quarta-feira, dezembro 20, 2006

UM TEXTO DE HORÁCIO PAIVA

Pela segunda vez este blogue é abrilhantado por um texto em prosa do poeta Horácio Paiva. E, por coincidência, o assunto , também como o primeiro aqui publicado, trata de uma homenagem de Horácio a um amigo que se foi. Ei-lo.
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UM MÊS
Um mês sem a presença física de D. Nivaldo Monte entre nós e nesta Natal que amou. Um mês deste tempo que inventamos e que aprendemos a repartir e contar. Mas que, sem retorno, não o devolve. Porque o seu tempo - como, de resto, o nosso tempo - é o da eternidade.
Li certa vez que perguntaram a Galileu Galilei quantos anos ele tinha, ao que respondeu: "Cinco, dez, ou quinze anos. Talvez mais, ou talvez menos. Talvez alguns dias, ou somente um dia. Sim, porque o tempo passado já não me pertence e apenas posso contar com o futuro. Mas este eu não sei precisar".
Sobre esse tema, o tempo é o que dele nos cabe em vida, diz Marco Aurélio em suas "Meditações" (Livro II, 14):
"Ainda que os anos de tua vida sejam três mil ou dez vezes três mil, lembra-te que ninguém perde outra vida, senão a que vive agora, nem vive outra senão a que perde. O prazo mais longo e o mais breve são, portanto iguais. O presente é de todos: morrer é perder o presente, que é um tempo brevíssimo. Ninguém perde o passado nem o futuro, pois a ninguém podem tirar o que não tem".
A matéria do presente seria, então, o próprio tempo. E administraria melhor o seu tempo existencial aqueles que tivessem o seu olhar mais amplo, universal, holístico, de conjunto o visionário.
Tenho que, na arte de viver, expressem sabedoria aqueles que sabem distinguir o principal e o secundário, mantendo a serenidade e a tranquilidade de espírito (mesmo diante das adversidades, comuns na vida de todos) e estando, dessa forma, maus próximos também da felicidade.
A esse própósito, D. Nivaldo Monte não foi apenas um sacerdote, mas um sábio, um visionário, alguém que soube aliar o espírito contemplativo à ação.
Sêneca, um dos mais expressivos pensadores do estoicismo romano - filosofia, aliás, tão presente em nossa religião cristã - recomendava alternar o recolhimento e a vida social: Misturemos as duas coisas: alternemos a solidão e o mundo" (in "Da Tranquilidade da Alma" - XVII, 3) .
A meu ver, portanto, o belo perfil existencial de D. Nivaldo continha esses dois lados: o contemplativo e o ativo.
Nesse último sentido, é inegável a sua profunda contribuição ao desenvolvimento educativo, cultural, político e social de nossa gente.
Entregue ao pensamento, à literatura e às reflexões, não se pode negar, também que foi um vigoroso homem de ação. Aliado ao seu grande amigo e também figura de proeminência da Igreja, D. Eugênio de Araújo Sales, é autor de inúmeros feitos exemplares, essenciais ao progresso e ao crescimento moral e espiritual de nosso povo. Crior, por exemplo, a Rádio Rural (Emissora de Educação Rural), utilizando-a como importante e pioneiro instrumento de alfabetização e educação em nosso Estado. Outra ação pioneira de sua lavra foi a instalação da Escola de Serviço Social (hoje integrada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte), primeira entidade de ensino superior, na espécie, em Natal.
Nos anos de chumbo da ditadura, quando um grupo de humanistas e democratas (Padre Pio, Dermi Azevedo, Elias Cabral Maciel, Rivaldo Fernandes e eu) lutavam contra a opressão, e pela criação de um comitê de defesa de direitos humanos, encampou a idéia e deu-lhe forma até mais ampla, com a fundação da Comissão Pontifícia Justiça e Paz, da qual fui presidente, primeira entidade estadual (mas vinculada ao Vaticano, daí "Pontifícia" ) destinada à defesa dos direitos humanos. Movimento idealista e agregador, a ele somaram-se outros nomes, tornando-o ainda mais forte. Carlos Antônio Varela Barca, Padre Vilela (Pastoral Carcerária), Adilson Gurgel de Castro (primeiro presidente), Marcondes Assis da Silva (Pastoral da Juventude), Marlúcia Paiva, Francisco Gomes, Oswaldo e Roberto Monte e outros.
Era meu amigo e em várias ocasiões conversamos muito. Sobretudo filosofia, política, religião e poesia. Havia entre nós um elo de simpatia, a identificação espiritualo que tanto aproxima as pessoas. Mostrou-me manuscritos seus antes de torná-los livros. Certa vez falava-me sobre a coragem e definia o corajoso não como aquele despojado do medo, mas que o dominava. Tema, aliás, que aborda em seu livro "Toda Palavra é uma Semente": "O problema, o verdadeiro problema não é ter ou não ter medo, mas, quando necessário agir, deixar-se levar pelo temor".
Dediquei-lhe uma tradução que fiz do "Noche Oscura", do místico e grande poeta espanhol San Juan de la Cruz, para mim um dos momentos mais altos (senão o mais alto) da poesia em língua castelhana, que trata do encontro da alma com Deus e cuja primeira estrofe (transcrita no original) associo agora à sua própria partida, após concluída a sua obra, e estando em paz com Deus e com os homens.
"En una noche oscura
com ansias en amores inflamada,
oh dichosa ventura!,
sali sin ser notada,
estandu ya in mi casa sosegada".
Em memória do amigo, em maio às ilusões do mundo e do mistéria, revela-me a poesia, de observação e confiança cósmicas:
A realidade
é a opção
do provável.
O real
é Deus.

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