domingo, maio 07, 2006

CAETANO E SEUS IRMÂOS


"Eu quero tocar fogo neste apartamento,
Você não acredita".
Os pés e a cabeça apoiados em almofadas, ouvia os angustiados versos de Caetano. Era assim todas as noites. Antes, lia um pouco, ou via televisão, se houvesse um programa que o interessasse. Ouvia outros compositores, porém Caetano era o favorito. Às vezes, punha apenas o disco que continha aquela faixa, que, por ser a preferida, repetia exaustivamente. Não havia noite em que não a ouvisse. Vanda - sua mulher - já lhe confessara que não suportava mais escutá-la. E, pelo síndico, já soubera que os vizinhos também partilhavam da mesma opinião. Defendeu-se: ouvia música em volume baixo, portanto, não estava infringindo nenhuma norma do regulamento do edifício. E continuou com o hábito (ou necessidade?).
A constância com que ouvia a música fazia-o, comumente, lembrar-se do que uma irmã lhe contara: uma mulher enlouquecera de tanto ouvir Bolero. Já na ocasião discordara de que fora esse o motivo da loucura. Tinha arraigada a opinião de que a obra de arte não conduz ninguém à loucura. Ao contrário, torna mais lúcidas as pessoas.
O toca-discos solta o estalido que adverte sobre o término da última faixa. Levanta-se e vai recolocar o disco. Antes, resolve servir-se de uma dose de uísque. O televisor do vizinho está informando sobre o currículo de um concorrente às eleições. Saturado, sim, estava da campanha eleitoral. E enojado pelo nível rasteiro em que estava sendo conduzida, os adversários trocando insultos e acusações, os muros da cidade emporcalhados de piche e de expressões indecorosas, os trios elétricos trafegando com um som que ultrapassa a capacidade auditiva das pessoas.
Os versos de Caetano rodavam outra vez. Agora estava sentado sobre uma almofada, o copo ao lado. Até ele chegava o ressonar de Vanda. Invejava-lhe a facilidade para conciliar o sono. Caía na cama e em pouco tempo já dormia. Com ele não era assim. Não foram poucas as noites em que passara insone, buscando todas as posições para dormir - em vão. O médico lhe receitara um sonífero que, no início, produzira efeito. Mas depois de algum tempo, nem com o remédio conseguia dormir. Passou a adicioná-lo ao uísque e só assim obteve algum resultado.
"Eu quero tocar fogo neste apartamento,
Você não acredita".
Genial Caetano, ele pensou. Devia estar numa grande fossa quando escreveu esses versos. Com eles, tornou-se o porta-voz de milhares de irmãos que padeciam de uma angústia invencível. E que, para atenuá-la, recorriam a diversas espécies de terapia: o remédio receitado pelo analista, o álcool, o tóxico, a leitura, o filme, o pranto.
Depois de beber o uísque, sentiu uma súbita vontade de sair. Eram pouco mais de dez horas. Não sentia motivado para a leitura e já escutara música por muito tempo. Coxo, o sono demoraria a chegar. Caminhar seria a melhor maneira de esperá-lo. Deu boa-noite ao vigia, que conversava com dois homens. Andou lentamente pela rua que passa em frente ao edifício. Ainda não havia sido retirada a faixa que aludia à visita do Presidente, ocorrida há dois dias. Lembrou uma vez mais o que um jornal publicara acerca do diálogo do Presidente com o historiador da cidade, estabelecido através de bilhetinhos, por causa da surdez do segundo. Dessa conversa manuscrita, um trecho o deixara chocado - a defesa que o visitante fizera do palavrão. Não que fosse um puritano, nem gostasse de soltar uma palavra obscena de vez em quando. Era a forma grosseira com que foi exposta a necessidade do seu uso e por uma pessoa, cujo cargo o obrigava a portar-se com recato. Pelo menos, diante dos cidadãos.
Havia alguns fregueses no bar do outro lado da rua, onde tocava um frevo rasgado de Moraes Moreira. Chegou ao cruzamento da rua com a que dá acesso à praia. Dirigiu-se para a amurada em frente. Recostado à parede, deitou a vista para os múltiplos colares luminosos. Provindo do mar, o vento brincava com seus cabelos e fazia baixar a temperatura que, durante o dia, já atingia graus elevados naquela época do ano. Resolveu descer até ao mar. À medida que dele se aproximava, o vento aumentava a força e a temperatura diminuía cada vez mais. No caminho, defrontava-se com um ou outro carro, subindo a ladeira. Um homem de barba espessa e cabelos nos ombros o fez parar, pedindo-lhe fogo. Acendeu com a chama do seu cigarro o cigarro do homem, em quem descobriu um adolescente disfarçado pela barba e os cabelos compridos que se agitavam com o vento. Sentiu um odor estranho exalado pelo cigarro daquele quase garoto. Que lhe disse valeu cara e seguiu em frente.
Ao tomar o calçadão, parou um pouco e pôs-se a observar o balanço das ondas. Tirou os chinelos e desceu para a areia. Andou um longo percurso, em que encontrou casais que se amavam sobre o leito arenoso. Desabituado a caminhar, logo se sentiu cansado. Sentou na areia. O vento chicoteava-lhe o corpo, o frio fazia-o tremer, mas não se importou. Um som de vozes amorosas chegava-lhe aos ouvidos. E, de repente, experimentou uma grande sensação de paz interior, que há muitos anos lhe tinha sido roubada. Ali ficou por um tempo indeterminado. Sem pensar em nada, apenas fruindo aquele instante de paz. Não. Ele pensou, sim. Pensou em nunca mais deixar aquele lugar. Em não ter que retornar ao apartamento, ao qual Caetano queria tocar fogo. Em não ter que se aboletar num carro e enfrentar o trânsito e as neuroses dos motoristas. E, depois, emparedar-se no escritório, entrar de novo no carro e emparedar-se também no apartamento. E comer comer comer. Todo dia, todo dia. Toda noite. Tudo tediosamente igual. Como desabafou Caetano.
Conto extraído do meu livro O Tempo Está Dentro De Nós, 1989.

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