domingo, julho 18, 2010

E SE...






Há uns dez minutos ele está observando a mulher em seu sono intranquilo, a remexer-se, ora virando-se para o lado, ora voltando à posição de costas para a cama. A nudez da mulher é resguardada apenas pela calcinha branca, mas esta, transparente e bem ajustada ao corpo, deixa-lhe quase exposta a bunda, quando ela está de costas para ele. Enquanto a observa, ele procura precaver-se de qualquer sinal que o indique estar desperto, estático naquela posição, para que a mulher não acorde do sono inquieto e venha tirar-lhe a concentração nas palavras que ela disse há pouco, quando seus corpos estavam entrelaçados.
Pouco depois sentiu vontade de urinar. Levantou-se e, com cuidado para não fazer ruído, foi para o banheiro, à sua esquerda, a três passos da cama. Ficou sentado no vaso, para continuar olhando para a mulher, cujo corpo conseguia distinguir graças a um pouco da iluminação vinda da rua atráves da porta aberta do pequeno terraço, à direita da cama. Quando terminou de urinar, decidiu deixar o quarto. Palmilhou-o silenciosamente, tendo a mesma cautela ao abrir a porta. Ao passar pelo quarto das crianças ouviu o ressonar de uma delas. Na sala de visitas, dirigiu-se à janela e abriu-a. Uma aragem invadiu a sala, tocando-lhe o rosto, e ele sentiu um inesperado prazer, como se recebesse a carícia de uma mulher. Lá em baixo a rua estava silenciosa e deserta, tão diferente das horas do dia.
A pergunta da mulher voltou a assediá-lo. "E se eu gostasse de trepar com ele, o que é que você fazia"? Não entendia a razão de conferir um valor real àquelas palavras (ao ponto de lhe roubarem o sono), se fora ele que as criara para a mulher dizer. Como outras sem conta, ao longo daquele casamento. (Desde os primeiros dias de casados, acostumara a mulher a falar certas coisas durante o ato sexual. Isso o deixava excitado.)
Mas, na verdade, fora o procedimento da mulher naquela noite que o perturbava. Ela fizera a pergunta, como ele ordenara, ele não disse nada, e foi aí que acontecera o inesperado: ela repetiu a pergunta, com uma pequena variação. "Hem, e se eu gostasse da pinta dele, o que é que você fazia"? A pergunta era a mesma. Mas estranhou que ela a repetisse, parecendo-lhe demonstrar um interesse incomum, e ficou com a sensação de que o seu silêncio (também um fato inédito nos jogos entre eles) tenha-a levado à desconfiança de que ele não estava simulando naquele momento; e sendo assim, ela quisesse saber como ele reagiria a uma situação real e não apenas imaginada para tornar mais excitante o ato sexual. Pensou em pedir-lhe, na hora e depois de terminarem, que esclarecesse a razão da segunda pergunta, mas se conteve.
E agora estava ali insone na madrugada longa, olhando a rua, pela qual passava um carro em marcha lenta, como se o motorista não quisesse ferir o silêncio. Quis consultar o relógio, esquecendo que o deixara no quarto. Sabia que não era muito tarde, mas que o sono já não viria sem a ação de um medicamento.
Ao ir pegar o remédio no armário do banheiro, encontrou a mulher saindo de lá. Tinha vestido uma blusa, talvez para se proteger do vento nas costas. "Perdeu o sono, bem"? Ele disse que sim e que ia tomar um sonífero e ver um pouco de televisão. Quando ainda estava no banheiro, ouviu-a soltar um longo bocejo.
Dia seguinte, como de praxe, ele saiu com a mulher e os dois filhos. Deixou primeiro os filhos na escola, depois a mulher no trabalho. Se beijaram, disseram tchau, a mulher saiu do carro, ele ficou observando-a afastar-se. Ao passar por um homem, este se virou e pôs-se a olhar para ela. Lá do carro ele não despregou os olhos do estranho, que só retomou a caminhada quando ela entrou no prédio. Ligou o carro e foi embora.

domingo, julho 11, 2010

ADÚLTERA (Le Diable au Corps/1947)




Também o título do livro, do qual o filme é adaptado, "o diabo no corpo" é a forma impetuosa, indomada e avassaladora com que dois jovens se entregam a uma relação proibida pela sociedade. E no caso de "Adúltera" (título que, além de buscar o apelo comercial, parece soar como uma atitude discriminatória contra a mulher), existe o fato de o traído ser um combatente na Primeira Guerra Mundial, já perto do seu término. Ao ser lançado em 1923 (no mesmo ano do falecimento precoce, 20 anos, do escritor Raymond Radiguet) o livro foi duramente criticado pelas ligas de ex-combatentes, por essse motivo, e considerado por outras pessoas de um "cinismo maquiavélico". E talvez a advertência feita logo após os créditos iniciais do filme, de que "os personagens desta obra cinematográfica, em sua juventude impetuosa e, às vezes, cínica, exprimem os sentimentos de alguns jovens (o grifo é meu) cujos espíritos foram tomados pela confusão que, de 1914 a 1918, estremeceu o Mundo", tenha tido a intenção de protegê-lo de condenações ainda mais fortes, tendo em vista que a França, e, por extensão, o continente europeu, ainda sofria os efeitos de outra guerra, terminada dois anos antes. Ou seja, o comportamento daquele casal jovem não exprimia a totalidade de pessoas da sua faixa etária.
Devido à condição de Marthe de uma mulher casada, essa relação que subjuga os dois amantes é feita de sobressaltos, de extremos cuidados com a exposição deles à curiosidade e maledicência humanas. François penetra na casa de Marthe como se fora um ladrão. O único momento de tranquilidade é no passeio pelo rio, de barco, quando ele adormece no colo da amante.
É, assim, um amor fadado ao fracasso, cujo símbolo é a morte de Marthe. Por sinal, o diretor Claude Autant-Lara se serve de alguns símbolos para narrar a história dessa paixão avassaladora. Entre esses, a lareira que arde quando os dois consumam o primeiro ato sexual; a presença de grades diante de François - um recurso que usadc om certa frequência faz atenuar a sua eficácia no filme, que se não atinge um nível dos mais altos, possui muitas qualidades, por conta de alguns bons momentos, como quando Marthe revela ao amante que está grávida: depois de dizer que tem uma grande novidade para lhe contar , ela aproxima a boca dos ouvidos dele. Outro é quando Marthe, nos estertores da morte, confunde a mão do marido com a de François e diz o nome deste, enquanto a mãe esclarece o genro de que ela está se referindo ao filho que não irá nascer.
"Adúltera" é também valorizado pelas interpretações de Gerard Philippe e Micheline Presle. Na história ela é mais velha, enquanto na realidade eles nasceram no mesmo ano de 1922. Grande ator e boa pinta, Gerard Philippe teve uma vida curta, falecendo a poucos dias de completar 37 anos. Já a atriz está viva, aos 88, e, ao que parece, ainda em atividade.

sábado, julho 03, 2010

DONA MERCEDES


Vez por outra ela me vem à lembrança. Dona Mercedes. Foi a minha primeira professora. Ensinava na casa onde morava com as filhas (era viúva), três ou quatro. Gorda, baixa, usava óculos. Pelo que me lembro, não era severa, embora puxasse muito pelo aluno. Usava um método prático e atraente de ensinar certas letras, como, por exemplo, o "t", do qual dizia que era um homem levando um carreto na cabeça. (Minha mãe por muito tempo contou isso às pessoas e o fazia sempre rindo.)
Alguns anos depois de ter sido seu aluno, fomos morar numa casa vizinha à dela. Mamãe gostava muito de Dona Mercedes e a visitava uma vez por outra. Me lembro de quando ela morreu. Teve que ir para Fortaleza, pois estava com um grave problema de saúde, parece que com câncer. Voltou num caixão. Quando o caminhão que transportava o caixão passou por nossa casa, alguns de nós estávamos reunidos no alpendre. Sem poder conter a emoção, os olhos úmidos, minha mãe falou que Dona Mercedes já ganhara o Céu. No seu velório, que não me lembro de ter comparecido, ocorreu um fato que, embora constrangedor, teve um componente de humor. Alguém foi apresentar os pêsames a uma das filhas, atrapalhou-se e deu os parabéns. Mas de imediato percebeu a imperdoável mancada e, demonstrando uma admirável presença de espírito, acrescentou que os parabéns eram por a moça ter tido uma mãe com as qualidades e virtudes de Dona Mercedes...
A gente jamais se esquece da primeira professora. É assim como a primeira namorada, a primeira transa. Naquele samba de Ataulfo Alves, "Meus Tempos de Criança", a letra fala de "saudade da professorinha, que me ensinou o bêabá". (Aliás, o último verso da letra contém um dos grandes achados do nosso cancioneiro popular: "Eu era feliz e não sabia". Em um verso de um poema seu, Fernando Pessoa diz algo semelhante.)
Eu não só nunca esqueci Dona Mercedes, como não me lembro das outras professoras que tive na infância. Espera aí. Me lembro também de Dona Elva, quando já estudava no grupo escolar. Uma mulher até certo ponto bonita, alva, corada, olhos de um verde claro (se a memória não estiver me pregando uma peça), casada com um irmão do proprietário do Cine Canindé. Mas é uma lembrança que me ocorre de maneira esporádica e sem o vigor e a saudade que tenho de Dona Mercedes.