domingo, julho 23, 2006

UM TEXTO DE HORÁCIO PAIVA

Já apresentei aqui o meu amigo Horácio Paiva como poeta. Hoje é a vez do prosador. Trata-se de um comovente texto de Horácio sobre o seu amigo, o também poeta GILBERTO AVELINO, no transcurso do quarto aniversário da morte deste, ocorrida em 21.07.02.
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GILBERTO, NO CORAÇÃO
Contava-me o meu irmão Daltro que o poeta Esmeraldo Siqueira, seu professor no velho Atheneu, costumava dizer que nunca lhe faltavam interlocutores para uma boa conversa. Quando precisava de sua companhia, naqueles instantes mais necessários ao alimento da alma - que busca respostas no conhecimento e na afirmação filosófica, religiosa, ou estética - ia à sua biblioteca e, diante da plêiade de autores consagrados, escolhia um deles, "puxava-o pela orelha", e lia-o avidamente no silêncio do seu recolhimento.
Com Gilberto Avelino posso dizer que o meu diálogo continua mesmo após a sua morte. Não apenas na agradável e emocionada de sua obra lírica, mas também - sobretudo - no arranjo da memória, no hábil e sentimental exercício da evocação e manuseio diário das lembranças, colocando-as em movimento, removendo-lhes o pó do tempo, polindo-as constantemente para preservar-lhes a atualidade, a pureza da vida.
É que
"a saudade bate no peito
como armadilha
no coração
remove o pó do tempo
aquece
como um frêmito de sol as veias
geladas do passado".
Às vezes quero oferecer-lhe alguma coisa, ou escutar, por exemplo, a sua opinião sobre algum poema que escrevo. E a memória aquecida me dá essa resposta.
Às vezes trago-lhe a lembrança lírica de remotas passagens de sua própria infância, que, com prazer, me contava. E então o vejo criança, à noite, já deitado em sua rede, mas ainda sem dormir, e, assim, o ouço dizer à sua mãe:
- "Mamãe, quero água". E a imagem terna da mãe, que se levanta, pega o canequinho de alumínio, enche-o com a água fria da quartinha - pousada à janela, para melhor assimilar a frieza da noite - e dá-lhe de beber.
Ou ainda poderia oferecer-lhe a singularidade de suas visões proféticas, como nos três curiosos exemplos, a seguir narrados.
Em recente artigo, Ticiano Duarte, nosso amigo comum - e que hoje ocupa , na Academia Norte-riograndense de Letras, a cadeira que fora do poeta - conta de sua reconciliação com Gilberto, ainda na juventude, a partir de um sonho dele, Gilberto sonhara com o pai, já falecido, de Ticiano, e aquele o recomenda procurar o grande amigo e reconciliar-se com ele. Cumpriu o
sonho, dando continuidade à longa amizade.
Na mesma semana de sua morte, Gilberto sonhou com o meu pai, (já falecido à época) a quem muito estimava e admirava, e a quem seguira politicamente em Macau. Dizia-lhe o meu pai que precisava de sua presença, de sua assessoria, para tratar de assunto que requeria urgência. Era uma premonição. Não se evidenciava a certeza, e Gilberto contou-me repetidamente esse sonho, embora sem ares de tragédia e de forma até divertida.
Profetizou esses belos versos, retirados de seu último livro publicado em vida, "Os Tercetos e um Canto às Vozes do Mar", e que compõem o último poema dos Tercetos .
"Amada Amiga, não devo dizer-te agora,
entende a voz dos ventos. Chama-me o mar.
Embarcar irei. A madrugada, a vaga
é tranquila. Digo-te, perenizo os instantes.
Nas tuas lembranças, pois, sempre aportarei.
Ao mar. É o caminho, a minha saga e sina".
Eis que ressurge Gilberto! E, afinal, há um poema que quero, agora, oferecer-lhe, intitulado "Gilberto Avelino". Não é meu. Veio-me pelo poeta e caro amigo Diógenes da Cunha Lima. O seu autor, João Batista Pinto, descendente de Martins Ferreira, um dos fundadores de Macau, conseguiu, em elaborada síntese, em belo resultado estético, ao evocar a imagem de nosso querido Gilberto:
"Foste o sol e o sal
Na planície salina.
O vento que varreu os sonhos,
A sombra clara e amena,
A brisa morna e azul,
O espectro da luz do Alagamar".
E mais oferenda maior seria, enfim, a hora de relembrar a sua declaração de amor a Macau, nesses versos inesquecíveis:
"Esta é a terra que amo.
De rio em preamar sereno,
onde, entre ferrugens e sombras,
descansam âncoras e navegam
fantasmas de barcos cinzentos".
NOTA - Os primeiros versos, que aparecem neste texto, são do próprio Horácio.

Um comentário:

Anônimo disse...

Seu movimento de expor sua homenagem ao amigo me enternece, muito bom o valorizar o AMIGO. Tempo de amigo, é tempo nosso. Meu abraço