terça-feira, dezembro 16, 2008

A MALDADE HUMANA

Cena de "A Queda - As Últimas Horas de Hitler" (Oliver Hirschbiegel/2004)




Segundo o teólogo francês João Calvino, que rompeu com a Igreja Católica e criou a seita protestante que leva o seu nome, "o homem é de todo incapaz de salvar a si mesmo, pois ele é totalmente mau." Não concordo que uma pessoa seja totalmente má, assim como não existe alguém totalmente bom. É impossível penetrar nos escaninhos da natureza humana, onde se guarda o incognoscível de um homem, e, por isso, é comum nos surpreendermos com um ato indigno de uma pessoa por todos reputada como boa, e com um exemplo de bondade de alguém tido e havido como mau.

Há alguns anos li no caderno "Idéias" do Jornal do Brasil uma matéria sobre Hitler, melhor dizendo, um ato de Hitler que surpreenderia qualquer um que sabe do ódio que ele tinha aos judeus, ódio esse que custou a vida de milhões deles. Pois, conforme essa matéria, uma determinada família judia foi poupada por Hitler dessa sua insana perseguição. Tanto tempo já que li o texto que não me lembro mais nada sobre ele, a não ser que a família nunca foi molestada pelos nazistas. Não me lembro, por exemplo, se foi revelado o motivo que levou Hitler a preservá-la da perseguição (é possível que sim, ou, se não, pelo menos a proposição de hipóteses para o ato).

Ainda sobre Hitler. O filme alemão "A Queda - As Últimas Horas de Hitler" promove uma certa humanização da sua figura. Embora em nenhuma ocasião o filme nos induza a esquecer, um tantinho que seja, as inomináveis atrocidades por ele cometidas, há momentos em que chegamos até a sentir um pouco de pena daquele homem (admiravelmente interpretado por Bruno Ganz), tão cheio de poder até pouco tempo antes, sentindo a derrocada do seu império e afetado gravemente pelo Mal de Parkinson.

Em seu livro de memórias "Infância", Graciliano Ramos fala de um homem de sua cidade chamado Fernando. Um tipo que, já no aspecto físico, dava medo nas pessoas, com o "olho duro", a "voz áspera", grosseirão, "o ar de insuficiência e impostura", os modos, e tantas outras coisas negativas que deixaram uma das recordações mais desagradáveis em Graciliano. Sim, não sorria. Mas além do aspecto físico, Fernando era um homem mau. Valendo-se do parentesco com o manda-chuva do lugar, fazia as piores maldades, entre elas a de desvirginar moças humildes que depois se prostituíam. Na percepção do menino Graciliano, não havia mais ninguém tão mau no mundo. E quando leu em um "dicionário encarnado" que Nero tinha sido o maior dos monstros, duvidou: maior do que Fernando? Mas Nero nunca lhe havia feito mal, ao contrário de Fernando, que o atormentava. E a leitura o deixou embaraçado. O seu conterrâneo "talvez não fosse o pior monstro da terra, mas era safadíssimo."

Pois um dia Graciliano assistia na loja do pai ao trabalho dos dois empregados abrindo caixões de mercadorias. Fernando também estava presente, cochilando num banco. Depois de concluída a tarefa, com as mercadorias distribuídas, uma tábua com pregos fora esquecida no chão. Já desperto, Fernando viu a tábua, apanhou-a, pegou dum martelo e pôs-se a entortar os bicos dos pregos. Enquanto isso reclamava do desleixo dos empregados. "Se uma criança descalça pisasse naquilo?" Diz Graciliano que não acreditava no que via e ouvia, chegando a pensar que um milagre acontecera. E julgou-se injusto por considerar um monstro quem se preocupava com que as crianças pudessem cortar os pés. E conclui o capítulo" "Talvez Nero, o pior dos seres, envergasse os pregos que poderiam furar os pés das crianças."








2 comentários:

Mariazita disse...

Meu caro Francisco
Evidentemente, não há ninguém totalmente bom nem completamente mau.

Será? Será que não há excepções?

Na década de 70, finais de 60, mais ou menos, "devorei" tudo o que se escreveu sobre a segunda guerra mundial.
Há um livro que não sei se leu, "Médicos malditos", que descreve as experiências levadas a cabo pelos nazis nos compos de concentração. É, simplesmente, arrepiante!

Na minha opinião, a tal excepção de que falei acima, no campo dos "maus", é precisamente o Hitler.
E ainda que eu viesse a saber, por exemplo, que ele tinha morrido em grande sofrimento, eu não conseguiria sentir pena. Não depois das atrocidades que ele cometeu, incentivou e permitiu que se cometessem.

Aparte as excepções acredito que qualquer pessoa muito má possa ter uma atitude que nos faz até duvidar de nós mesmos, o mesmo acontecendo com uma pessoa muito boa.

E agora vou ser uma pessoa boazinha e deixar os seus ouvidos (neste caso, olhos...) em paz!

Votos de um feliz Natal.

Beijinhos
Mariazita

Andréia Medrado disse...

Querido Francisco,

Quanta serenidade em suas palavras. Quanta propriedade.
Gostei de seu texto; aliás é uma ótima refelxão para os dias de hoje e os vindouros.
Fico feliz por ainda existir maravilhosas palavras....
De fato, ninguém é totalmente mal; ninguém é totalmente bom; entretanto, a essência do homem é boa. Somos corrompidos pelas paixões: ira, inveja, medo etc. E essas paixões constituem nossos demônios internos; uma vez que deixamos que elas tomem conta de nós, corrompemos nossa essência, mas que a meu ver, pode sempre ser restaurada! Nunca estamos sós!

Um beijo grande!

Fica com Deus!