmo), ou é posta no ar a composição. É aquilo de dizer "música potiguar brasileira". Por que acrescentar "brasileira" a "potiguar"? Existirá uma música potiguar queniana? Finlandesa? Ou hondurenha? Gostaria de conversar um dia com alguém ligado à rádio, para que ele me explique a razão dessa redundância.


- Desde que me entendo por gente, conheço a expressão "correr risco de vida" em referência a alguém que sofreu algum tipo de acidente. De uns tempos para cá os telejornais estão substituindo-a por "correr risco de morte". É incorreto o novo uso? Acho que sim se atentarmos para o detalhe de que na expressão podem estar ocultas as palavras "perder" e "a". Fulano corre (ou não corre) risco de perder a vida. Assim, risco de morte não terá sentido, pois não é possível perder a morte. Se os telejornais não mais empregam a expressão, por a entenderem errada, ou caduca, nada mais simples que usarem o verbo "morrer". "Fulano corre (ou não corre) risco de morrer". É o que penso.
- Luís da Câmara Cascudo e Graciliano Ramos trocaram cartas e livros durante um certo tempo. Na primeira oportunidade em que foi ao Rio, Cascudo conheceu o escritor. Ficaram amigos. Em um dos encontros dos dois, com aquele azedume característico, Graciliano desceu a lenha na falta de hábito de leitura do brasileiro. "Ninguém lê nessa terra. Gente rica não compra livro. Você encontra numa casa de luxo vinte penicos de porcelana, mas nem um volume. Se os encontrar, estão encadernados e arrumados como enfeites de salão". (Mestre Graça, o panorama não mudou, ou mudou muito pouco, quase nada.) De outra feita, ao ouvir do potiguar o antigo desejo de escrever um romance, mas da "impossibilidade mental" de pôr mãos à obra, Graciliano disse com o mesmo mau humor e aquela franqueza desconcertante: "Pois não escreva! Fique no seu natural até o fim. Esse Rio de Janeiro está fervilhando de romancistas que nasceram para outra coisa". E disse "coisa" numa linguagem que Cascudo preferiu omitir no livro que relata esse contato entre o potiguar e o alagoano, dois dos maiores intelectuais que o Brasil produziu ("O Tempo e Eu", há pouco reeditado pela EDUFRN).
- Há uns três meses estava em uma clínica para marcar uns exames solicitados pelo meu cardiologista. Enquanto aguardava ser atendido, reparei em uma moça sentada a meu lado. Com uma pasta grande e demonstrando intimidade com as atendentes, deduzi que trabalhava em um laboratório. Tive a confirmação ao perguntar a ela e disse que já havia visto mulheres ocupando diversas funções, antes restritas aos homens, mas era a primeira vez que me deparava com uma representante de laboratório. Foi então que uma das atendentes, sorrindo, e puxando brasa para a sua sardinha (ou o seu sexo), afirmou: "As mulheres estão bombando". Já ouvira antes essa palavra, mas dita por um homem, e achei que o significado tinha uma conotação maliciosa. Dita, porém, pela mocinha, entendi que "bombar" é, como se dizia há muitas décadas, estar com tudo e não estar prosa. Não me agrada essa palavra. Acho-a vulgar, de mau gosto. Desconfio que foi veiculada por uma novela da Globo. Tomara que ela dure o tempo em que durar a novela.

terça-feira, novembro 25, 2008

CONTOS DE TÓQUIO ( Tokio Monogatari/1953)




Também conhecido por Viagem a Tóquio e Era Uma Vez em Tóquio, esse filme de Yasujiro Ozu (Pai e Filha, já comentado aqui), aborda a questão dos relacionamentos familiares, centrando-se na conduta do filho Koichi (Sô Yamamura) e da filha Shije (Haruko Sugimura) para com os pais, Shukishi (Chishu Ryu) e Tomi Hirayama (Chieko Higashiyama), que saem de sua longínqua cidade para visitá-los em Tóquio - conduta a que assistimos com um misto de pena pelo velho casal e de reprovação, que pode chegar até à indignação. Não há alegria, não há prazer pela visita da parte dos dois filhos. O que há é uma sensação de incômodo até certo ponto dissimulado, uma indiferença, uma falta de dedicação aos pais, confinados na casa do filho, sem que lhes seja mostrada a cidade, situação que chega ao ponto extremo de eles fazerem o casal passar uns dias em um hotel. E por os velhos não comentarem entre si a atitude dos filhos (a única observação que Shukishi faz à esposa é quanto à descoberta de que Koichi é um um "médico de subúrbio", que não se realizou, portanto, na profissão), fica-se com a impressão de de que eles não a sentem. Mas é uma impressão falsa, como se verá perto do final do filme.
Essa viagem só não se torna um desastre completo por causa de Noriko (Setsuko Hara), a nora viúva. É ela que leva os ex-sogros para um passeio pela cidade em um ônibus turístico e abriga Tomi em sua casa uma noite, quando deixara o hotel com o marido, perturbados com o barulho da noite anterior. Aliás, a chegada inesperada dos pais à casa da filha, onde funciona o seu salão de beleza, proporciona uma situação constrangedora para Shije, que os manda esperá-la em um cômodo da casa e, perguntada por uma cliente quem são os visitantes, se envergonha de revelar que são seus pais, fazendo-os passar por uns "amigos do interior."
É Noriko, a meu ver, o personagem mais "forte", por concentrar em si o que de mais humano há no filme, em que pese o realce dado ao casal de velhos. É ela que proporciona à ex-sogra o único momento agradável em sua estada naquela Tóquio de forte calor (um detalhe: na maior parte de Contos de Tóquio, o casal está se abanando com um leque, o que pode ser um contraponto à frieza do comportamento dos filhos), quando passam a noite juntas. E enquanto os dois filhos mais velhos e o mais novo, Keiso (Shiro Osaka), este residindo em Osaka (e que se atrasa na viagem para visitar a mãe doente, já a encontrando morta) retornam para suas cidades logo depois do sepultamento da mãe, Noryko fica mais um pouco, fazendo companhia ao viúvo e a Kyoko, a solteira ex-cunhada.
E os dois velhos não ficam imunes ao tratamento que recebe dela. Ainda em Tóquio, Tomi a convida para visitá-los e chega a aconselhá-la a voltar a se casar. E Shukichi presenteia-a com o relógio da esposa, um relógio antigo que ela usava desde jovem. É nessa cena entre os dois que, afinal, Shukichi se queixa da conduta daqueles filhos, confrontando-a com o comportamento dela. A Noriko é dedicada uma das últimas imagens dos filme: no trem de volta para Tóquio, ela retira o relógio da bolsa, olha-o rapidamente, e, em seguida, o rosto assume uma expressão séria, reflexiva.
Com a exposição de sentimentos e emoções vários, cujo clímax é a morte de uma mulher sofrida, o filme corria o risco de descambar para o melodrama, não tivesse o diretor a capacidade de Ozu de driblá-lo em razão do seu temperamento artístico, que compunha a sua maneira (ou o seu estilo) de conduzir a história. Ozu conseguia controlar os excessos dramáticos, mesmo quando a cena, o momento continham uma forte carga emocional (observe-se o choro, talvez mais provocado pelo remorso, de Shije quando a mãe morre, ou o desabafo de Kyoko a Noriko, reprovando a atitude dos irmãos que partem pouco depois de Tomi ser enterrada, além do interesse da irmã em se apossar do xale e do quimono da falecida). Além disso, ele enfatizava os silêncios, revelando através dos rostos dos atores as expressões dos seus sentimentos. Ou seja, uma contenção, um despojamento (também na forma), em privilégio da sobriedade, da contemplação, da reflexão. Em sua narrativa havia sempre a presença de elementos que, se não se vinculavam ao enredo (estranhos caminhando, uma embarcação na água, uma paisagem, etc.), mostravam o cotidiano, a vida que vai passando.
O lançamento em DVD de alguns filmes de Ozu é um fato a ser comemorado pelos cinéfilos, que têm a oportunidade de conhecer a obra de um dos grandes mestres da cinematografia. E, entre outras obras-primas, Contos de Tóquio é provavelmente a principal delas.

terça-feira, novembro 18, 2008

CAETANO, MACHADO E UM PROFESSOR DE FÍSICA





Em 1970, quando vivia em Londres, ao abrigo da perseguição da ditadura militar, Caetano compôs a música "Como Dois e Dois" e a enviou para Roberto Carlos. Lançada no ano seguinte, a composição fez muito sucesso, como também o elepê do qual fazia parte. Além da sua qualidade, como quase tudo que Caetano fez, da boa interpretação de Roberto Carlos, suspeito que o sucesso de "Como Dois e Dois" se deveu também a uma frase da letra que dizia "tudo certo, como dois e dois são cinco". Os mais intelectualmente dotados perceberam na frase (não só nela, como em toda a letra, mas especialmente nela)) uma crítica à situação do país naquele momento, cujo ditador era Médici, o mais sanguinário entre os seus pares que estiveram no poder. Já os menos dotados não compreenderam aquela frase, ou não a levando a sério, ou se indignando pelo fato de que ela que subvertia uma verdade matemática.


Mal sabiam eles, inclusive creio que os que compreenderam o seu significado, que Machado de Assis já usara a frase em uma crônica de 15 de março de 1896 (W. M. Jackson Inc. EDITORES/1962). Setenta e quatro anos antes, portanto, do compositor baiano. Em suas crônicas, Machado falava de mais de um assunto, às vezes até quatro assuntos. Nessa, justamente, ele dizia que o fato de não terminar um texto com o tema que o iniciara levava os "inábeis" a pensar "que falta ao escritor lógica ou convicção, quando o que unicamente não há é tempo de fazer outro artigo". E acrescenta: "No meio ou no fim, percebe ele que começou por um dado errado, mas o tempo exige trabalho, o editor também, e não há senão concluir que dous e dous são cinco".


Quase caio das nuvens ao ler isso há poucos dias, o que, para Machado, é melhor do que cair de um terceiro andar. E me veio a suspeita de que Caetano fora buscar no nosso maior escritor a frase de sua composição. Ele devia conhecer a crônica. Ou ter ouvido de alguém que a lera. Penso assim porque é Machado o seu escritor preferido da literatura brasileira. Bom, pelo menos o era na década de 1990, quando revelou isso em uma entrevista à Folha de São Paulo. Revelação que me deixou surpreso, porque supunha que o seu eleito fosse Guimarães Rosa, ou, quem sabe, Oswald de Andrade.


Quando surgiu "Como Dois e Dois", de imediato me veio à lembrança uma aula de Física nos meus tempos de estudante em Fortaleza. O professor já havia terminado de expor a matéria, e ficou conversando com os alunos, aguardando o soar da sirene para deixar a classe. Ele era muito alvo, pequenininho quase como um anão de Velazquez (assim se referia Nelson Rodrigues nos seus escritos a alguém de estatura muito baixa), meio gaiato, sempre fazendo suas piadinhas. Boa gente e competente. Se não tiver morrido, está aí beirando os noventa.Foi quando um colega lhe perguntou se era verdade que dois mais dois não eram quatro, como ele lera ou ouvira alguém dizer, não me lembro com precisão. O professor respondeu afirmativamente e disse que iria prová-lo. Foi para o quadro-negro, pegou do giz e começou a sua "aula". Devem ter se passado uns dez minutos, o quadro-negro foi se atulhando de números e fórmulas. Enquanto isso, todos nós o acompanhávamos com atenção e já ansiosos na expectativa de saber o resultado de dois mais dois. Não deixara um só instante de falar, dando explicação para cada detalhe do seu trabalho. Quando concluiu, o que vimos ali no quadro-negro quase cheio foi que dois e dois são... são.... são... TRÊS. Pois é.