sábado, agosto 13, 2005

UM FILME FALADO



Nesse filme do quase centenário Manoel de Oliveira (95 anos em 2003, quando ele o rodou), não há, propriamente, uma história para contar, e sim a História para ser ensinada à menina Maria Joana (Filipa de Almeida) por sua mãe Rosa Maria (Leonor Silveira), professora, aliás, "distinta professora de História", como informa o letreiro que se segue aos créditos iniciais. As duas embarcam em um navio em Lisboa, com destino a Bombaim (Índia), para se encontrarem com o pai e o marido. Já quando vão saindo de Lisboa, à vista de monumentos, Rosa Maria começa a falar de fatos da história de Portugal, e a "lição" continua sempre que há uma escala interessante na viagem (Atenas, Nápoles, Istambul, Egito), quando deixam o navio e visitam os locais históricos. Mas à medida que vai desfiando os fatos históricos para a filha, que, como as crianças, indaga do significado das palavras que desconhece, Rosa Maria vai também aprendendo. É assim em Atenas, quando um padre da Igreja Ortodoxa vai ao encontro delas e age como um guia histórico só para a professora; é assim diante das pirâmides egípcias, num encontro casual com um ator português. Mais da metade de Um Filme Falado é consumida por essas visitas. E aí torna-se perceptível a intenção do filme de preservar a memória histórica, cultivada pela professora e transmitida à "aluna", esta representando o futuro. Poucas e rápidas cenas são tomadas do navio parado, três delas para mostrar o embarque de três mulheres, que, depois, serão apresentadas devidamente ao espectador.
Quando o filme vai para dentro do navio, vemos reunidos, uma noite numa mesa do restaurante, Delfina, uma mulher de negócios francesa (Catherine Deneuve), Francesca, uma ex-modelo italiana (Stefania Sandrelli) , e Helena, uma atriz e cantora grega (Irene Papas), e o americano, de descendência polonesa, comandante do navio (John Malkovich). Exprimindo-se cada um deles na língua do seu país, iniciam a conversa falando de si mesmos, de suas vidas, de suas profissões, obedecendo a uma espécie de" jogo" proposto pelo comandante. Depois de um certo tempo, passam a falar de política, história, civilização, cultura, com alusões à União Européia, à Torre de Babel, à biblioteca de Alexandria, destruída por um ato inigualável de barbarismo, que, na opinião de Francesca, deu início aos atentados terroristas que persistem até hoje. Parece haver um consenso entre os exegetas de Um Filme Falado , de que esses quatro personagens representariam a União Européia (Delfina e Francesca), o Berço da Civilização (Helena) e os Estados Unidos (o comandante). É possível. Mas arrisco também outra interpretação. Ou seja, que o filme tenha hasteado a bandeira do feminismo, ao colocar as três mulheres, às quais se juntam a mãe e a filha, e apenas um homem entre os personagens principais, cabendo ainda observar que o nome de Malkovich (o de maior prestígio em todo o elenco) vem em último lugar na apresentação dos créditos. Há, ademais, uma fala de Delfina opinando que a União Européia estaria em melhor situação se administrada pelas mulheres, o que parece desagradar o comandante, que, embora sem perder as maneiras de homem bem-educado, lhe pergunta se ela é uma feminista. E ainda a boutade de Helena de que um homem é necessário, nem que seja para fazer parte da mobília de uma casa.
E quando, numa outra noite, Rosa Maria é convidada pelo comandante para a mesa, ela não pode se expressar na língua do seu país, porque só o homem entende o português, por ter passado algum tempo no Brasil. No entanto, Rosa Maria entende o inglês, e este idioma, numa mostra do seu predomínio sobre todos os demais na atualidade ("o implacável inglês", como diz Helena), é que passa a ser usado na conversa. Quer me parecer que, diferentemente da interpretação que li num comentário, a cena não representa a marginalização de Portugal no continente europeu, mas apenas a constatação da inferioridade da língua do país entre as mais faladas no mundo. Ainda assim, bem mais difundida do que o grego, só falado na Grécia, como afirma Helena com certa lamentação.
O final terrível, impactante, com a imagem congelada do rosto do comandante exprimindo o horror e a estupefação ao ver o navio ir para os ares com a mãe e a filha, não me parece de todo desesperador, em meio à conturbação e à violência do mundo em que vivemos. Pois, ao poupar a vida da atriz/cantora (que interpretava uma música tradicional da Grécia, quando o comandante é informado da existência de bombas no navio), talvez aí o filme esteja sinalizando a permanência da arte.

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