domingo, junho 25, 2006

TERESA, TERESA


Cigarro na boca, tiquetique do despertador martelando o ouvido, o lençol jogado nas pernas e remexido pelo sopro do ventilador - João já perdeu a esperança de dormir. Fora deitar muito tarde, passando da televisão para a radiola, e , por fim, para as páginas de uma revista Bocejando, os olhos ardendo, largou a revista e pulou na cama, como se tivesse medo do sono fugir. Foi só deitar para o pensamento retornar. Ainda lutou, ajudado por outros pensamentos, mas o maldito era mais forte. Virou para o lado da mulher, depois ficou de bruços, voltou à posição inicial. Não demorou a se levantar, em busca de cigarro. E estirado, um cigarro atrás do outro, capitulou.
Curioso como uma pergunta de uma criança pode mudar a vida de um homem, torná-lo desconfiado e vigilante para com a companheira de tantos anos - a procura intensa e dolorosa da verdade, um detalhe mínimo assumindo um grau de muita importância. Até o momento em que o garoto fez a pergunta à mãe - ela, vexada, transferiu a resposta para ele - nunca duvidara da fidelidade de Teresa. Viviam juntos todos esses anos e não se lembrava de um só momento em que tivesse pensado no caso, o comportamento de Teresa fechava todas as saídas por onde pudesse escapar uma idéia de suspeita. Tinham lá as suas rusgas - eram como todos os casais. Mas até quando defendiam pontos de vista conflitantes, pareciam mais dois amigos conscientes do valor de sua amizade e que ela deveria ser colocada num nível acima do assunto em discussão. Na cama se entendiam bem, desde a primeira vez. Tinha-se na conta de bom marido, cumpria os deveres conjugais, vestia Teresa na última moda, frequentava os melhores clubes e uma vez por ano iam conhecer uma grande cidade do Brasil. Às vezes variava de cama, mas não sentia remorso, todos fazem isso. Apareça um marido perfeito!
O milésimo cigarro esmagado no cinzeiro. O tiquetiquear do relógio, o zunido da hélice do ventilador - o som de um se distinguindo do outro. Sempre tão submissos, os dois naquela noite se insurgiam contra o patrão. Vira o rosto para o lado de Teresa. Dormindo como só os inocentes e os puros. Quem dorme assim, não pode carregar uma culpa. Tudo obra de línguas maldosas. Amanhã ia ter uma conversa franca com Teresa. Só para desabafar, tinha confiança nela. Devia ter. Ela nada havia feito de ruim pra sua honestidade ser posta em questão de uma hora pra outra. Por que ligar pruma insinuação de gente maldosa? De novo se deita de bruços, na esperança de atrair o sono definitivamente. A cama estala, num instante lembra da noite em que sua cama de solteiro arriou com ele e uma mulher. O espanto dele e dela, depois a risadaria inevitável. Nunca mais a dona quis trepar na mesma cama. Já casado, contou pra Teresa. "Danadinho", Teresa o mimoseara.
Teresa. Teresa É pensar nela e a terrível idéia retornar. Impossível resistir a inimigo tão poderoso. Com um resmungão salta da cama, vai para o quarto de leitura, buscando o refúgio de uma revista. Teresa acomodou o corpo, de modo a ocupar o espaço vazio da cama. Também não dormira um só instante, atingida pelo efeito da pergunta. João começara a desconfiar - a insônia era uma prova. Dali em diante seria vigiada como um ladrão. Adeus tranquilidade. Nesses anos todos interpretara convincentemente o papel de esposa-amante. Alegre quando tinha de ser alegre, carinhosa se João necessitava de seus afagos e carícias, excelente amante quando era procurada. Tão a sério se entregava ao papel que vez por outra alimentava uma briguinha com o marido, porque os casais felizes não podem dispensar as rusgas - são o condimento do amor deles. E adorava fazer esse papel - João adivinhava-lhe os desejos, e, muito mais, passara-lhe um atestado de confiança. Em todo o tempo de casada, pôde levar pra cama os mais diferentes homens. Alguns eram amigos de João. Por eles, ficava sabendo que o marido pegava mulher. Era quando criava uma cena de ciúmes, puxando uma briguinha com ele (precisava extrair todas as possibilidades do papel). Corneou tanto o desgraçado e nunca imaginou ser desmascarada.Agora, por causa de uma frase que o filho ouve e repete pra eles, querendo conhecer o significado, a sua vida ia virar um inferno. Sofria muito mais com a certeza de que a culpa seria declarada. Odiava todo mundo naquela noite: o menino, os homens que falaram dela, aquele despertador de zoadinha enervante. A vida inteira detestara o despertador. (Talvez por ser presente de uma ex-rival. Lhe parecia que a presença dele, no quarto, tinha a função de espioná-la.) Cada noite era posto pra trabalhar, mas o tiquetique monocórdio nunca lhe atrapalhava o sono. Naquela noite, no entanto, parecia querer puni-la, ajudado pelo ventilador.
Não achava lugar na cama. Deitava de lado, deitava de bruços - nada do sono chegar. Pensou em João. O que estaria fazendo? E se estivesse morto no banheiro? O pensamento não era tão absurdo: estivera a refletir e concluíra que ela era culpada. O choque, de tão violento, deoxara-o sem forças para uma reação. Em tais circunstâncias, o suicídio não assumia a forma de uma covardia - ao contrário, transfigurava-se em um ato revestido de sublime significado. Por um instante chegou a torcer pra que isso acontecesse, seria a única saída para ela. Logo depois, movida por um último resquício de dignidade - ou, inconscientemente, não continuava a viver o papel? - levantou-se para procurar o marido. Atravessava o corredor, onde ficava o banheiro, quando notou quando notou luz no gabinete de João. Desviou o caminho, rumou pra lá, surpreendendo-o debruçado sobre a revista. Passou um tempão a observá-lo, sem ousar interrompê-lo. Até ele dar com sua presença. A leitura abandonada, fitou Teresa, e por um rápido instante os seus olhos se encontraram e flertaram como há muito não faziam. Foi ela quem primeiro baixou os olhos, virando-se para sair.Ele a chamou: decidiu que deviam ter ali a conversa franca planejada para o dia seguinte. "O quê"? Teresa se voltou, De novo os olhos penetrando nos outros olhos. E segundos de mudez em João. "Minha filha, me arranje um comprimido pra dor-de cabeça". Voando ela foi e voando voltou, analgésico e copo dágua na mão.
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Conto extraído do meu livro A Morte Trágica de Alain Delon (1972)

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