terça-feira, julho 07, 2009

O CÉU DE SUELY (2006)



Se o vermelho é a cor predominante em "Gritos e Sussurros", de Bergman, neste filme de Karim Ainouz ("Madame Satã") é o azul em diversos matizes. Além do céu de Iguatu, cidade do interior do Ceará, a cor está presente nas paredes da casa da avó de Hermila/Suely (Hermila Guedes), em sua sacola, em uma peça de vestuário, na cabine de telefone público, em um brinquedo da criança. De um azul que parece pintado, expondo, às vezes, uma limpidez manchada por umas poucas nuvens (aplausos para a expressivamente bela fotografia de Walter Carvalho), uma forte claridade, o céu é uma presença constante no filme, primeiro como consequência de um fator climático, depois como se fosse um elemento de aproximação com o "céu" a que Suely aspira alcançar.

E que "céu" é esse? É a mudança para outro lugar, dessa vez em definitivo, no qual ela acredita em uma vida melhor. Deixara Iguatu com o namorado Mateus para morarem temporariamente em São Paulo e retornarem com uma situação financeira decente. Ela regressa com o filho pequeno, ficando à espera do namorado, que viria um mês depois para estabelecer um comércio de gravação de cd e dvd. Mas Mateus nunca irá voltar e aí começa a batalha de Hermila para conseguir o dinheiro necessário para atingir o seu objetivo.

Com o pulso forte do diretor, servido por um bem elaborado roteiro (do qual ele participa com mais dois roteiristas), o filme descreve essa batalha de Hermila, começando com a venda de bilhetes para uma fictícia rifa de um uísque, até ela própria ser o objeto da rifa, quando conhece Georgina (Georgina Castro), uma garota de programa. Tornam-se amigas e Hermila, que, antes, mantinha uma relação com o mototaxista João (João Miguel), segue os passos de Georgina, adotando o nome de Suely. Um dos muitos momentos bons de "O Céu de Suely" é o diálogo entre elas, quando Hermila indaga Georgina a respeito dos seus rendimentos. E aí observa-se a naturalidade das falas entre duas prostitutas (uma já iniciada, a outra por iniciar-se naquele tipo de profissão), que só podem chocar às pessoas de ouvidos puritanos. (Há, contudo, uma diferença entre as duas. Georgina é alegre, expansiva, chegada a um copo, e, que, se não chega a gostar da vida que leva, parece resignada a ela; enquanto Hermila, já como Suely, tem uma expansividade e uma alegria que não são naturais, mas impostas pela profissão.)

À menção desse diálogo, vale destacar que a maneira de falar dos atores de "O Céu de Suely" não contém a falsificação, resultante de um certo exagero e até alguma afetação, que se observa nas telenovelas que mostram personagens do Nordeste. Aqui o "nordestinês" é legítimo e isso se deve ao fato de o diretor e os intérpretes serem originários da região.

"O Céu de Suely" é um filme de muitas qualidades e, aparentemente, sem defeitos. As qualidades avultam até no fato de os personagens terem o mesmo prenome dos intérpretes, um recurso que o diretor utilizou pouco antes de começarem as filmagens, modificando o nome dos personagens já com o roteiro concluído, conforme se fica sabendo através dos depoimentos nos "Extras" do disco. À primeira vista, parece ser um mero detalhe, sem importância. Mas examinando-o melhor, tem, sim, a sua importância. Como diz um dos intérpretes (acho que João Miguel), essa irmanação dos nomes do ator e do personagem dá ao primeiro uma condição de intimidade com o segundo, de conhecê-lo melhor, e, assim, tornar mais produtiva a atuação.

O final apresenta um achado que faz manter a qualidade do filme - se não a elevar. Já no ônibus que a está levando de Iguatu, Hermila, com a expressão pensativa, relembra momentos de sua permanência na cidade. O ônibus é seguido por João, que, em dado momento, se emparelha ao veículo - ele e ela cruzam os olhares - depois volta a acompanhá-lo. Quando o ônibus e João desaparecem de vista, a câmera se fixa um minuto, um pouco mais, no letreiro exposto no semi-arco que se ergue na entrada e saída da cidade: "AQUI COMEÇA A SAUDADE DE IGUATU". A frase de apelo turistico pode também refletir um dilema no íntimo de Hermila, que está abandonando o torrão natal, o filho, a avó, a tia solteirona, a amiga. E, em consequência desse dilema, o espectador é tomado pela expectativa de se Hermila continua a viagem, ou se retorna à cidade com o mototaxista. Decorrido esse tempo, a expectativa é satisfeita.

E aqui eu paro. A fim de não entregar o desfecho desse belo "O Céu de Suely" àqueles que ainda não o viram.

2 comentários:

Mariazita disse...

Querido Francisco
Nada posso dizer sobre o filme, que não vi, aliás creio que não passou em Portugal.
A narrativa que você faz é excelente; dá para ficar com uma ideia quase perfeita do filme.
O final...quem o quiser saber que veja o filme...se puder!
Um pormenor chamou a minha especial atenção: a diferenciação que faz das duas prostitutas - uma que já o é e outra que está a iniciar-se. Fez-me lembrar um livro que acabei de ler "Um ano no tráfico de mulheres" de António Salas, um jornalista espanhol que viveu um ano infiltrado nas máfias que traficam mulheres para a prostituição. O livro é muito bom, e recordo-me de o autor referir a "alegria" forçada com que essas mulheres se apresentam perante os clientes.
Mas isto foi um aparte que nada tem a ver com o seu post, desculpe...

Um beijo carinhoso
Mariazita

Laura_Diz disse...

Francisco, pena não ter ido no dia do lançamento.
Quando tiver um tempinho, me avise, a gente toma um café.
Eu não vi este filme, ma slembro de ter lido Calligaris falando bem do filme.
Abs,Elianne